ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Doença granulomatosa crônica: um relato de caso

Chronic granulomatous disease: a case report

RESUMO

A doença granulomatosa crônica é uma rara doença caracterizada por mutações genéticas ocasionando defeitos na NADPH oxidase dos fagócitos, resultando principalmente em maior predisposição a infecções fúngicas e bacterianas ameaçadoras à vida. Objetiva-se com o presente trabalho relatar um caso de doença granulomatosa crônica diagnosticada em um paciente acompanhado em um instituto pediátrico do Rio de Janeiro. Trata-se de um adolescente do sexo masculino, que quando lactente, começou a apresentar infecções cutâneas de repetição, de difícil resolução, evoluindo com o passar dos anos com abscesso hepático pelo Mycobacterium tuberculosis e pneumonia fúngica grave, até se chegar ao diagnóstico de DGC. No momento, paciente em uso de drogas profiláticas propostas e com quadro clínico controlado. O diagnóstico precoce objetivando iniciar as profilaxias antimicrobiana e antifúngica adequadas é fundamental para a boa condução da doença e, principalmente, para melhora do prognóstico e da qualidade de vida deste paciente.

Palavras-chave: Doença Granulomatosa Crônica, Antibioticoprofilaxia, Infecções Oportunistas, Síndromes de Imunodeficiência.

ABSTRACT

Chronic granulomatous disease is a rare disorder characterized by genetic mutations that causes defects in the NADPH oxidase of phagocytes, resulting mainly in higher predisposition to fungal and bacterial infections that threatens life. Our objective, with this study, is to report a case of chronic granulomatous disease diagnosed in a patient followed in a pediatric institute in Rio de Janeiro. A male teenage, presented while an infant with many recurrent, difficult to solve cutaneous infections. The patient evolved, as years passed by, with Mycobacterium tuberculosis hepatic abscess and severe fungal pneumonia, before confirming the CGD diagnosis. Currently, the patient is using the indicated prophylactic drugs and his clinical condition is controlled. Early diagnosis aiming to start suitable antimicrobial and antifungal prophylaxis is fundamental to achieve better disease control and mainly to improve patients’ prognosis and quality of life.

Keywords: Granulomatous Disease, Chronic, Antibiotic Prophylaxis, Opportunistic Infections, Immunologic Deficiency Syndromes.


INTRODUÇÃO

A doença granulomatosa crônica (DGC) é uma doença genética heterogênea que afeta cerca de 1:200.000 habitantes vivos nos EUA, causada por defeitos na NADPH oxidase dos fagócitos (phox)1,2. Esses defeitos resultam na incapacidade dos fagócitos de destruírem certos patógenos, levando a infecções fúngicas e bacterianas de repetição, muitas vezes fatais, e à formação de granulomas sistêmicos3,4.

Os sítios mais comuns de infecção são pulmões, pele, linfonodos e fígado5.

Seu diagnóstico consiste na realização de testes que mensuram a função de digestão intracelular de fagócitos, como o teste da dihidrorodamina (DHR) e é confirmado por estudos de genotipagem6.

O controle da doença é feito com profilaxia antifúngica e antimicrobiana, além do tratamento oportuno de infecções agudas3,5.

A descrição do caso proposto objetiva elucidar esta rara doença, demonstrar a gravidade das infecções que ela pode ocasionar, bem como apontar a importância do controle e acompanhamento adequado do paciente, evidenciando como a boa condução da doença contribui para a melhora do prognóstico e da qualidade de vida.


RELATO DE CASO

Paciente de 14 anos iniciou acompanhamento no serviço de imunologia em instituto de pediatria, em setembro de 2017, devido a quadro de infecções de repetição.

Durante o período da primeira infância apresentou diversas infecções cutâneas de difícil cicatrização, com uso frequente de antibióticos; aos 10 anos, contactante de parente com tuberculose, evoluiu com abscesso hepático por Mycobacterium tuberculosis, diagnosticado através de biópsia hepática. Nesta ocasião, recebeu esquema RIP por seis meses, com resolução do quadro; aos 12 anos iniciou quadro de febre persistente refratária a antibióticos comuns, emagrecimento importante e sintomas respiratórios. Recebeu o diagnóstico inicial de pneumonia comunitária complicada com derrame pleural, e após 10 dias de amoxicilina-clavulanato venoso, a febre persistiu e evoluiu com deterioração do estado geral, denomegalia cervical e hepatoesplenomegalia. Exames revelaram pesquisa para TORCH, hepatites virais e HIV negativos, PPD não reator, BAAR de escarro (três amostras) negativo. Ultrassonografia de tórax compatível com consolidação pulmonar, sem áreas sugestivas de necrose. Após 48 horas afebril, recebeu alta. Um mês após a febre retorna, associada à dor em hemitórax direito, tosse produtiva e novo emagrecimento. Reinternado para elucidação diagnóstica e aventada a hipótese de o paciente apresentar síndrome de imunodeficiência. Realizada tomografia computadorizada de tórax, com imagem de árvore em brotamento, opacidades em vidro fosco e imagem cística justa cisural em segmento ápicoposterior do lobo superior esquerdo, sugestiva de pneumonia fúngica. Sorologias para histoplasmose, aspergilose e paracoccidioidomicose negativas. Foi iniciado tratamento com itraconazol e amoxicilina-clavulanato, evoluindo com resolução do quadro.

Aos 13 anos, paciente apresentou hidroadenite supurativa em axila direita, com febre refratária à cefalexina ambulatorial. Necessitou de esquema venoso com oxacilina em altas doses para resolução.

Com base no histórico do paciente, foi realizada no serviço especializado dosagem de imunoglobulinas, perfil linfocitário e resposta vacinal, com resultados normais e DHR alterado, configurando o diagnóstico de DGC. Iniciou-se sulfametoxazol-trimetropima profilático em conjunto com o itraconazol. Atualmente, o paciente continua em acompanhamento, em uso do esquema profilático, sem apresentar novos episódios infecciosos ou novas internações.


COMENTÁRIOS

A DGC foi primeiramente identificada e descrita na década de 1950, em uma criança de 12 meses de idade em Minnesota, que se apresentou com uma clínica exuberante, incluindo linfadenite crônica supurativa, hepatoesplenomegalia, infiltrados pulmonares e dermatite7.

Embora sua incidência varie de acordo com a etnia, a sua estimativa é de 1 para 200.000 nascidos vivos. O paciente do caso é do sexo masculino, e estudos demonstram que homens são mais afetados que mulheres em uma proporção de 2:1, devido ao modelo predominante de transmissão genética (doença ligada ao X)7.

O sistema imune é um complexo sistema capaz de reconhecer uma grande variedade de agentes externos, através de diferentes processos biológicos. A geração e a liberação de espécies reativas de oxigênio (ROS) na forma de uma explosão oxidativa representa o principal mecanismo pelo qual as células fagocíticas destroem os patógenos. Por outro lado, defeitos no equilíbrio oxidativo também estão implicados na patogênese de complicações inflamatórias, que podem afetar a função de vários sistemas orgânicos. A NADPH oxidase (NOX) tem um papel fundamental na produção de ROS e defeitos nas suas diferentes subunidades levam ao desenvolvimento da DGC9.

A ativação da NOX do fagócito requer estimulação dos neutrófilos e envolve a união de subunidades essenciais da membrana e citoplasmáticas (p47phox, p67phox, p22phox, p40phox, gp91phox), desempenhando um papel fundamental em matar os microrganismos nos fagócitos8,9.

A doença é causada por genes que afetam um cromossomo ligado ao X ou três cromossomos autossômicos recessivos4. A DGC ligada ao X é causada por mutações no gene CYBB, que codifica a proteína gp91phox; a forma autossômica recessiva se deve a mutações no gene CYBA (codifica a proteína p22phox), NCF1 (codifica a proteína p47phox), NCF2 (codifica a proteína p67phox) ou NCF4 (codifica a proteína p40phox)3. Aproximadamente dois terços dos casos de DGC nos EUA são causados por mutações no CYBB. Mutações no NCF1 são a segunda maior causa de DGC5,10. A DGC ligada ao X é mais comum em áreas com miscigenação, enquanto que a forma autossômica recessiva é mais encontrada em áreas com histórico de consanguinidade8.

Levando em conta o paciente do caso, supomos que o mesmo apresenta uma doença ligada ao X. Embora não seja de nosso conhecimento a origem genética de seus familiares, sabemos que não há história de consanguinidade em sua família, além de ter sido gerado em um dos países mais miscigenados do mundo.

Crianças com DGC apresentam infecções fúngicas e bacterianas de repetição. As infecções são causadas por microrganismos catalase positivos, e os sítios mais comuns são pulmões, pele, linfonodos e fígado. Na América do Norte e na Europa, os patógenos mais frequentes são os Aspergillus spp., Staphylococcus aureus, Burkholderia cepacia, Serratia marcescens, Nocardia spp. e Salmonella. Em países em desenvolvimento, o Bacilo de Calmette-Guerin (BCG) e o Mycobacterium tuberculosis são importantes patógenos. Há uma variedade de bactérias que são virtualmente patognomônicas para o diagnóstico de DGC (Chromobacterium violaceum, Francisella philomiragia, Granulibacter bethesdensis)5,6. Observa-se que o paciente do caso apresentou infecções tanto bacterianas quanto fúngica invasiva, acometendo os principais sítios citados (pulmão, pele e fígado). O patógeno Mycobacterium tuberculosis, prevalente no Brasil, acometeu o paciente, que era contactante de um caso de tuberculose sem tratamento adequado. Isso mostra a importância dos dados epidemiológicos na condução do caso clínico.

A DGC tem a maior prevalência de infecções fúngicas invasivas dentre todas as imunodeficiências primárias, e Aspergillus fumigatus seguido pelo A. nidulans, os patógenos isolados mais comuns. Depois do Aspergillus spp., Rhizopus spp. e Trichosporon spp. são os fungos mais comumente identificados em pacientes com DGC5,6.

Os sintomas aparecem tipicamente nos dois primeiros anos de vida e a idade média de diagnóstico é de 2,5-3 anos de vida1. No caso, seu diagnóstico final foi firmado tardiamente, aos 14 anos, apesar de os sintomas iniciais terem iniciado ainda na primeira infância.

Em nível celular, a DGC pode ser diagnosticada através da mensuração da capacidade dos leucócitos fagocíticos em formar superóxido ou peróxido de hidrogênio1. Ensaios bem conhecidos para medir a atividade de NOX são o teste da redução do citocromo c e do nitro-blue tetrazolium (NBT), ambos mensuram o superóxido. O teste de dihidrorodamina-1,2,3 (DHR) é um estudo bastante conhecido que mensura o peróxido de hidrogênio neste contexto2, sendo hoje considerado o padrão ouro para o diagnóstico de DGC6.

Achados positivos devem ser confirmados por um teste adicional, tal como a genotipagem ou o immunoblotting1,4.

O paciente teve seu diagnóstico confirmado pelo DHR, porém não foi feita a genotipagem como teste adicional, devido à dificuldade de se realizar esse exame em nosso meio. Sua realização seria indicada, porém não essencial para definição diagnóstica.

O manejo da DGC se baseia na profilaxia antifúngica e antibiótica indefinidamente; diagnóstico precoce de infecções; manejo agressivo das complicações infecciosas. As medicações recomendadas para uso por provarem reduzir o risco de infecções graves são o sulfametoxazol-trimetropima (SMX-TMP) (5mg/kg/dia 12/12h) e o itraconazol (5mg/kg/dia 24/24h)1. O uso do IFN gama como profilaxia ainda é controverso2,5,10. Atualmente, várias pesquisas indicam o benefício do uso dos esteroides em conjunto com antimicrobianos para tratar casos de inflamação exacerbada5.

O transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) é bem descrito como potencialmente curativo na DGC (>90%). O transplante como uma opção precoce de tratamento vem ganhando espaço, com altas taxas de sucesso, sendo benéfico não somente na prevenção de complicações infecciosas e inflamatórias, mas também na redução da exposição às medicações profiláticas1,5,8,10; constitui a única terapia curativa da DGC8.

A terapia gênica é uma alternativa atraente ao TCTH, sendo uma opção para pacientes sem doadores compatíveis. Conforme a tecnologia de reparo gênico se torna mais avançada, a edição do DNA usando a repetição curta palindrômica/CRISPR (CRISPR/Cas9) poderá ser usada no reparo de genes defectivos em casos de DGC ligada ao X. Este método de terapia gênica demonstrou restaurar a NADPH oxidase celular in vitro1,8.

Nosso paciente está em uso das profilaxias antimicrobiana e antifúngica desde o diagnóstico da DGC há cerca de um ano e, desde então, não apresentou novos episódios de infecção, comprovando a eficácia das medicações indicadas. Neste tempo, pudemos observar a melhoria da qualidade de vida do adolescente durante suas consultas ambulatoriais.


REFERÊNCIAS

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5. Arnold DE, Heimall JR. A review of chronic granulomatous disease. Adv Ther. 2017 Dez;34(12):2543-57.

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9. Giardino G, Cicalese MP, Delmonte O, Migliavacca M, Palterer B, Loffredo L, et al. NADPH oxidase deficiency: a multisystem approach. Oxidative Med Cell Longev. 2017;2017:ID4590127.

10. Thomsen IP, Smith MA, Holland SM, Creech B. A comprehensive approach to the management of children and adults with chronic granulomatous disease. J Allergy Clin Immunol Pract. 2016 Nov/Dez;4(6):1082-8.










Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, Alergia e Imunologia Pediátrica - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Endereço para correspondência:
Tathiana Silva de Santana Constantino
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira
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E-mail: tathiana.santana@yahoo.com.br

Data de Submissão: 01/12/2019
Data de Aprovação: 15/02/2020