Relato de Caso
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Ano 2021 -
Volume 11 -
Número
3
Tumor primário congênito cardíaco de saco vitelínico - relato de caso e revisão de literatura
Primary cardiac congenital yolk sac tumor - case report and literature review
Bruno Coutinho de Oliveira1; Analiz Marchini Rodrigues1; Carmen Laura Sejas Soliz1; Thiago Luchtemberg de Bem1; Vitor Grossi2; Vicente Odone Filho1
RESUMO
Tumores intracardíacos são raros, especialmente no período neonatal. Apresentamos o caso de um lactente de 1 ano e 11 meses, com diagnóstico de tumor intracardíaco antenatal, junto com revisão literária acerca do tema. O referido tumor evoluiu rapidamente com metástases à época do diagnóstico. Foi realizada biópsia de lesão pulmonar metastática, a qual evidenciou tumor de células germinativas (TCG). O paciente foi submetido a tratamento intensivo e está agora em bom estado, seguindo o tratamento proposto com quimioterapia para TCG.
Palavras-chave:
Células Germinativas, Neoplasias Cardíacas, Diagnóstico por Imagem.
ABSTRACT
Intracardiac tumors are rare, especially in the neonatal period. We present an infant of 1-year and 11 months old with a diagnosis of an intracardiac antenatal tumor, along with literary review on the topic. The referred tumor evolved rapidly with metastases at the time of diagnosis. A biopsy of a pulmonary metastatic lesion was performed, which showed germinative cells tumor (GCT). The patient underwent intensive care treatment, and is now in good condition, following the proposed treatment with chemotherapy for TCG.
Keywords:
Germ Cells, Heart Neoplasms, Diagnostic Imaging.
INTRODUÇÃO
Neoplasias cardíacas são raras, com taxas de prevalência de 0,001 a 0,3% em séries de autópsias1. Tumores intracardíacos são conhecidos desde tempos medievais, permanecendo um desafio diagnóstico e terapêutico2. Não existem grandes estudos acerca do tema, sendo a maioria relatos de caso, particularmente nos tumores malignos2.
A maioria dos tumores cardíacos é benigna (75%), seguido pelo acometimento metastático2,3. Na faixa etária pediátrica, os tumores primários cardíacos mais comuns são rabdomiomas, ao contrário do adulto, onde o mixoma atrial é predominante1,2. A incidência de neoplasia primária cardíaca na pediatria tem aumentado anualmente3.
O quadro clínico depende da localização do tumor e sua relação com dimensões das cavidades cardíacas e estruturas adjacentes. Os pacientes podem apresentar-se desde assintomáticos até com insuficiência cardíaca franca com arritmias e tromboembolismo1.
Neoplasias malignas primárias e secundárias do coração têm prognóstico ruim, necessitando de abordagem multidisciplinar1.
Visto a raridade e apresentação única desta forma de tumor, apresentamos um caso a fim de enriquecer a discussão do tema. Descrevemos os achados clínicos, radiológicos e laboratoriais na investigação de tumores cardíacos congênitos. Para revisão de literatura, foi realizada busca na base de dados PubMed em janeiro de 2019. A busca por “congenital cardiac tumor” obteve 1.778 artigos, para “malignant primary pediatric cardiac tumor” resultou em 69 estudos e para “primary cardiac yolk sac tumor” outros 14. Refinamos a busca para “best matches” e mais recentes artigos.
RELATO DE CASO
Primigesta, na 28ª semana gestacional, realizou ultrassonografia obstétrica em acompanhamento pré-natal no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). O exame fetal revelou presença de massa cardíaca de aproximadamente 2,5x2,4cm (5,35cm3) em septo interventricular, que inicialmente foi diagnosticada como rabdomioma cardíaco.
Após o nascimento, visto lactente assintomática e exame clínico com sopro discreto (2+/6+), optou-se por tratamento conservador, sem intervenção cirúrgica, com consultas e exames de imagem periódicos a fim de acompanhamento. Foi iniciado betabloqueador, visto que massa invadia ambos os ventrículos, reduzindo o volume dos mesmos, mas sem obstrução de via de saída. Por volta de 1 ano de idade, em ecocardiograma (Figura 1) realizado na emergência por dispneia, foi evidenciado aumento da tumoração intracardíaca (5,7x5,4x5,1cm), bem como obstrução das vias de entrada e saída do ventrículo direito. Foi realizada tomografia computadorizada de tórax (Figura 2) evidenciando surgimento de múltiplas lesões, a maioria com sinais de necrose, localizadas nos pulmões e mediastino. Uma biópsia percutânea de um nódulo pulmonar foi realizada.
Figura 1. Ecocardiograma. Presença de massa no septo ventricular de conteúdo heterogêneo. Notar obstrução ao fluxo de saída ventricular.
Figura 2. Tomografia computadorizada (TC) de tórax. Lesão cardíaca melhor vista em VE, com massas pulmonares à direita. Notar também atelectasia em lobo inferior esquerdo.
A análise histopatológica com coloração de hematoxilina e eosina revelou uma neoplasia composta por estruturas tubulopapilares e cordões anastomosados em fundo de estroma mixoide frouxo. As células apresentavam citoplasma eosinofílico e núcleos aumentados, com frequentes figuras mitóticas. As colorações de imunohistoquímica foram difusamente positivas para SALL-4, alfa-fetoproteína e fosfatase alcalina placentária. As células neoplásicas também foram focalmente positivas para OCT4, CDX2, e citoqueratininas de baixo peso molecular (CAM 5.2). Os corantes para S-100, CD30, CD117 (C-KIT), WT-1, TTF-1 e calretinina foram negativos. Investigação clínica posterior revelou dosagem sérica de alfa-fetoproteína de 22.470ng/ml. O diagnóstico de tumor congênito de saco vitelínico primário cardíaco foi realizado, iniciando neste momento tratamento protocolar com quimioterapia (ifosfamida, cisplatina e etoposídeo) para TCG (tumores de células germinativas – protocolo TCG GALLOP 2017)1.
Na presente data, paciente ainda se encontra sob tratamento, em bom estado geral e excelente evolução, com redução importante da tumoração cardíaca (4x3cm sem obstrução de via de saída) e da alfa-fetoproteína (16,1ng/ml).
DISCUSSÃO
Tumores primários cardíacos são raros, especialmente no período neonatal, sendo que a maioria dos casos corresponde aos rabdomiomas, teratomas e fibromas4,5. Tumores do mediastino, particularmente os TCG (tumores de células germinativas), são extremamente raros e geralmente estão localizados no mediastino anterior1. Correspondem de 6 a 18% dos tumores nessa localização. Apresentam picos de incidência na infância e após os 10 anos, com predomínio masculino na adolescência1.
Tumores primários cardíacos congênitos são em sua maior parte benignos, correspondendo aos rabdomiomas6. Quando malignos, são representados em sua maioria pelos sarcomas4. O presente caso trata-se de um tumor embrionário congênito de células germinativas (saco vitelínico), o que o torna relevante pela raridade histológica e localização de apresentação. É importante frisar que a detecção de arritmia no período antenatal torna mandatória a realização de ecocardiografia fetal na tentativa de diagnóstico precoce de anormalidades cardíacas1. Neste caso, o tumor foi um achado em exame de rotina. A maioria dos tumores em pediatria pode apresentar redução volumétrica com o avançar da idade, visto serem benignos3; fato este que justifica e embasa cientificamente a conduta conservadora nos atendimentos iniciais relatados.
Clinicamente, tais lesões podem apresentar sintomas inespecíficos como febre, perda de peso, tosse e sudorese noturna. Dependendo da sua localização podem ocasionar derrame pericárdico (mais comum em linfoma), síndrome de veia cava, ou mais gravemente insuficiência cardíaca, arritmias (por infiltração em circuito neural ou miocárdio) e embolismos. Houve relato de tumor de seio endodérmico intracardíaco com síncope e manifestação epiléptica1,2,3,7. Ainda, o tumor cardíaco pode estar associado a síndromes genéticas como síndrome de Carney, neurofibromatose, esclerose tuberosa (particularmente rabdomiomas)1, síndrome de Gorlin-Goltz e Beckwith-Wiedemann1.
O exame ecocardiográfico é o primeiro passo para obtenção diagnóstica, seguido pela tomografia computadorizada ou ressonância cardíaca. A PET-CT mostrou sensibilidade de 90% em diferenciar tumores benignos de malignos na literatura. A angiografia é importante para descartar estenoses coronárias2.
Tumores cardíacos como rabdomiomas geralmente não necessitam ressecção dada sua involução espontânea; no entanto, o melhor regime terapêutico para tumores cardíacos ainda não é estabelecido, devido ao baixo número de casos. Procedimentos cirúrgicos com ressecção simples ou complexa (auxiliada por circulação de Fontan, quando acometido o lado direito do coração), o uso de coração artificial e ainda o transplante cardíaco podem ser indicados. Os tumores benignos podem ser tratados com ressecção cirúrgica, mas a cooperação interdisciplinar entre oncologistas, cardiologistas, cirurgiões e radiologistas deve ser conjunta, em especial para tumores malignos2.
Resultados cirúrgicos para tumores benignos mostram bom prognóstico, com baixas taxas de recorrência, enquanto os tumores malignos permanecem ruins, sobrevindo óbito por metástases2. Um estudo chinês recente evidenciou uma sobrevida média de 9 meses para tumores malignos a partir do diagnóstico2,3. Em tumores malignos tipo TCG, contudo, a sobrevida global de 60 a 88%, demonstrando que os TCG mediastinais têm prognóstico favorável e não diferem dos tumores de células germinativas em outros locais1.
CONCLUSÃO
A singularidade do caso se apresenta não só pela raridade do tumor, TCG, intracardíaco, em lactente, mas também pelo difícil manejo clínico e condutas multidisciplinares tanto da oncologia quanto de equipe intensiva. Esperamos que este estudo possa também ser discutido e avaliado por colegas que venham a encontrar casos semelhantes, a pensar nesta hipótese como tumor cardíaco.
REFERÊNCIAS
1. Lopes, LF. Protocolo TCG-GALOP-2017: tumores de células germinativas da infância e adolescência. São Paulo: Lemar Editora; 2018.
2. Hoffmeier A, Sindermann JR, Scheld HH, Martens S. Cardiac tumors – diagnosis and surgical treatment. Dtsch Arztebl Int. 2014 Mar;111(12):205-11.
3. Shi L, Wu L, Fang H, Han B, Yang J, Ma X, et al. Identification and clinical course of 166 pediatric cardiac tumors. Eur J Pediatr. 2017 Jan;176(2):253-60.
4. Yuan SM. Fetal primary cardiac tumors during perinatal period. Pediatr Neonatol. 2017 Jun;58(3):205-10.
5. Isaacs Junior H. Fetal and neonatal cardiac tumors. Pediatr Cardiol. 2004 May/Jun;25(3):252-73.
6. Santos MVC, Paiva MG, Macedo CRDP, Petrilli AS, Azeka E, Jatene IB, et al. 1ª Diretriz Brasileira de Cardio-Oncologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Arq Bras Cardiol. 2013 May;100(5 Suppl 1):1-68.
7. Morin MJ, Hopkins RA, Ferguson WS, Ziegler JW. Intracardiac yolk sac tumor and dysrhythmia as an etiology of pediatric syncope. Pediatrics. 2004 Apr;113(4):e374-e6.
1. ITACI - HCFMUSP, Oncologia Pediátrica - São Paulo - São Paulo - Brasil
2. HCFMUSP, Patologia - São Paulo - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Bruno Coutinho de Oliveira
Instituto de Tratamento do Câncer Infantil
Rua Galeno de Almeida, nº148, Pinheiros
São Paulo - SP. Brasil. CEP: 05410-030
E-mail: bco.medrio@gmail.com
Data de Submissão: 09/08/2019
Data de Aprovação: 06/09/2019