ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Abscesso epidural espinhal na adolescência: relato de caso

Spinal epidural abscess in adolescence: case report

RESUMO

Considerada uma emergência infecciosa pouco frequente e capaz de causar déficits neurológicos severos, o abscesso epidural espinhal (AEE) é uma condição rara, principalmente na infância. A taxa de mortalidade em adultos varia entre 5 e 23%, mas, em crianças, a morbimortalidade apresenta-se menor. O presente relato objetiva contribuir ao âmbito científico com a discussão de um caso de AEE na pediatria. Trata-se de uma adolescente, 17 anos, apresentando febre, lombalgia e cisto sebáceo infectado em dorso há três dias. Informa história de drenagem há dois dias e cesariana com raquianestesia há um ano. Ressonância magnética (RM) da lombar mostrou coleção epidural posterior de L1-L4. Foi realizada a cirurgia de drenagem do abscesso epidural com laminectomia de L3-L4 e cultura positiva para Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA), sensível à vancomicina e rifampicina. Alta após 21 dias de vancomicina endovenosa, com prescrição de rifampicina oral por três semanas. A infecção cutânea prévia é considerada um precedente clássico do AEE, sugerindo-se que o quadro da paciente foi precedido pela furunculose. O micro-organismo responsável por 86% dos casos de AEE na infância é o Staphylococcus aureus. A dorsalgia pós-anestesia raquimedular, febre, infecção cutânea e possível condição de imunossupressão indicaram investigação para AEE. A RM com contraste de gadolíneo corresponde à abordagem diagnóstica padrão-ouro para AEE. A suspeita da doença na pediatria é de extrema importância diante de um quadro de febre, dorsalgia e sensibilidade medular, devendo receber devida atenção e investigação diante de clínica indicativa.

Palavras-chave: Abscesso Epidural, Raquianestesia, Adolescente.

ABSTRACT

Spinal epidural abscess (SEA) is a rare infectious emergency and capable of causing severe neurological deficits, especially in childhood. The mortality rate in adults varies from 5 to 23%, but in children the rates are even lower. This report aims to contribute to the scientific field by discussing a case of SEA in pediatrics. It is a teenager, 17 years old, presenting fever, low back pain and sebaceous cyst infected on her back for three days. She reports a history of drainage two days ago and a cesarean section with spinal anesthesia a year ago. Magnetic resonance imaging (MRI) of the lumbar showed posterior L1-L4 epidural collection. Epidural abscess drainage surgery was performed, with L3-L4 laminectomy, and positive culture for Methicillin-resistant Staphylococcus aureus (MRSA), sensitive to Vancomycin and Rifampicin. She was discharged after 21 days of intravenous Vancomycin, with a prescription for oral Rifampicin for three weeks. Previous skin infection is considered a classic precedent of SEA, suggesting that the patients condition was preceded by furunculosis. The microorganism responsible for 86% of SEA cases in childhood is Staphylococcus aureus. Back pain after spinal anesthesia, fever, skin infection and possible condition of immunosuppression indicated investigation for SEA. Gadolinium-contrast MRI corresponds to the gold standard diagnostic approach for SEA. The suspicion of the disease in pediatrics is extremely important in front of fever, back pain and spinal sensitivity, and should receive due attention and investigation before an indicative clinic.

Keywords: Epidural Abscess, Anesthesia, Spinal, Adolescent.


INTRODUÇÃO

O abscesso epidural espinhal (AEE) é considerado uma emergência infecciosa pouco frequente, potencialmente grave, capaz de causar déficits neurológicos severos, decorrentes da compressão do abscesso na medula espinhal ou nas raízes nervosas, que podem levar à isquemia, principalmente se houver atraso no diagnóstico, sendo sua abordagem clínica e cirúrgica precoce imprescindível para um melhor prognóstico1-3.

É caracterizado por uma coleção purulenta, localizada entre dura-máter e canal vertebral, podendo manifestar-se como um cisto sebáceo e estender-se por todo o comprimento da medula espinhal4,5.

Sua incidência varia, na literatura, de um caso para 100 mil indivíduos até 0,2 a três casos em 10 mil admissões hospitalares, sendo consensualmente considerada uma condição rara, principalmente na infância1,4,6,7. A taxa de mortalidade em adultos varia entre 5 e 23%, mas, em crianças, a morbimortalidade apresenta-se menor6.

O presente relato objetiva contribuir ao âmbito científico com a discussão de um caso de AEE na pediatria, aprimorando dados já encontrados na literatura.


RELATO DE CASO

Adolescente, feminino, 17 anos, internada com queixa de febre (38,5 ºC), cefaleia, dor lombar irradiada para abdome e cisto sebáceo infectado em terço superior de parte posterior do tórax, com início há três dias. Informa ter realizado procedimento de drenagem do cisto manualmente, em domicílio, há cinco dias e, no pronto-socorro, 48 horas antes da internação, com prescrição de cefadroxila oral (500mg de 12/12h). Durante a internação, relatou início de dor lombar local intermitente dois meses após cesariana, que ocorreu há um ano, com raquianestesia.

Ao exame físico, apresentava 115kg, IMC 39,7 (acima do p97), fácies de dor, taquipneia, com dor à palpação lombar e abdominal difusa, mais acentuada em hipocôndrio direito.

Exames laboratoriais mostraram hemograma com Hb 11,5g/dL; Ht 34%; leucocitose com desvio à esquerda (16.000/mm3, 13% de bastões e 80% de segmentados), plaquetas 168mil/mm3; proteína C-reativa (PCR) 292mg/dL; velocidade de hemossedimentação (VHS) 130mm e duas amostras de hemoculturas negativas. Tomografia (TC) de abdome, tórax e crânio, ultrassonografia (USG) abdominal e pélvica sem alterações.

Iniciado tratamento endovenoso, com ceftriaxone (2g de 12/12h), oxacilina (1g de 6/6h), metronidazol (500mg de 8/8h).

No quinto dia de internação, possuía hemograma com Hb 11,9g/dL; Ht 35%; leucócitos (12.000/mm3, 4% de bastões, 70% de segmentados), PCR 109mg/dL, VHS 101mm. Evoluiu com melhora da cefaleia e dor abdominal, mantendo-se afebril; porém com persistência da lombalgia. Por isso, foi solicitada ressonância magnética (RM) de coluna lombar com coleção epidural posterior de L1 a L4, lateralizada à esquerda e insinuando-se nos forames neurais de L2-L3 e L3-L4 ipsilaterais; apresentando intensa impregnação periférica/dural pelo meio de contraste (epidurite), comprimindo e deformando saco dural e raízes da cauda equina, medindo cerca de 10x1,5cm nos eixos longitudinal e anteroposterior.

Avaliada pelo neurocirurgião, no sexto dia de internação, que observou paraparesia grau 4 e bexiga neurogênica, além de limitação e dor à flexão e extensão da coluna vertebral ao exame físico. Sendo assim, foi realizada a cirurgia de drenagem do abscesso epidural com laminectomia de L3 e L4 na mesma data. A cultura da secreção foi positiva para Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA), sensível à vancomicina e rifampicina.

Alta após 21 dias de vancomicina endovenosa (500mg de 6/6h), com prescrição de rifampicina oral (300mg de 12/12h) por três semanas.

Após três meses do procedimento, apresentou discreta lombalgia, com resolução completa da coleção epidural (Figura 1).


Figura 1. A. Estudo de ressonância magnética (RM) de coluna lombar da paciente em 20/05/2020, anterior ao tratamento cirúrgico; B. Estudo de ressonância magnética (RM) de coluna lombar da paciente em 27/08/2020, três meses após o tratamento clínico e cirúrgico.



DISCUSSÃO

Dentre os fatores predisponentes ao desenvolvimento do AEE, estão trauma medular, anestesia raquimedular ou bloqueio epidural, neurocirurgia prévia, anomalias espinhais congênitas, infecção cutânea/osteomielite prévias, câncer, uso abusivo de drogas intravenosas, história de acupuntura, diabetes mellitus, insuficiência renal crônica, infecção urinária recorrente, alcoolismo e imunodeficiência2,5,6,8,9. Tais fatores foram encontrados em apenas 35 a 67% de pacientes pediátricos com AEE3.

A anestesia regional vem se tornando mais comum em crianças. Deve-se avaliar o advento de possíveis complicações, como as infecções bacterianas por contaminação dos cateteres, que correspondem a 16 a 25% dos casos de anestesia raquimedular, e outras mais graves e menos comuns, como meningite, abscesso epidural e sepse10. Wiegele et al. (2019)10 referem também que a inserção subcutânea do cateter ou em um ponto mais alto, entre L5-S1, pode acarretar menor risco para essas infecções.

É raro o surgimento de AEE em crianças imunocompetentes e que não apresentem fatores de risco8, o que sugere que a paciente apresentava um quadro de imunodeficiência pela sua condição de obesidade, que, junto ao seu histórico de anestesia raquimedular, favoreceram o desdobramento do AEE.

A infecção cutânea prévia é considerada uma apresentação precedente clássica do AEE, apesar de ocorrer em apenas 15% dos casos8. A via de disseminação mais comum nas crianças é a hematogênica, seguida de contiguidade2. Por isso, sugere-se que o quadro de AEE da paciente foi precedido pela furunculose em coluna espinhal.

O micro-organismo responsável por 50-90% dos casos de AEE é o Staphylococcus aureus, tanto as cepas sensíveis à meticilina (MSSA) quanto as resistentes (MRSA)9, sendo o agente etiológico mais comum nas infecções pediátricas, em 86% dos casos6. Estudos recentes observaram aumento das etiologias por MRSA em crianças sem fatores de risco2,5. Em congruência aos relatos da literatura, foi encontrado o MRSA na cultura de secreção da paciente em questão.

Preconiza-se que a vancomicina seja o antibiótico de escolha para o tratamento dos AEE, com duração de 4 a 6 semanas, tal como foi realizado na paciente. O tratamento precoce é primordial para melhor controle da infecção2,4.

A apresentação clássica da AEE consiste na tríade de dorsalgia, febre e déficit neurológico. Todavia apenas uma minoria dos pacientes irá manifestá-la, em especial, a faixa etária pediátrica, que, habitualmente, não apresenta fatores de risco nem clínica bem evidente2,3.

Dor severa localizada em dorso é o sintoma mais frequente e, muitas vezes, subestimado, devendo-se sempre conduzir uma investigação mais apurada, com exames laboratoriais e radiológicos1,4. A alta incidência de dorsalgia na população, associada à rara ocorrência de AEE, dificulta seu diagnóstico precoce4. Ademais, também se deve suspeitar de AEE em crianças febris com dor abdominal ou em quadris, após descartar outras etiologias, visto que há relatos de dor abdominal aguda dissimulando um possível AEE4,11. A dorsalgia pós-anestesia raquimedular e febre, em conjunto com subsequente infecção cutânea e possível condição de imunossupressão, indicaram investigação para AEE.

Os sintomas neurológicos do AEE são divididos em quatro fases: (1) dor lombar a nível da região espinhal afetada, febre e sensibilidade local; (2) dor radicular, rigidez de nuca e alteração de reflexos; (3) fraqueza motora, déficit sensorial e disfunção vesical e intestinal e (4) paralisia, com possível sequela permanente, raramente reversível após abordagem cirúrgica4,6,9. Nossa paciente encontrava-se em estágio 3, devido à presença de bexiga neurogênica, paraparesia grau 4 e persistência da dorsalgia mesmo à flexão/extensão da coluna vertebral, caracterizando um quadro de disfunção vesical, fraqueza motora e estenose espinhal por processo inflamatório.

O AEE possui rápida progressão, com evolução dos sintomas radiculares para fraqueza neuromuscular em torno de três a quatro dias e de fraqueza para paraplegia em 24 horas. Em crianças, o diagnóstico é, frequentemente, retardado até que os sinais neurológicos se manifestem, em 75% das vezes. É importante considerar o diagnóstico de AEE em pacientes que apresentarem dorsalgia, febre e sensibilidade medular, cursando ou não com exame neurológico alterado, a fim de prevenir sequelas neurológicas, paralisia, sepse e morte4,8.

O diagnóstico é feito pela suspeição clínica, acompanhada de aumento de VHS e PCR e imagem neurológica evidenciando o abscesso2, estando todos esses elementos presentes no caso.

A ressonância magnética (RM) com contraste de gadolíneo corresponde à abordagem diagnóstica padrão-ouro para AEE, com 91% de sensibilidade e especificidade, além de apresentar relevância para o acompanhamento1,3,6,12. A tomografia com contraste intravenoso apresenta sensibilidade muito baixa para detecção de AEE e deve ser solicitada somente se não houver RM disponível3. A RM solicitada para a paciente foi primordial para a confirmação diagnóstica.

O tratamento é tradicionalmente realizado a partir de descompressão e drenagem cirúrgicas, acrescidas de antibioticoterapia1,3,6. Relatos recentes demonstram que o uso de antibiótico isoladamente pode produzir regressão satisfatória do quadro2. Sugawara et al. (2019)3 recomendam tratamento somente clínico, inicialmente, em pacientes pediátricos que não apresentarem fatores de risco e que tenham sido diagnosticados antes do surgimento de sintomas neurológicos, inferindo-se que, para a paciente, ambas abordagens cirúrgica e clínica foram necessárias.

As crianças apresentam resolução melhor do AEE, em comparação com adultos, uma vez que, para estes, o quadro é agravado pelos fatores de risco. Em estudo com uma série de casos de 34 crianças com AEE, nenhuma evoluiu a óbito e apenas 18% apresentaram sequelas neurológicas11, fato que se apresenta alinhado à boa resolutividade do quadro da paciente apresentada.


CONCLUSÃO

O AEE é incomum na pediatria e exige diagnóstico e tratamento precoces, a fim de proporcionar ao paciente melhor prognóstico. A suspeita de AAE na pediatria é de extrema importância diante de um quadro de febre, dorsalgia e sintomas radiculares. Sendo o método padrão-ouro, a RM detém a capacidade de revelar a extensão da lesão e confirma a suspeita clínica. O início da antibioticoterapia, complementar à drenagem cirúrgica, configura-se abordagem segura e eficiente para a prevenção de sequelas neurológicas. Portanto, o AEE deve receber devida atenção e investigação diante de clínica indicativa.


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1. Centro Universitário de Volta Redonda, Curso de Medicina - Volta Redonda - Rio de Janeiro - Brasil
2. Hospital Santa Cecília, Pediatria - Volta Redonda - Rio de Janeiro - Brasil
3. Hospital Santa Cecília, Neurocirurgia - Volta Redonda - Rio de Janeiro - Brasil
4. Hospital Santa Cecília, RADIOVIDA - Volta Redonda - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:

Cecília Pereira Silva
Hospital Santa Cecília
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Data de Submissão: 17/11/2020
Data de Aprovação: 08/12/2020