ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Acrodermatite enteropática ou síndrome de má absorção secundária à fibrose cística?

Acrodermatitis enteropathica or malabsorption syndrome secondary to cystic fibrosis?

RESUMO

A fibrose cística (FC) é doença multissistêmica que pode acometer vários órgãos, dentre eles o sistema gastrintestinal, fazendo com que os indivíduos com FC tenham dificuldade em absorver diversos nutrientes, podendo acarretar síndrome de má absorção. Outra doença, cujas manifestações cutâneas decorrem de má absorção intestinal é a acrodermatite enteropática, doença genética, autossômica recessiva, que cursa com deficiência de absorção intestinal de zinco. Apresenta-se caso de criança nascida a termo, baixo peso, sem intercorrências clínicas ao nascimento. Foi encaminhada ao centro de referência pediátrico em fibrose cística (FC) aos 5 meses de idade, por alteração no teste do pezinho e no teste do suor, dificuldade no ganho pônderoestatural e esteatorreia clínica. Com a hipótese diagnóstica de acrodermatite enteropática, iniciou-se suplementação oral com gliconato de zinco 1mg/kg/dia, empiricamente, pois o nível sérico estava indisponível. Iniciaram-se outras medidas terapêuticas para fibrose cística, tais como: dieta hipercalórica, suplementação vitamínica, enzimas pancreáticas e aumento do aporte de sal e água na dieta. Observou-se melhora rápida e significativa das lesões. O caso descrito evidencia a importância de se considerar, como diagnósticos diferenciais, a acrodermatite enteropática e a FC.

Palavras-chave: Acrodermatite, Fibrose Cística, Deficiência de zinco.

ABSTRACT

Cystic fibrosis (CF) is a multi-systemic disease, which can affect many organs, such as the gastrointestinal system, making individuals with CF have difficulty absorbing many nutrients, leading to malabsorption syndrome. Another disease whose repercussions derives from bowel malabsorption is the acrodermatitis enteropathica, which is a rare genetic autosomal recessive disorder of zinc deficiency. We present a case of a child born at term, low birthweight, without clinical complications at birth. He was referred to the CF center at 5 months of age, due to alteration with the newborn screening for CF and the sweat test, failure to thrive and clinic steatorrhea. Based on the diagnostic hypothesis of acrodermatitis enteropathica, we initiated oral supplementation with zinc gluconate 1mg/kg/day, empirically, for serum level was unavailable. Therapeutic measures for CF were introduced, such as: hyper caloric diet, vitamin supplements, pancreatic enzymes, increase in salt and water input. Rapid and meaningful improvement of the skin lesions. The case shows the importance to consider acrodermatitis enteropathica and CF as differential diagnosis.

Keywords: Acrodermatitis, Cystic Fibrosis, Zinc Deficiency.


INTRODUÇÃO

A fibrose cística (FC) é uma doença genética autossômica recessiva caracterizada pela disfunção do gene cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR), que codifica uma proteína reguladora de condutância transmembrana de cloro. No Brasil, estima-se que a incidência de fibrose cística seja de 1:7.576 nascidos vivos. Trata-se de uma doença multissistêmica que pode acometer vários órgãos do organismo, dentre eles o sistema gastrintestinal. Devido à alteração nos canais de cloro, os indivíduos com FC têm dificuldade em absorver diversos nutrientes, podendo acarretar síndrome de má absorção1. A acrodermatite enteropática é uma doença genética, autossômica recessiva, que cursa com deficiência de absorção intestinal de zinco2. O zinco é um dos principais elementos químicos no organismo, podendo exercer funções catalíticas, estruturais e regulatórias3,4.


RELATO DE CASO

Criança do sexo masculino, nascida a termo, baixo peso, sem intercorrências clínicas ao nascimento, com dosagem da tripsina imunorreativa alterada no teste de triagem neonatal. Com 2 meses de vida surgiram lesões cutâneas bolhosas, com descamação e crostas. Evoluindo com dificuldade no ganho pônderoestatural e esteatorreia clínica. Somente aos 4 meses, dosou-se o cloro no suor pelo método de condutividade, com resultado anormal. Devido a essa alteração, a criança foi encaminhada a um centro de referência pediátrico em fibrose cística (FC) aos 5 meses de idade. Ao exame físico: peso 4.770g (z -4,36), comprimento 58,4 cm (z -4,11) e índice de massa corporal de 14kg/m2 (z -2,65), cabelos rarefeitos. Em região occipital, apresentava lesão eritematosa associada a crostas hemáticas. Em região perineal, lesões exulceradas e descamativas e, em membros inferiores, pele xerótica, áspera e também áreas de descamação, conforme a Figura 1.


Figura 1. A. Na primeira consulta no centro de referência de fibrose cística do DF, com lesões cutâneas e esteatorreia; B. 30 dias após início do tratamento para FC e da reposição de zinco.



Com a hipótese diagnóstica de acrodermatite enteropática, iniciou-se suplementação oral com gliconato de zinco 1mg/kg/dia, empiricamente, pois o nível sérico estava indisponível. Iniciaram-se outras medidas terapêuticas para fibrose cística, tais como: dieta hipercalórica, suplementação vitamínica, enzimas pancreáticas e aumento do aporte de sal e água na dieta. Observou-se melhora rápida e significativa das lesões após cerca de uma semana do uso. A reposição de zinco foi suspensa após 55 dias, e o paciente não apresentou novas lesões na pele, mantendo-se estável. Confirmada hipótese de FC após a dosagem de cloro no suor pelo método de coulometria.


COMENTÁRIOS

A fibrose cística (FC) pode cursar com insuficiência pancreática exócrina, devendo ser suspeitada na presença de esteatorreia, diarreia crônica, baixo ganho de peso e sinais de hipovitaminose1. A acrodermatite enteropática (AE) é uma doença genética, com herança autossômica recessiva, que cursa com a deficiência de absorção intestinal de zinco. As manifestações clínicas caracterizam-se por dermatite eczematosa e erosiva, alopecia, dificuldade de ganho ponderal, retardo no crescimento, anemia, maior predisposição a infecções, diarreia, entre outros. O tratamento de escolha é a suplementação de zinco, numa dose média de 1 a 2mg de zinco elementar/kg/dia2-4. O paciente em questão apresentava lesões cutâneas exulceradas e descamativas, com distribuição em extremidades e perineal, como vistas nos casos de AE. Sabe-se que na falta do tratamento dessa dermatite com deficiência de zinco, os pacientes evoluem com alopecia e diarreia2, como ocorreu no caso citado. Os sinais e sintomas apresentados nesse caso poderiam corresponder à acrodermatite enteropática, contudo, na presença do diagnóstico de FC, essas manifestações foram relacionadas à síndrome de má absorção secundária à doença de base, tanto que, após a suspensão da reposição de zinco, não houve retorno das lesões como seria esperado nos casos de acrodermatite enteropática. O caso descrito evidencia a importância de se considerar, como diagnósticos diferenciais, a acrodermatite enteropática e a FC. Acredita-se que a suplementação de zinco contribuiu para a melhora clínica mais rápida do paciente, além das outras medidas terapêuticas da FC.


REFERÊNCIAS

1. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Reidi CA, Procianoy EDFA, et al. Diretrizes brasileiras de diagnóstico e tratamento da fibrose cística. J Bras Pneumol. 2017;43(3):219-45.

2. Del Ciampo IRLD, Sawamura R, Ciampo LAD, Fernandes MIM. Acrodermatite enteropática: manifestações clínicas e diagnóstico pediátrico. Rev Paul Pediatr. 2018;36(2):238-41.

3. Maverakis E, Fund MA, Lynch PJ, Draznin M, Michael DJ, Ruben B, et al. Acrodermatitis enteropathica and an overview of zinc metabolism. J Am Acad Dermatol. 2007 Jan;56(1):116-24.

4. Mattede KDS, Lusvarghi BHM, Lusvarghi HM, Lusvarghi BRM. Acrodermatite enteropática símile: relato de caso. Salus J Health Sci. 2016;2(1):11‐6.










1. Hospital da Criança de Brasília, Residência de Pneumologia Pediátrica - Brasília - Distrito Federal - Brasil
2. Hospital da Criança de Brasília, Coordenadora da Pneumologia Pediátrica - Brasília - Distrito Federal - Brasil

Endereço para correspondência:
Sara Habka
Hospital da Criança de Brasília. AENW 3, Lote A - Setor Noroeste
Brasília, DF, Brasil. CEP: 70684-831
E-mail: sarahabka@gmail.com

Data de Submissão: 09/10/2019
Data de Aprovação: 15/12/2019