ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Síndrome de Herlyn-Werner-Wunderlich: um relato de caso

Herlyn-Werner-Wunderlich syndrome: a case report

RESUMO

A síndrome de Herlyn-Werner-Wunderlich é doença congênita rara dos dutos müllerianos, que consiste em útero didelfo, hemivagina obstruída e agenesia renal unilateral; em que o não diagnóstico ou tratamento precoce pode levar a complicações secundárias, tais como: doença inflamatória pélvica, abcesso tubo-ovariano e futura infertilidade. Esse trabalho consiste em um relato de caso de uma criança de 11 anos, G0P0, com dor abdominal em cólicas de forte intensidade e dificuldade miccional. Descrevemos a avaliação, confirmação do diagnostico com exames de imagem e o manejo clínico e cirúrgico da paciente, bem como uma revisão da literatura.

Palavras-chave: Anormalidades da Vagina, Anormalidades do Útero, Anormalidades do Rim, Relato de Caso, Anormalidades Múltiplas.

ABSTRACT

Herlyn-Werner-Wunderlich syndrome is a rare congenital disease of the Müllerian ducts, which consists of didelphys uterus, obstructed hemivagin and unilateral renal agenesis; in which nondiagnosis or early treatment can lead to secondary complications, such as pelvic inflammatory disease, tube-ovarian abscess and future infertility. This work consists of a case report of an 11-year-old child, G0P0, with abdominal pain in cramps of severe intensity and voiding difficulty. We describe the evaluation, confirmation of the diagnosis with imaging tests and the clinical and surgical management of the patient, as well as a literature review.

Keywords: Abnormalities Vagina, Abnormalities Uterus, Abnormalities Kidney, Case Reports, Abnormalities, Multiple.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Herlyn-Werner-Wunderlich (SHWW) caracteriza-se pela presença de septo hemivaginal, útero didelfo e agenesia renal ipsilateral. A síndrome de Herlyn-Werner foi descrita, em 1971, como a presença de agenesia renal e hemivagina cega ipsilateral. Já Wunderlich descreveu em 1976 a associação de aplasia renal direita com útero bicorno e vagina simples na presença de hematocérvice, resultante da falta de comunicação entre o hemiútero direito e a vagina. A junção dessas duas síndromes é denominada SHWW, que resulta de um defeito na embriogênese gênitogonadal, com falha das estruturas mullerianas1-3.

A SHWW é uma variante rara das anomalias müllerianas e as pacientes costumam ser assintomáticas até a menarca. Ao contrário das anomalias congênitas mais comuns do trato genital que cursam com amenorreia, como hímen imperfurado, atresia vaginal e/ou septo vaginal transverso, a SHWW tem a menstruação geralmente normal, associada à dor abdominal cíclica4,5. Isso ocorre pelo fato de apenas um corno uterino estar obstruído. Assim, a paciente menstrua regularmente pelo outro corno3,4.

A SHWW também é conhecida na literatura como a hemivagina obstruída e síndrome de anomalia renal ipsilateral (OHVIRA)5, variantes das anomalias müllerianas. Essas anomalias congênitas ocorrem em 0,1% a 6% das mulheres6-8.

O diagnóstico pode ser retardado pelo uso de anti-inflamatórios não-esteroidais (AINEs) e contraceptivos orais para pacientes que apresentam dismenorreia, podendo mascarar a dor e diminuir ou eliminar as menstruações6,9,10. Quando o diagnóstico é tardio pode levar à infertilidade ou complicações obstétricas. No exame físico é possível palpar uma massa suprapúbica dolorosa e uma massa cística paravaginal. A investigação de imagem pode incluir ultrassonografia (USG), tomografia computadorizada (TC) e ressonância nuclear magnética (RNM) de abdome e pelve, sendo a RNM o padrão-ouro9,11,12.

O objetivo desse relato de caso consiste em apresentar uma síndrome rara, com sinais e sintomas inespecíficos, comumente confundidos com condições fisiológicas ou outras comorbidades especificas do período reprodutivo da mulher. A existência da SHWW deve ser mais difundida entre os pediatras para facilitar o diagnóstico precoce da doença, evitando, assim, as complicações futuras.


RELATO DE CASO

GFSC, de 11 anos, G0P0, encaminhada ao Mário Palmério Hospital Universitário (MPHU), Uberaba/MG, em segundo ciclo menstrual 18 dias após a menarca, sem uso de medicações e cirurgias prévias, devido à dor abdominal em cólicas de forte intensidade, dificuldade miccional e USG de abdome inferior sugestivo de síndrome de Herlyn-Werner-Wunderlich. Ao exame físico, na internação, apresentava hímen integro e pérvio.

A exames de imagem (USG e RNM) de abdome e pelve no início da internação apresentava vagina com duplicação médio-distal com dilatação à esquerda, secundário a conteúdo heterogêneo, conforme apresentado na Figura 1A. Além de útero com dois cornos independentes, sendo o da direita fletido lateralmente, volume aproximado de 17ml e sinal endometrial homogêneo, centrado, medindo 4,0mm de espessura, e o da esquerda, com cavidade endocervical e endometrial distendidas e preenchidas por conteúdo hemático (volume aproximado de 33ml), conforme apresentado na Figura 1B. E uma pequena quantidade de líquido livre no fundo de saco posterior. Além de rim vicariante à direita associado à provável agenesia renal à esquerda.


Figura 1. A. Imagem ultrassonográfica da vagina com duplicação médio-distal com dilatação a esquerda; B. Imagem ultrassonográfica do corno esquerdo de volume aumentado e colo distendido.



Devido a útero didelfo apresentando hematocolpo-hematométrio de moderado volume à esquerda, associado à pequena quantidade de líquido livre no fundo de saco posterior, optou-se por abordagem cirúrgica para drenagem, inicialmente por via vaginal. Como via de acesso ao hematocolpo por via vaginal não foi identificada, optou-se por converter a cirurgia por laparotomia. Foi identificada moderada quantidade de sangue achocolatado em cavidade abdominal, ovários direito e esquerdo e tuba direita sem alterações, tuba esquerda dilatada com presença de material sanguinolento acastanhado em seu interior, além de útero com dois cornos, sendo corno esquerdo dilatado com tamanho aumentado em relação ao corno direito (cerca de 2 vezes o volume do direito). Foi drenado aproximadamente 30ml de sangue enegrecido/achocolatado e espesso, realizado ordenha manual e aspiração com sonda introduzida pela incisão do corno, atingindo extensão até fundo de saco esquerdo e região parametrial esquerda.

Após o procedimento, paciente recebeu alta hospitalar com desogestrel diário, para acompanhamento no ambulatório de endocrinologia ginecológica do MPHU. Ambulatorialmente, optou-se por cessar o uso para acompanhamento de formação de hematocolpo até a formação real de abaulamento da hemivagina esquerda e definição do ponto de entrada para septoplastia e drenagem do hematocolpo.

Após 147 dias do procedimento, paciente retornou em nosso serviço com queixa de dor intensa, do tipo cólica, em baixo ventre. A nova RNM de pelve apresentava útero didelfo com volumoso hematometrocolpo à esquerda exercendo efeito expansivo sobre a cúpula vaginal e estruturas pélvicas. Imagem alongada em fundo cego à esquerda da linha média contendo material hemorrágico podendo corresponder à hemivagina. Componente uterino à direita e ovários desviados anterolateralmente, porém sem alterações morfológicas significativas.

Após o 153º dia foi submetida novamente à drenagem de hematocolpo. Durante o procedimento foi visualizado uma área amolecida lateral à esquerda a parede vaginal, realizado punção da área com aspiração com saída de grande quantidade de coágulo, em média 500ml. E foi feito marsupialização do pertuito.

Paciente permanece em acompanhamento em nosso serviço no ambulatório de endocrinologia ginecológica, regularmente, para seguimento. Última USG realizada apresentava cavidade endometrial com espessura preservada, conforme apresentado na Figura 2. Paciente permanece assintomática desde então, com uso de desogestrel 75mcg diário.


Figura 2. Imagem ultrassonográfica de útero direito desviado lateralmente com cavidade endometrial de espessura preservada e colo de aspecto habitual.



DISCUSSÃO

A American Society for Reproductive Medicine classifica a SHWW como uma anomalia uterina classe III e vaginal classe IIA, devido a uma falha da fusão lateral e vertical das estruturas mullerianas13. A proximidade dos ductos mesonéfricos e dos paramesonéfricos explica a associação entre anomalias do trato genital com anomalias renais, por isso a agenesia renal é encontrada na síndrome10,14,15.

Diferente das outras anomalias do trato genital que cursam com amenorreia, a SHWW apresenta um padrão menstrual normal ou sangramento de pequeno volume10,12,15,16. Além da sintomatologia pouco característica nos primeiros meses, o uso de contraceptivos em pacientes com dismenorreia, podem suprimir o ciclo menstrual e os sintomas de dor tipo cólica e aumento do volume abdominal16.

Ao exame físico, identifica-se massa suprapúbica dolorosa à palpação, podendo ter incontinência urinaria à mobilização. O toque bimanual evidenciou o septo hemivaginal abaulado pelo hematocolpo ou não. Como há diagnóstico em jovens sem sexarca, dificultando o toque bimanual, pode se realizar o toque anal que evidencia o abaulamento vaginal. A investigação inclui USG pélvica e de rins e vias urinária, e o padrão ouro que é a RNM pélvica9,11,12. Nas imagens são evidenciadas a presença de útero didelfo, distensão do corno por hematometra e hematocolpo, hidronefrose e agenesia renal ipsilateral9,12,14,15.

O tratamento tem como objetivo aliviar os sintomas causados por essa distensão do corno uterino e preservar a fertilidade da paciente; além de evitar complicações imediatas, como infecção de urina e sintomas de doença inflamatória pélvica10,14,16,17, e complicações tardias, como piossalpinge, endometriose, aderências pélvicas e abortos espontâneos6,17-19. Deve-se, também, proporcionar à paciente uma vida normal no pós-operatório, com capacidade para manter relações sexuais normais e vida reprodutiva15,17,19.

Na SHWW, o tratamento cirúrgico é necessário e consiste na excisão completa ou marsupialização do septo vaginal, com a drenagem do hematocolpo, podendo ser realizada com preservação do hímen. A hemi-histerectomia, com ou sem salpingooforectomia, raramente é indicada, devendo ser evitada para que se alcancem as maiores chances de sucesso em relação à reprodução. Mesmo o prognóstico sendo desconhecido, o uso da laparoscopia para acesso da anatomia uterina é defendida e utilizada12. Em casos de piometra com piossalpinge complicada, é necessário realizar a hemi-histerectomia com anexectomia, podendo comprometer o futuro da paciente17,18.

Em paciente sem sexarca à histeroscopia com ressecção do septo vaginal pode ser realizada por não alterar a integridade do hímen. Já a histerectomia ipsilateral pode ser realizada em casos de atresia repetitiva e infecção grave, mas não são totalmente recomendadas19. Quando necessário adiar a cirurgia pode-se utilizar análogos do hormônio liberador de gonadotrofinas, com o objetivo de manter a amenorreia18,19.

As portadoras da síndrome devem ser acompanhadas regularmente pela equipe especializada, a fim de evitar possíveis complicações. É necessário, também, uma abordagem multidisciplinar apropriada, uma vez que a doença afeta o sistema renal e pode afetar psicologicamente a paciente.


CONCLUSÃO

As características da SHWW podem atrasar o diagnóstico e por consequência o tratamento, gerando um maior risco de complicações imediatas e tardias. O diagnóstico antes da menarca é raro, e é comum em casos de complicações renais3,4. A prescrição de anti-inflamatórios não-esteroides e contraceptivos orais em pacientes com dismenorreia, além de mascarar a dor aumenta os riscos de complicações9,11,12. Dessa forma, a SHWW deve ser suspeitada em adolescente com massa pélvica, agenesia renal, alterações menstruais e dor pélvica cíclica1-3.

No entanto, deve-se lembrar que a SHWW é subdiagnosticada e, em muitos casos, diagnosticada tardiamente, pois, entre outros fatores, não é muito conhecida no meio pediátrico. O atraso no diagnóstico agrava o prognóstico, com o desenvolvimento de complicações agudas (hematocolpo ou piohematocolpo) ou crônicas, como aderências pélvicas, endometriose e dificuldades para manter a gestação até o parto10,16,17.

Dessa forma, a existência da SHWW deve ser mais difundida entre os pediatras para facilitar o diagnóstico precoce da doença, evitando as complicações futuras. O diagnóstico antes da menarca é um desafio e pode ser realizado se houver alto grau de suspeição.


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1. UNIUBE, Residente - Pediatria - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
2. UNIUBE, Graduanda - Medicina - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
3. UNIUBE, Residente - Ginecologia - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
4. UNIUBE, Staff - Enfermaria Pediátrica - Uberaba - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência:
Aline Mendonça Bernardes
Universidade de Uberaba
Av. Guilherme Ferreira, nº 217, Centro
Uberaba, MG, Brasil. CEP: 38.010-200
E-mail: alinembmed@gmail.com

Data de Submissão: 07/11/2019
Data de Aprovação: 10/05/2020