ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Cirrose hepática secundária a doença hepática gordurosa não alcoólica em uma criança de 10 anos de idade: relato de caso e revisão da literatura

Liver cirrhosis secondary to nonalcoholic fatty liver disease in a 10-year-old child: a case report and review of the literature

RESUMO

A doença hepática gordurosa não alcoólica é uma das principais patologias hepáticas no mundo. Paralelamente ao aumento da prevalência de obesidade e outros componentes da síndrome metabólica, a patologia em pauta é cada vez mais reconhecida em crianças e se tornou um fenômeno preocupante. Embora fibrose seja comum em esteato-hepatite não alcoólica pediátrica, cirrose é uma condição raramente relatada nesse grupo etário. O presente artigo relata o caso de uma criança com obesidade mórbida e diabetes tipo 2 que desenvolveu cirrose hepática a partir de esteato-hepatite não alcoólica aos 10 anos de idade, além de apresentar uma revisão da literatura acerca do tema.

Palavras-chave: Obesidade Pediátrica, Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica, Diabetes Mellitus, Cirrose Hepática.

ABSTRACT

Nonalcoholic fatty liver disease is a major cause of liver disease worldwide. In parallel with the increasing prevalence of obesity and other components of the metabolic syndrome, it is increasingly recognized in children and has become a worrying phenomenon. Although fibrosis is common in pediatric nonalcoholic steatohepatitis, rarely cirrhosis has been reported in this age group. In this paper, a child was reported with morbid obesity and type 2 diabetes, who developed liver cirrhosis from nonalcoholic steatohepatitis at the age of 10 years old, providing a review of the literature.

Keywords: Pediatric Obesity, Non-Alcoholic Fatty Liver Disease, Diabetes Mellitus, Liver Cirrhosis.


INTRODUÇÃO

A epidemia de obesidade infantil é um dos maiores problemas globais de saúde pública. A obesidade é um fator de risco para doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA), termo que se refere à esteatose hepática crônica (deposição de lípides em mais de 5% dos hepatócitos), após outras causas secundárias de esteatose (tais como hepatite viral, hepatite autoimune, medicamentos esteatogênicos, consumo de álcool ou erros inatos do metabolismo) terem sido descartadas1.

A DHGNA é a causa mais comum de doença hepática em crianças e sua prevalência tem crescido paulatinamente. A fisiopatologia, história natural e progressão da doença ainda requerem maiores esclarecimentos, mas a DHGNA pediátrica pode representar um fenótipo mais grave que se beneficiia de identificação e manejo precoces, além de meticuloso monitoramento clínico2. O presente artigo relata o caso de uma criança com obesidade mórbida e diabetes tipo 2 que desenvolveu cirrose hepática a partir de esteato-hepatite não alcoólica aos 10 anos de idade.


RELATO DE CASO

O paciente era uma criança do sexo feminino nascida a termo, adequada para a idade gestacional, exclusivamente amamentada até os seis meses de idade, que desenvolveu obesidade durante o primeiro ano de vida. Aos oito anos de idade, a criança foi trazida ao hospital por conta de vômitos e foi diagnosticada com diabetes tipo 2 (cetoacidose diabética foi descartada e, à época, HbA1c estava em 10,6%, e insulina em 30,7 uUI/mL). O seguimento da paciente foi irregular. A criança faltou a várias consultas médicas e apresentou baixa adesão a intervenções de estilo de vida e farmacológicas. Aos 10 anos de idade ela foi trazida para uma consulta com o endocrinologista. Seu peso e estatura eram 86,6 kg e 152 cm (percentil 95 no gráfico de estatura para idade da OMS) e seu índice de massa corporal (IMC) era 37,48 kg/m2 (> percentil 99 no gráfico de IMC por idade da OMS). Exame abdominal revelou discreta hipersensibilidade no quadrante superior direito e hepatoesplenomegalia. Ela também apresentava acantose nigricans nas fossas cervical, axilares e antecubitais.

Seu histórico clínico era negativo para consumo de drogas, exposição parenteral a hemoderivados ou substâncias ilegais. Ela era não tinha dismorfismos e não apresentava sinais clínicos de distúrbios genéticos. A família não tinha histórico de doença hepática. Resultados dos exames laboratoriais: glicose 288 mg/dL, HbA1c 10,7%, albuminúria 61,5 mg/L, aspartato aminotransferase (AST) 66 U/L, alanina aminotransferase (ALT) 69 U/L, gama-glutamil transpeptidase 79 U/L, fosfatase alcalina 157 U/L, bilirrubina total 0,6 mg/dL, lipase 45 U/L, creatinina 0.4 mg/dL, colesterol total 147 mg/dL, HDL 27 mg/dL, triglicérides 246 mg/dL, RNI 1.13, tempo de protrombina (TP) 15,3 s e atividade PT 81%. Outras causas de doença hepática crônica foram descartadas.

Ultrassonografia abdominal mostrou um fígado com 21 cm no nível do lobo esquerdo, com contornos ligeiramente serrilhados e bordas arredondadas, com ecogeneicidade extremamente elevada, grau III / III; o lobo direito media 18 cm (Fig. 1); vias biliares não dilatadas e veia porta com calibre normal (0,7 cm); baço homogêneo com 19 cm; ausência de ascite ou adenomegalia. Biópsia hepática demonstrou cirrose micronodular com septos espessos e esteato-hepatite com atividade discreta - NAS (NAFLD Activity Score) 5 (esteatose 3, inflamação lobular 1, balonamento 1) (Fig. 2). Polissonografia revelou sinais compatíveis com disfunção respiratória obstrutiva moderada durante o sono. Os parâmetros da ecocardiografia se situaram no limite da normalidade para a faixa etária. Videoesofagogastroduodenoscopia realizada para descartar varizes esofágicas apresentou achados normais.


Figura 1. Ultrassonografia abdominal.



Figura 2. Patologia - biópsia hepática.



Foi proposto um programa multidisciplinar para redução ponderal com a participação de psicólogo, nutricionista, médico, enfermeira e fisioterapeuta, que incluía dieta hipocalórica de 1000 kcal/dia, exercícios e tratamento farmacológico – topiramato 100 mg, fluoxetina 10 mg, metformina 850 mg 3 vezes ao dia e enalapril 5 mg (para albuminúria). Foi atingida perda ponderal de 12,3% e a paciente chegou a pesar 75,9 kg no segundo mês de tratamento. À época, em comparação a ultrassonografia prévia, houve também redução da hepatomegalia (lobo esquerdo passou de 21 cm para 15,2 cm e lobo direito de 18 cm para 16,4 cm); HbA1c 5,7%; ALT 28 U/L; AST 30 U/L.


DISCUSSÃO

Estima-se que cerca de 25% da população mundial sofra de DHGNA. Embora a maioria dos casos ocorra em adultos, a DHGNA é atualmente a principal doença hepática crônica em populações pediátricas em todo o mundo3,4. Estimar a prevalência de DHGNA em crianças é difícil, principalmente por conta da variação no delineamento dos estudos, métodos de referência e limiares de detecção. Nos EUA, a prevalência varia de 7,6% na população geral, 34,2% em estudos baseados em clínicas para obesidade infantil, a 76% em estudos com pacientes pediátricos com obesidade grave submetidos a cirurgia bariátrica2,5. Além disso, a esteato-hepatite não alcoólica (EHNA), um fenótipo mais grave de DHGNA definido por achados histológicos de inflamação, com ou sem lesão de balonamento nos hepatócitos e fibrose, é a indicação de maior crescimento nos casos de transplante hepático em jovens adultos nos EUA2,6.

A DHGNA resulta da combinação de influências ambientais e predisposição genética. Os fatores de risco incluem obesidade, diabetes, hiperlipidemia e pan-hipopituitarismo. Vários estudos exploraram sua associação a outros fatores como o microbioma intestinal, epigenética e determinantes de risco nutricionais, como frutose e adição de açucares1,7. A história natural dessa comorbidade em crianças não é bem descrita. Os casos são assintomáticos na maioria da população pediátrica, mas, quando presentes, os sintomas incluem desconforto abdominal, fadiga e irritabilidade. A paciente do presente estudo apresentava acantose nigricans, um sinal frequente que reflete a associação entre DHGNA e resistência à insulina.

Em casos raros, a doença pode apresentar progressão rápida em crianças, levando a cirrose e complicações fatais1. Sharma et al. relataram um caso de cirrose hepática secundária a DHGNA em uma menina do Oriente Médio com 12 anos de idade com IMC de 52 kg/m2, diabetes, com apneia obstrutiva do sono grave e hipoventilação central8. Molleston JP descreveu o caso de um menino hispânico de 10 anos de idade com IMC de 32 kg/m2 que apresentava fadiga e aminotransferases elevadas, com biópsia hepática compatível com cirrose9. Os mesmos autores também relataram o caso de um menino de 13 anos de idade que ganhou mais de 30 kg e desenvolveu diabetes mellitus após a ressecção de um grande craniofaringioma, com hipopituitarismo e diabetes insipidus no pós-operatório. Aos 14 anos de idade, ele desenvolveu sangramento varicoso, encefalopatia discreta e ascite, com histologia hepática compatível com cirrose9.

Exame de triagem para ALT é recomendado para crianças a partir de nove anos de idade em casos de obesidade (IMC ≥ percentil 95) ou sobrepeso (IMC ≥ percentil 85 e < percentil 94) com fatores de risco adicionais. Triagem também é aconselhada para pacientes mais jovens com obesidade grave; com histórico familiar de DHGNA; ou com hipopituitarismo. Recomenda-se utilizar o limite superior da normalidade de 22 U/L para meninas e 26 U/L para meninos. Em caso de resultados normais, o exame de ALT deve ser repetido a cada dois ou três anos caso os fatores de risco persistam ou se houver piora clínica. Ultrassonografia não é recomendada como exame de triagem para DHGNA na população pediátrica2.

Uma vez que a elevação crônica da ALT é detectada, é importante excluir outras causas de lesão hepática. Métodos baseados em ressonância magnética conseguem detectar e quantificar esteatose hepática em crianças e são mais precisos que ultrassonografia. Biópsia hepática ainda é o padrão diagnóstico para DHGNA e de verificação da gravidade do acometimento2.

Controle ponderal com enfoque em modificações de estilo de vida é o tratamento estabelecido para DHGNA. Em muitos casos é recomendável evitar bebidas adoçadas com açúcar, consumir dietas balanceadas, realizar atividades físicas de intensidade moderada a alta diariamente, reduzir o tempo de tela (para não mais do que duas horas por dia) e estimular o engajamento familiar10. Os pacientes devem ser orientados a evitar o consumo de álcool e se vacinar contra hepatite A e B.

Nenhuma medicação ou suplemento é atualmente recomendado para o tratamento de rotina da DHGNA pediátrica. Estudos sobre terapias farmacológicas incluem metformina, bitartarato de cisteamina, ácido ursodesoxicólico, suplementos probióticos e de ômega-3, com resultados variáveis e inconclusivos11. Tratamento com vitamina E parece melhorar alguns dos parâmetros histológicos da DHGNA em crianças, mas as evidências são limitadas; pode haver efeitos adversos de longo prazo e seu impacto clínico ainda não foi estabelecido11. Em adultos que sofrem de diabetes mellitus e EHNA, pioglitazona e liraglutida melhoram fibrose, inflamação e esteatose, mas esses medicamentos não são aprovados para uso na população pediátrica.

Cirurgia para perda de peso é um possível tratamento a ser considerado para vários pacientes adolescentes obesos sem resposta a tratamento não cirúrgico, mas há poucos dados a respeito da melhora da EHNA após cirurgia bariátrica nessa população. Além disso, o seguimento de crianças e adolescentes submetidos a cirurgia bariátrica demonstrará seus desfechos clínicos na idade adulta12,13.

Embora mudanças na ALT não necessariamente se correlacionem com gravidade da doença, esse parâmetro deve ser avaliado em associação ao histórico clínico do paciente e exame físico para fins de monitoramento do tratamento. A normalização da ALT ou sua redução em mais de 50% são utilizados como parâmetro de melhora da DHGNA em ensaios clínicos. Particularmente em crianças com DHGNA avançada em biópsias anteriores ou com piora clínica, uma nova biópsia deve ser considerada.

Na população pediátrica, a DHGNA é subdiagnosticada e subtratada. Pesquisas futuras devem se concentrar em abordagens farmacológicas inovadoras e no desenvolvimento de estratégias para o tratamento de comorbidades e promoção da aderência a modificações de estilo de vida. O presente relato de caso demonstra o rápido desenvolvimento da cirrose em uma criança obesa e diabética, enfatizando a importância do monitoramento cuidadoso de crianças com fatores de risco, uma vez que a EHNA pode não ocorrer de forma indolente nessa população; a progressão para cirrose, embora rara, pode ocorrer e implica em pior prognóstico.


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1. Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Serviço de Endocrinologia - porto alegre - rio grande do sul - Brasil
2. Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Serviço de Endocrinologia Pediátrica - porto alegre - rio grande do sul - Brasil

Endereço para correspondência:

Leila Cristina Pedroso de Paula
Hospital de Clínicas de Porto Alegre
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Porto Alegre - RS, Brasil. CEP: 90035-903
E-mail: lpaula@hcpa.edu.br

Data de Submissão: 15/08/2019
Data de Aprovação: 10/09/2019