ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Avaliação de tuberculose latente em adolescentes e adultos jovens vivendo com o vírus da imunodeficiência humana em um serviço de referência no Brasil

Evaluation of latent tuberculosis infection in adolescents and young adults living with human immunodeficiency virus in a reference clinic in Brazil

RESUMO

Para evitara ocorrência detuberculoseativa em pessoas vivendo com o HIV (PVHIV) queapresentam infecção latenteportuberculose (ILTB), as indicações terapêuticas para essa população foram ampliadas no Brasil em 2018,recomendando-se tratamento para aqueles com contagem de linfócitos T CD4 menor ou igual a 350 células/mm3, independente do resultado do teste tuberculínico (TT). Para avaliar a aplicação prática dessa recomendação, objetivou-se determinar a prevalência da ILTB em PVHIV. 99 adolescentes e adultos jovens vivendo com o HIV acompanhados em um serviço de referência foram avaliados para a ocorrência de ILTB com aplicação do TT e contagem decélulas TCD4. A prevalência de ILTB foi estimada em 7,1% baseada no resultado do TT e a de pacientes com contagem de linfócitos CD4 menor ou igual a 350 células/mm3, que deveriam ser tratados, foi 18%, confirmando que a detecção de pacientes com linfócitos TCD4 menor ou igual a 350 células/mm3 efetivamente amplia a indicação de tratamento da ILTB. No entanto, apenas 4 (22,2%) dos 18 pacientes identificados pela contagem decélulas TCD4 aderiram à terapêutica proposta,evidenciando quea adesão ao tratamento da ILTB por adolescentes e adultos jovens vivendo com o HIV é um desafio na prática clínica. A rebeldia inerente a essa população, o não comparecimento às consultas, a recusa na utilização de mais uma droga além da terapia antirretroviral foram alguns dos motivos responsáveis pela baixa adesão ao tratamento.

Palavras-chave: HIV, Tuberculose, Tuberculose latente, Adolescente.

ABSTRACT

To avoid the occurrence of tuberculosis reactivation in people living with HIV (PLHIV) who have latent tuberculosis infection (LTBI), the therapeutical indications to this population were expanded in Brazil in 2018, with the recommendation of treatment for those with CD4 T lymphocyte count less than or equal to 350 cells/mm3, regardless of the result of the tuberculin test (TT). To evaluate the practical application of this recommendation, we decided to determine the prevalence of LTBI in PLHIV followed in our outpatient clinic. Ninety-nine adolescents and young adults living with HIV accompanied in a Reference Service were evaluated for the occurrence of LTBI with TT and TCD4 cell count application. The prevalence of LTBI was estimated at 7.1% considering the result of TT, and 18% when considering patients with CD4 lymphocyte count less than or equal to 350 cells/mm3. This difference reinforces the idea that the detection of patients with TCD4 lymphocytes less than or equal to 350 cells/mm3 effectively expands the indication for treatment of LTBI. However, only 4 (22.2%) of 18 patients with TCD4 less than or equal to 350 cells/mm3 adhered to the therapeutic proposal. The rebellious aspect inherent to this population, the failure to attend consultations and the refusal to use another drug were some of the reasons for the low adherence to treatment.

Keywords: HIV infections, Tuberculosis, Latent tuberculosis, Adolescent.


INTRODUÇÃO

O diagnóstico e tratamento da infecção latente por tuberculose (ILTB) em pessoas vivendo com o HIV (PVHIV) são fundamentais para minimizar o risco de infecção ativa nessa população. Relatos recentes demonstraram que PVHIV possuem 21 vezes mais chance de desenvolver tuberculose ativa do que aquelas sem a infecção pelo vírus1 e têm 48% menos chance de cura, 50% mais chance de abandonar o tratamento e 94% mais chance de morrer por tuberculose em relação àqueles sem a coinfecção2.

Em 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a Estratégia pelo Fim da Tuberculose (End TB Strategy), cuja meta era extinguir a doença como um problema de saúde pública até o ano de 20353. Como parte do controle da tuberculose no Brasil, o Ministério da Saúde lançou o Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública, considerando-se imprescindível aumentar o rastreio, o diagnóstico e o tratamento da infecção latente pelo Mycobacterium tuberculosis4.

A detecção e o tratamento precoces de ILTB em pacientes imunocomprometidos podem reduzir o desenvolvimento de tuberculose ativa em 62% e a mortalidade em 26%5. O teste tuberculínico (TT) é o método mais utilizado no Brasil para o diagnóstico de ILTB e quando ≥5mm indica o início do tratamento com isoniazida6. Em junho de 2018, o Ministério da Saúde lançou uma nota técnica ampliando a recomendação de tratamento da infecção latente por tuberculose com isoniazida para PVHIV, recomendando tratamento também para aqueles com contagem de linfócitos T-CD4+ menor ou igual a 350 células/mm3, independente de teste tuberculínico, exceto os pacientes com diagnóstico de tuberculose ativa ou que já receberam tratamento adequado para ILTB no passado7.


MÉTODOS

O objetivo do presente estudo foi analisar os aspectos práticos do cumprimento das novas recomendações terapêuticas. Foram avaliados adolescentes e adultos jovens vivendo com o HIV, acompanhados em um ambulatório de referência na cidade de São Paulo no período de julho de 2018 a dezembro de 2019. Avaliou-se a prevalência de ILTB através do TT e contagem de linfócito TCD4. Pacientes com linfócitos T CD4≤350 células/mm3e/ou TT≥5mm deveriam ser tratados, descrevendo-se os aspectos envolvidos no seguimento desses pacientes.

Os dados coletados foram a idade, sexo, classificação clínica e imunológica, drogas utilizadas na terapia antirretroviral (TARV), número de linfócitos TCD4, cargaviral do HIV, tratamento prévio para TB ou ILTB. Para descartar tuberculose ativa foram utilizados critérios clínicos, RX de tórax e pesquisa de BAAR no escarro ou teste rápido molecular (Xpert MTB/ RIF), quando necessário.

Foi considerado com ILTB o indivíduo com TT≥5mm, desde que adequadamente descartada TB ativa. Todas as PVHIV com contagem de linfócitos T-CD4+ ≤350 células/ mm³ também receberam indicação de tratamento para ILTB, independentemente da prova tuberculínica, exceto os pacientes com diagnóstico de tuberculose ativa ou que já haviam recebido o tratamento adequado para ILTB no passado. O tratamento proposto da ILTB foi isoniazida, 5-10mg/kg, até a dose máxima de 300mg/dia, programando-se um total de 180 doses, tomadas de seis a nove meses, ou 270 doses, tomadas de nove a doze meses.

A adesão dos pacientes foi avaliada de forma subjetiva durante as consultas ambulatoriais e registrada em prontuário, através de questionamento do paciente durante o atendimento médico. Neste, o próprio paciente informava verbalmente como caracterizava sua aderência ao seu tratamento e suas dificuldades. Também foram observadas e registradas em agenda as faltas dos mesmos às consultas marcadas.


RESULTADOS

Noventa e nove pacientes foram incluídos no estudo, com idade variando de 10 a 28 anos (média = 20,8 anos); 47 (47,5%) eram do sexo masculino e 52 (52,5%) do feminino.

A Tabela 1 mostra a classificação clínica e imunológica, os esquemas terapêuticos realizados (TARV), a carga viral do HIV, a contagem de linfócitos TCD4, o resultado do PPD e a indicação de tratamento da ILTB.




A análise das características clínicas e laboratoriais dos pacientes vivendo com HIV acompanhados no serviço mostrou que a maioria convive com muitas dificuldades, pois grande parte já apresentou sintomas moderados a graves (51,5% pertencem à categoria clínica B e 33,3% à categoria C), são submetidos a esquemas complexos de tratamento (com mais de três drogas) e têm dificuldades no controle da própria infecção pelo HIV (carga viral detectável) (Tabela 1).

A carga viral do HIV variou de <40 a 3.685.315 cópias/ mm3 (média: 62.518 cópias). A contagem de células TCD4 variou de 6 a 2027 células/mm³ (média = 646).

Quanto ao PPD, apenas 56 dos 99 pacientes realizaram o teste. Seis de 56 pacientes apresentaram TT com resultados ≥5 mm, porém 2 foram excluídos, pois já haviam tratado TB ou ILTB previamente. Dessa forma, no presente estudo, foi obtida uma prevalência de ILTB com indicação de tratamento de 7,1 % (4/56).


DISCUSSÃO

À semelhança de outros estudos, constatamos dificuldades tanto no diagnóstico quanto no tratamento da infecção latente por tuberculose em indivíduos infectados pelo HIV. Não foi possível determinar a prevalência de ILTB através do teste tuberculínico em todos os pacientes incluídos. Embora o teste tenha sido solicitado para todos os 99 pacientes, apenas 56 deles realizaram o exame, por motivos que variaram desde a dificuldade de custeio de transporte (necessidade de 2 visitas, uma para aplicação, outra para a leitura) até falta de compromisso com o seguimento clínico, dificuldade comumente encontrada no acompanhamento de adolescentes.

Em um recente estudo realizado na Indonésia, com uma casuística maior (112 indivíduos), a prevalência de ILTB em PVHIV definida através de TT foi de 19%8.

A prevalência de PVHIV com contagem de linfócitos TCD4+ ≤350 células/mm3 foi de 26,2% (26/99); porém oito deles já haviam realizado tratamento prévio para ILTB ou TB, totalizando 18 pacientes com indicação de tratamento (18%). Desses 26 pacientes, 15 (57,6 %) realizaram TT, sendo 14 (93%) destes não reatores. Se a indicação de tratamento da ILTB fosse baseada apenas no teste tuberculínico, muitos pacientes não teriam recomendação de tratamento.

Considerando-se a prevalência de ILTB identificada pelo TT (7,1%), a identificação de pacientes com contagem de células T CD4 ≤350/mm3 (18%) realmente amplia a indicação de tratamento com isoniazida desses pacientes, permitindo o oferecimento de tratamento de ILTB a um maior número de pacientes. No entanto, dos 18 pacientes que deveriam ser tratados, apenas 4 (22,2%) efetivamente o iniciaram. A baixa adesão tem sido apontada como uma das principais razões para a falha do tratamento da ILTB nesses pacientes. Os motivos da baixa adesão abrangeram desde o não comparecimento às consultas, seja por falta de condições financeiras, por dificuldade de locomoção devido à moradia distante, até a recusa de utilização de mais uma droga além da TARV, evidenciando a pouca compreensão da necessidade da profilaxia. Outros estudos relatam situações semelhantes9-11. Em um estudo realizado na Itália em 200111, de 83 PVHIV que deveriam receber a profilaxia, apenas 40 concordaram em iniciá-la e somente 29 completaram o tratamento.

Outros fatores implicados na baixa adesão ao tratamento da ILTB são a duração prolongada da medicação, os possíveis efeitos colaterais das medicações associadas e baixo nível cultural12. A adesão à terapia antirretroviral isoladamente já é difícil. Identificamos expressivo número de pacientes com carga viral do HIV detectável (69,2% dos pacientes com T CD4 ≤350/mm3), o que sugere baixa adesão ao tratamento regular da infecção pelo HIV.

Uma das limitações do estudo foi a não realização da avaliação da aderência ao tratamento de forma objetiva e sistematizada, pois esse não era nosso objetivo inicial. No entanto, os problemas com a adesão assumiram um papel tão importante, por sua reflexão nos resultados, que tornou evidente que se a resolução desses fatores não for abordada, dificilmente haverá sucesso no tratamento da ILTB.

Na prática clínica, a recomendação de administração de mais uma medicação para tratamento de ILTB de jovens vivendo com o HIV com contagem de linfócitos TCD4+ ≤350/ mm3 mostrou-se muito difícil de ser implementada. Aos fatores citados somam-se as características inerentes à adolescência e à própria infecção pelo HIV, como questionamento e rebeldia, a não aceitação da soropositividade, o comprometimento da autoestima, a incurabilidade da doença. As dificuldades econômicas que costumam ocorrer nessa população pioram ainda mais a adesão. Quando se trata de PVHIV com infecção latente por tuberculose, o suporte educacional, emocional e social precisa ser oferecido. Os profissionais de saúde precisam utilizar todo o seu empenho no esclarecimento da importância do uso da isoniazida, para que as metas de redução da incidência e da mortalidade por tuberculose sejam atingidas até 2035.


REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.

2. Simões GR, Nunes N, Nunes M, Rodrigues V P. Temporal analysis of reported cases of tuberculosis and of tuberculosis-HIVco-infection in Brazil between 2002 and 2012. J Bras Pneumol. 2016;42(6):416-22.

3. World Health Organization. End TB Strategy. Global strategy and targets for tuberculosis prevention, care and control after 2015. [Internet]. 2015; [access in 2021 mai 02]. Availabe from: https://www.who.int/tb/strategy/End_TB_Strategy.pdf?ua=1.

4. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Brasil Livre da Tuberculose: Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [acesso em 2021 mai 02]. Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/junho/29/plano_nacional_tb_web.pdf.

5. Akolo C, Adetifa I, Shepperd S, Volmink J. Treatment of latent tuberculosis infection in HIV infected persons. Cochrane Database Syst Rev. 2010 Jan;2010(1):CD000171.

6. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Protocolo de vigilância da infecção latente pelo Mycobacterium tuberculosis no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.

7. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde. Nota informativa nº 11/2018-.DIAHV/SVS/MS. Recomendações para tratamento da infecção latente por Tuberculose (LTBI) em pessoas vivendo com o HIV (PLHIV). [acesso em 2021 mai 02]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/nota-informativa-no-112018-diahvsvsms.

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Unifesp, Infectologia Pediátrica - São Paulo - São Paulo - Brasil

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Data de Submissão: 19/10/2021
Data de Aprovação: 01/05/2022