Ponto de Vista - Ano 2014 - Volume 4 - Número 2
Crianças, tapas, surras e humilhações
Children, slapping, spanking and humiliation
Niños, guantazos, zurras y humillaciones
Pesquisas científicas provam, à saciedade, os malefícios na vida dos que, na infância, sofreram castigos físicos e psicológicos. Especialistas que se dedicaram à questão da violência contra crianças e adolescentes já comprovaram, com base em estudos clínicos, que crianças vítimas de maus-tratos carregam, pela vida afora, males os mais diversos, destacando-se, contudo: terrores, infelicidades, depressão, angústia, estresse, medo.
Lamentavelmente, nos consultórios e serviços de saúde, atendemos, cotidianamente, casos de violência cometida contra crianças e adolescentes no âmbito das relações familiares. Há, evidentemente, inúmeros fatores predisponentes, mas não uma relação obrigatória de causa e efeito. São muitos os adultos que em criança sofreram maus-tratos e que, escaldados, não replicam o modelo agressor.
Ao longo de anos, instituições que representam segmentos organizados da sociedade civil dedicaram-se a combater o hábito de bater como ferramenta pedagógica, tema que, em virtude das suas repercussões na vida dos cidadãos que sofreram ou estão a ser submetidos a abusos, tornou-se um item tangível na agenda social do país.
O direito, que muitos adultos acreditam ter, de castigar crianças, tanto física quanto psicologicamente, estrutura-se no discurso de que a criança apanha porque merece. Isso leva a vítima a acreditar que é merecedora de maus-tratos. Da palmada, que nada mais é do que uma pancada, à tortura de ser seviciada com uma colher em brasa, o caminho pode ser, muitas vezes, mais curto do que parece.
Quando uma criança externa que apanha porque merece, está expondo indesejável sintoma de baixa autoestima, que compromete sua plenitude ao chegar à idade adulta.
Em 1979, quando o Estado sueco tomou a decisão de extirpar os maus-tratos físicos e psicológicos do dia-a-dia das crianças, a decisão causou estranheza, na medida em que, por força de uma cultura adultocêntrica, pais e mães imaginavam-se proprietários dos filhos, deles podendo dispor como melhor lhes conviesse.
Hoje, 38 países, incluindo o Brasil, seguindo as recomendações do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, tomaram a iniciativa de modernizar seus diplomas legais voltados para a proteção de crianças e adolescentes, a fim de eliminar o castigo violento e humilhante de crianças.
Garantir essa salvaguarda constitucional é, para quem trabalha com crianças e adolescentes, primordial. E não apenas para possibilitar, mediante a oferta de campanhas de esclarecimento permanentes e programas de capacitação de profissionais das áreas de saúde, educação e direitos humanos, a transformação de um ambiente e de uma cultura anacrônica, palmatorial.
Extinguir o hábito de adultos baterem em crianças em virtude de um momento de desequilíbrio emocional é o caminho mais curto para reduzir a agressividade que está a caracterizar a sociedade brasileira.
Crianças e adolescentes são, como qualquer outra pessoa, sujeitos de direito. É bom lembrar que até os animais irracionais, protegidos desde a década de 1930 por diploma federal, têm o direito de serem orientados com atenção, o que não significa, do ponto de vista educacional, abrir mão de rigor e método nas relações familiares e escolares.
Educar exige não apenas paciência, mas, também, apego aos bens maiores do humanismo. A lei Menino Bernardo, recém-sancionada pela Presidente da República, é clara tentativa de desqualificar a questão dos maus-tratos como forma de educar, não vai transformar as relações entre pais e filhos, entre adultos e crianças, por um passe de mágica.
Mas uma vez aprovada e sancionada pela Presidente, implementada pelo Estado, por seus meios, se consolidará como instrumento de profunda transformação. E será consagrado como a lei que veio, enfim, para educar.
Maiores informações no site da Rede Não Bata - Eduque
(http://www.naobataeduque.org.br/)
Médica pediatra do Instituto Fernandes Figueira (FIOCRUZ), diretora da Sociedade Brasileira de Pediatria