ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2025 - Volume 15 - Número 1

Prevalência do uso de telas em crianças: um estudo observacional no extremo sul catarinense

Prevalence of screen use in children: an observational study in the extreme south of Santa Catarina

RESUMO

OBJETIVO: A exposição excessiva às telas durante a primeira infância tem sido progressivamente associada a um inadequado desenvolvimento cognitivo e psicossocial. Nesse sentido, este estudo teve como objetivo principal avaliar a prevalência do uso de telas na primeira infância nos ambulatórios de pediatria de uma universidade do extremo sul catarinense no segundo semestre de 2022.
MÉTODOS: Estudo observacional transversal, com coleta de dados primários, no local pré-determinado, e que envolveu 135 pacientes de zero a seis anos, cujos pais e/ou responsáveis responderam ao questionário elaborado e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
RESULTADOS: Do total de crianças avaliadas, encontrou-se uma prevalência de 85,92% do uso de telas. Os principais dispositivos tecnológicos utilizados foram a televisão (73,3%), seguida pelo celular (19,8%). O tempo médio diário de exposição encontrado foi de 1,07 horas. Das 21 variáveis testadas, seis apresentaram associação significativa ao tempo de exposição às telas: idade, tipo de tela, frequência em escola/creche, presença de estímulo à atividade física, tela utilizada durante refeições e presença de limite de uso de telas.
CONCLUSÕES: Observou-se um uso de telas na primeira infância altamente prevalente e precoce na população estudada. Os achados de perfil sociodemográfico, assim como as associações entre tempo de tela e fatores predisponentes ampliam a literatura brasileira, evidenciando semelhanças e diferenças com estudos prévios.

Palavras-chave: Criança, Saúde da criança, Tempo de tela.

ABSTRACT

OBJECTIVE: Excessive exposure to screens during early childhood has been progressively associated with inadequate cognitive and psychosocial development. In this sense, this study has as objective to assess the prevalence of screen use in early childhood in the pediatric outpatient clinics of a university in the extreme south of Santa Catarina in the second half of 2022.
METHODS: Cross-sectional observational study, with primary data collection, in the predetermined location, and that involved 135 patients from zero to six years, whose parents and/or guardians answered the questionnaire prepared and signed the informed consent form.
RESULTS: Of the total children evaluated, an 85.92% prevalence of screen use was found. The main technological devices used were television (73.3%), followed by cell phones (19.8%). The average daily exposure time found was 1.07 hours. Of the twenty-one variables tested, six showed a significant association with screen exposure time: age, type of screen, school/daycare attendance, presence of physical activity stimuli, screen used during meals, and presence of limit on screen use.
CONCLUSIONS: Was observed highly prevalent and early screen use in early childhood in the population studied. The sociodemographic profile findings, as well as the associations between screen time and predisposing factors, expand the brazilian literature, showing similarities and differences with previous studies.

Keywords: Child, Child health, Screen time.


INTRODUÇÃO

A primeira infância é a etapa entre o nascimento e os seis anos de idade, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)1. Nesse ínterim, cabe ressaltar que a formação do sistema nervoso central é modelada por um conjunto de fatores, abrangendo experiências intrauterinas e pós-natais2. Essa capacidade neurológica de ajustar-se por estímulos, benéficos ou nocivos, dá se através da neuroplasticidade, cujo pico ocorre do pós-nascimento até o primeiro ano de idade3. Assim, as experiências ambientais geradas na primeira infância são essenciais ao desenvolvimento infantil, pois podem alterar o comportamento e a própria estrutura cerebral4.

O aumento do tempo e a precocidade em que as crianças estão expostas às telas, tornam-se um tema de progressiva relevância5,6. Isso se dá pelo fato de que, embora determinados estudos sugiram benefícios da utilização de telas durante a primeira infância, a exposição excessiva associa-se a consequências danosas aos cinco domínios de saúde do desenvolvimento, sendo eles: bem-estar e saúde física, maturidade emocional, competências sociais, habilidade cognitiva e linguística, e capacidade comunicativa7,8. Ademais, a exposição precoce e/ou prolongada às telas relaciona-se também a desestruturações orgânicas, como distúrbios nutricionais, decréscimo na saúde mental, e alterações ópticas9-11. Assim, se por um lado diretrizes nacionais e internacionais de saúde estimulam a limitação do tempo de exposição às telas para crianças de zero a seis anos, por outro lado, a prevalência da exposição às telas é alta principalmente em menores de dois anos, e dá-se continuamente em todas as idades12.

Outrossim, é relevante considerar que a exposição precoce às telas reflete um somatório de fatores predisponentes intrínsecos e extrínsecos às crianças, sendo estes últimos principalmente relativos ao ambiente familiar13. Tais influências envolvem, desde o estabelecimento de regras, estímulo à interação e comunicação, fatores socioeconômicos, comportamentos de saúde dos pais, e até o grau de importância da limitação do uso de telas dado por eles12,14,15.

Considerando o baixo índice de estudos no Brasil sobre o tempo de tela em crianças abaixo de seis anos, torna-se de extrema importância compreender como esse processo relaciona-se ao aumento da acessibilidade digital. Dessa forma, o presente estudo buscou avaliar a prevalência do uso de telas na primeira infância nos ambulatórios de pediatria de uma universidade do extremo sul catarinense no segundo semestre de 2022, verificar o perfil epidemiológico das crianças atendidas, identificar os principais dispositivos tecnológicos utilizados e o tempo médio diário de exposição às telas, e correlacionar os fatores predisponentes ao tempo de exposição prolongada e precoce às tela.


MÉTODOS

Delineamento de estudo: estudo observacional transversal com coleta de dados primários e análise quantitativa.

População estudada e os métodos de seleção: A amostra foi composta por pacientes dentro da primeira infância (de zero a seis anos de idade), que estavam em atendimento no ambulatório de pediatria de uma universidade do extremo sul catarinense, no período de agosto/2022 a dezembro/2022, e cujos pais e/ou responsáveis aceitaram responder ao questionário e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

O cálculo amostral foi realizado por uma estimativa do número provável de atendimentos. Sendo o número de atendimentos semanais nos ambulatórios de pediatria = B, e que há dez ambulatórios com atendimento de quatro pacientes cada, tem-se que B = 40. Entretanto, pelo fato de que aproximadamente 50% dos pacientes atendidos pudessem ter mais de seis anos, e aproximadamente metade desse novo restante pudesse ser de pacientes em consultas de retorno, concluiu-se que o número de pacientes enquadrados nos critérios de inclusão que fossem atendidos semanalmente nos ambulatórios (A) era igual a:


A = [(B)/2]/2 = [(10x4)/2]/2 = [40/2]/2 = 20/2 = 10 pacientes semanais.


Sendo o número da amostra (N) igual ao número de pacientes semanais (A) vezes o número de semanas destinadas para coleta de dados (C), obteve-se que:


N = AxC = 10x18 = 180 pacientes.


Entretanto, estimou-se que de um N = 180, 25% dos responsáveis legais dos pacientes não desejassem assinar o TCLE. Logo, o N deste estudo foi de 135 pacientes.

Procedimentos utilizados: Aplicou-se aos pais e/ ou responsáveis um questionário desenvolvido pelas pesquisadoras para avaliação da prevalência do uso de telas na primeira infância, contendo as variáveis: Sexo; Idade; Cor; Renda familiar mensal; Frequência em escola/creche; Período escolar; Tempo diário de exposição às telas; Contexto de exposição às telas; Tipo de tela; Conteúdo visualizado; Presença de supervisão dos pais e/ou responsáveis; Utilização de tela durante refeições; Presença de televisão no quarto; Presença de tempo de interação familiar sem uso de tela; Limitação de tempo para o uso de telas; Exposição passiva às telas; Estímulo à atividade física; Grau de escolaridade dos pais e/ou responsáveis; Conhecimento sobre o limite de tempo máximo de exposição das crianças às telas; Percepção se o uso de telas pode ser prejudicial à saúde do filho. Para confecção deste artigo utilizou-se o checklist Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE).

Método estatístico: Os dados coletados foram analisados com auxílio do software International Business Machines Corporation (IBM) Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 21.0. As variáveis quantitativas foramexpressas pormeio de média e desvio-padrão. As variáveis qualitativas foram expressas por meio de frequência e porcentagem.

Os testes estatísticos foram realizados com um nível de significância α = 0,05 e, portanto, confiança de 95%. A investigação da existência de associação entre variáveis qualitativas e quantitativas categorizadas foi realizada por meio da aplicação dos testes Qui-quadrado de Pearson, Qui-quadrado de Mantel-Haenszel e Razão de Verossimilhança, seguidos de análise de resíduo quando observada significância estatística.

Aspectos éticos: O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e Humanos, sob parecer número 5.551.996. Foi dado procedimento à pesquisa somente após assinatura do TCLE pelos participantes voluntários do estudo.


RESULTADOS

Nesteestudo, 135 crianças dezeroa seisanos foramincluídas na amostra, conforme os critérios de seleção. A maior parte das crianças tinha menos de 2 anos (51,9%) ou entre 2 a 5 anos (40,7%). Não houve diferença significativa de prevalência entre os sexos, 77,8%das crianças erambrancas,e54,1%das famílias dos pacientes tinham renda mensal de um a três salários mínimos. Os detalhes dos fatores sociodemográficos estão na Tabela 1.




O salário mínimo equivale a R$ 1.212,00, valor vigente em 2022 no Brasil conforme o Diário Oficial da União.

Do total de 135 crianças da amostra, 116 estavam expostas às telas, resultando em uma prevalência de 85,92%. Em ordem decrescente de frequência, os principais dispositivos tecnológicos utilizados por elas foram a televisão (73,3%), seguida pelo celular (19,8%), tablet (6%), e computador/ notebook (2%).

O tempo médio diário de exposição às telas encontrado foi de 1,07 horas. Este é um valor aproximado, pois o tempo diário de exposição foi coletado categoricamente (zero, entre zero e uma, uma hora, entre uma hora e duas horas ou mais de 2 horas). Logo, considerou-se uma variância de 1824,179 (DP = 0,71) horas para o cálculo do tempo médio de exposição para a prevalência do uso de telas, conforme o Gráfico 1.




Das 21 variáveis testadas, seis mostraram associação significativa com o tempo de exposição às telas: idade, tipo de tela, frequência em escola/creche, estímulo à atividade física, uso de tela durante refeições, e presença de limite para tempo de telas.

Dentro das características individuais das crianças, encontrou-se associação significativa na variável idade (p<0,001): indivíduos abaixo de dois anos expostos de zero a uma hora; de dois a cinco anos expostos de uma a duas horas; e maiores de seis anos expostos a mais de duas horas.

Quanto ao tempo de tela e dispositivo utilizado, encontrou se significância no uso do tablet e exposição de uma hora, e o uso de computador/notebook e mais de duas horas de tela ( p=0,023), conforme Tabela 2. Relativo à frequência em escolas, crianças que frequentam escola/creche foram associadas a uma a duas horas de exposição, enquanto as que não frequentam se associaram a nenhuma exposição a telas (p<0,001).




Encontraram-se também resultados relevantes em fatores referentes ao ambiente familiar. Crianças estimuladas à atividade física foram associadas à exposição de uma hora de telas (p=0,018), e aquelas com limite para o uso de telas associaram-se ao período entre uma a duas horas (p=0,026). Ademais, observou-se associação entre crianças que utilizam tela durante as refeições e um tempo de exposição de uma a duas horas, e mais de duas horas. Enquanto as que não o fazem foram associadas a um tempo menor, entre zero e uma hora (p=0,002).

Nas demais variáveis pesquisadas, como nível socioeconômico familiar, percepção sobre uso de telas ou escolaridade dos pais e/ou responsáveis, não se encontrou associação estatisticamente significativa (p>0,05). Tais correlações estão descritas nas Tabelas 2 e 3. Na Tabela 3, estão apenas as variáveis de crianças expostas a telas (n = 116).




DISCUSSÃO

Este estudo foi realizado com 135 crianças, objetivando avaliar a prevalência do uso de telas na primeira infância. Com a análise dos dados, concluiu-se que existe uma alta prevalência (85,92%) do uso de telas nessa faixa etária. Quanto ao perfil epidemiológico, este foi predominantemente composto por crianças abaixo de dois anos e renda mensal familiar de um a três salários mínimos. Referente ao sexo, no presente estudo o perfil foi majoritariamente do sexo feminino e não houve diferença de tempo gasto em dispositivos de tela, diferentemente de um estudo no qual o perfil foi predominantemente do sexo masculino (50,2%)16.

Diferentemente da literatura, neste estudo também observou-se uma maior amostragem de uso de telas em indivíduos brancos. Para exemplificar, 73% dos estudos avaliados por uma análise sistemática mostraram associação positiva entre maior tempo de tela e minorias raciais (pretos e hispânicos)17.Tal divergência pode ser explicada pela própria condição demográfica do sul do país, a qual no censo de 2022 apresentou maior índice de brancos (72,6%) quando comparado a pardos (21,7%), pretos (5%), amarelos (0,4%) e indígenas (0,3%)18.

Pôde-se verificar ainda que indivíduos abaixo de dois anos associavam-se à exposição de zero a uma hora, de dois a cinco anos a uma a duas horas, e maiores de seis anos a mais de duas horas. Isso demonstra que a exposição às telas parece aumentar ao longo da infância, assim como observado por estudos prévios, tendo maior prevalência do uso de tela em crianças mais velhas17.

Em contraste a esses achados, estão as recomendações preconizadas pela SBP1. Esta recomenda que o tempo diário de uso de mídia digital para crianças abaixo de dois anos deve ser nulo, de dois a cinco anos inferior a uma hora, e entre seis e dez anos de uma a duas horas; a fim de proporcionar tempo para outras atividades importantes às crianças. Tal aspecto nocivo da exposição antecipada às telas é exemplificado por um recente estudo, no qual pré-escolares com tempo de tela diário superior a uma hora eram mais suscetíveis à vulnerabilidade em todos os cinco domínios de saúde do desenvolvimento: saúde física e bem-estar, habilidade social, maturidade em relação às emoções, evolução da cognição e linguagem, e capacidade de comunicação8.

Os principais dispositivos de tela utilizados pelas crianças desta amostra foram a televisão e o celular. Esse achado corrobora com outro estudo, no qual se identificou que assistir televisão foi a forma mais comum de visualização de tela (44,8%), seguida por dispositivos móveis (30,5%), computador (6,6%) e videogame (0,4%)13. Ademais, aproximadamente 43% das crianças do presente estudo que assistiam tela possuíam televisão no quarto, um fator fortemente associado ao sedentarismo, sobrepeso e obesidade19.

Além disso, o tipo de tela também associou-se a determinado tempo de visualização: o tablet foi associado a uma hora de exposição, enquanto computador/notebook a mais de duas horas (p=0,023). Esse maior tempo de telas em dispositivos móveis é bem descrito em estudo anterior que, dentre 338 crianças avaliadas, observou que aos 4 anos de idade 96,6% utilizavam dispositivos móveis, três quartos possuíam seu próprio aparelho, e a idade do primeiro uso diminuía a cada coorte etária. Tal dado reflete tanto a maior facilidade de acesso a dispositivos móveis no cenário atual como também uma mudança no comportamento social, dado pelo uso de telas cada vez mais precoce20.

Nesta pesquisa encontrou-se ainda significância entre tempo de tela e frequência escolar. As crianças frequentadoras de escola/creche associaram-se a um tempo maior de tela. Tal achado diverge do esperado pela literatura. Em um estudo sobre a exposição problemática à tela (PSE), com escore de 0 a 13, sendo risco alto quando ≥ 7, observou-se que a frequência à creche do jardim de infância associou-se a um risco diminuído de PSE quando comparada à creche domiciliar21. Entretanto, deve-se interpretar os presentes achados com diligência, pois a variável contexto de exposição não apresentou associação significativa com o tempo de tela (p=0,271). Isso pode ser justificado haja vista que a maioria dos pais não conhecia o tempo de tela dos filhos enquanto estavam nas creches/ escolas. Logo, o tempo de tela real dos indivíduos pode ser maior que o referido por eles.

Outrossim, observou-se que crianças estimuladas à atividade física associaram-se a um tempo de telas relativamente menor: uma hora por dia (p=0,018). O que exemplifica a relação inversa entre um ambiente doméstico estimulante à atividade física e o tempo de telas14. No entanto, pôde-se notar também que 20% das crianças entrevistadas não eram estimuladas a exercitar-se. Logo, mesmo que os pais diminuam o tempo de atividades ao ar livre por alguma razão, como uma agenda ocupada22, percebe-se que existe lacuna de desinformação, na qual se pode instituir intervenções para evitar consequências pelo mau uso das telas23.

Em relação às refeições em frente a telas, encontrou se neste estudo que as crianças que utilizavam dispositivos durante as refeições associaram-se ao tempo de tela maior que 2 horas; enquanto aquelas que não utilizavam, ao tempo entre zero e uma hora (p=0,002). Essa relação tem sido descrita por estudo anterior, que, ao analisar 847 crianças de 2 a 5 anos, observou que 55,7% eram expostas à televisão ou outras telas durante refeições, o maior tempo de tela predisse crianças sendo alimentadas diariamente em frente às telas (p<0,001), e que tal hábito aumenta junto à idade (p<0,022) 11.

Também observou-se no presente estudo uma relação significativa entre o limite de tela e um tempo diário de uma a duas horas (p=0,026); o que é de certa forma positivo, tendo em vista a grande prevalência de crianças com mais de duas horas de uso. Assim, as variáveis – limite de tela e refeições em frente às telas – refletem a influência da presença de regras parentais. Kabali et al. (2015)20 observaram que a maioria dos pais dá dispositivos aos filhos para conseguir fazer as tarefas domésticas (70%), manter a criança calma (65%) ou fazê-los dormir (29%). Entretanto, sabe-se que o estilo mais “controlador” relaciona-se à percepção de tempo excessivo de tela, e a presença de regras relaciona-se ao menor tempo de televisão e computador24.

As demais variáveis desta pesquisa, relativas às características intrínsecas das crianças ou ao ambiente familiar, não mostraram associação significativa com a exposição a telas. Primeiramente, mesmo que não se tenha encontrado significância nos fatores referentes apenas às crianças, ou seja, conteúdo visualizado e período escolar, é importante enfatizar que vários estudos já o fazem. Quanto ao conteúdo, é sabido que se a temática for agressiva, antissocial e irrealista, as crianças podem vir a desenvolver problemas comportamentais25. E referente ao período escolar, crianças com frequência menor que 5 horas por dia na pré-escola estão mais suscetíveis a um maior tempo de exposição à televisão, em relação àquelas em período integral14.Assim, estar atento ao conteúdo assistido, como também desligar os dispositivos de tela ao estar em casa são medidas que podem diminuir os riscos associados ao tempo de tela23.

Relativo às variáveis que abrangem fatores dos pais e/ou responsáveis (nível socioeconômico familiar, exposição passiva, escolaridade, tempo de interação familiar, conhecimento sobre limite de tela, supervisão do uso de tela, ou percepção sobre prejuízos dos uso de telas à saúde dos filhos), também não se encontrou associação significativa. No entanto, já existem evidências bem descritas. Por exemplo, Noble et al. (2023)26 demonstraram que a educação dos pais e a renda familiar são responsáveis pela variação individual nas características independentes do desenvolvimento estrutural do cérebro, em regiões de desenvolvimento da linguagem, funções executivas e memória. Ademais, mesmo que 118 responsáveis entrevistados deste estudo tenham respondido que a exposição às telas pode gerar danos, apenas 15 sabiam o limite de tela diário adequado. Isso demonstra que embora a maioria dos pais acredite ser importante um equilíbrio digital na família15, muitas vezes acabam estimulando a visualização de televisão para, por exemplo, fins educativos, um provável benefício27,28.

Portanto, nota-se que o uso problemático de telas relaciona-se a desfechos desfavoráveis à saúde das crianças29. Concomitantemente, crescentes evidências sugerem que a primeira infância é uma fase propícia para implementar intervenções positivas. Dessa forma, é imprescindível que profissionais de saúde estejam cientes dos impactos da má utilização de telas, a fim de diminuir os riscos ao desenvolvimento infantil e estimular uma linha de cuidado através da educação em saúde23. Nesse sentido, vale ressaltar que o médico pediatra tem papel importante, e deve permanecer atento, orientando a família e/ou responsáveis os caminhos para uma utilização benéfica dos meios tecnológicos30.

Algumas limitações reconhecidas no estudo foram ser tipo transversal, o que limita sua capacidade de fazer inferências sobre causa e efeito. Além disso, embora os questionários tenham sido desenvolvidos com base na literatura existente, eles não foram validados, e o tempo de tela não foi determinado objetivamente13. Estudos de longitudinais, como o de coorte, com maior amostra, menos variáveis e questionamentos detalhados, podem possivelmente caracterizar mais efetivamente o uso de telas pelas crianças.

Vale ressaltar, entretanto, que com esta pesquisa se observou um uso de telas na primeira infância altamente prevalente e precoce na população estudada. Os achados de perfil sociodemográfico e as associações entre tempo de tela e fatores predisponentes ampliam consideravelmente a literatura brasileira, podendo auxiliar futuras pesquisas. Isso se dá não só pelo baixo número de estudos acerca desse tema no país, sendo grande parte deles oriundos da América do Norte e Europa, mas também pelo fato de que muitas variáveis analisadas nunca foram avaliadas na região, evidenciando semelhanças e diferenças.


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Universidade do Extremo Sul Catarinense, Curso de Medicina - Criciúma - Santa Catarina - Brasil

Endereço para correspondência:

Bruna Melo Bianchini
Universidade do Extremo Sul Catarinense, Curso de Medicina - Criciúma - Santa Catarina - Brasil. Av. Universitária, 1105, Universitário
Criciúma, SC, Brasil, CEP: 88806-000.
E-mail: bruna.mbianchini@gmail.com

Data de Submissão: 27/03/2024
Data de Aprovação: 05/06/2024