ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Tireoidite de Hashimoto após quadro inicial de doença de graves: relato de caso

Hashimoto thyroiditis after an initial graves disease: case report

RESUMO

INTRODUÇÃO: A tireoidite de Hashimoto (TH) e a doença de Graves (DG) são patologias autoimunes da tireoide frequentes na prática médica, no entanto, o desenvolvimento espontâneo de hipotireoidismo devido à tireoidite autoimune após um quadro inicial de DG é pouco frequente, principalmente em crianças, sendo a patogênese dessa manifestação pouco conhecida.
MÉTODOS: Relatar o caso clínico de uma paciente com DG com rápida evolução para um quadro de TH.
RELATO DE CASO: Menina com 11 anos de idade, apresentou-se com quadro inicial de DG, evoluindo um quadro de TH poucos meses após seu diagnóstico inicial e tratamento. Evidenciou-se o espectro de manifestações clínicas, bem como os exames laboratoriais.
DISCUSSÃO: A doença de Graves e a tireoidite de Hashimoto são manifestações opostas dentro do espectro de doenças tireoidianas autoimunes, podendo ocorrer a migração de um polo para outro, porém essa manifestação tem sido pouco relatada na literatura.
CONCLUSÃO: Tendo em vista a possível conversão de um quadro de DG para uma TH, a monitorização da função tireoidiana e de possíveis manifestações clínicas em portadores de DG mesmo após remissão inicial com tratamento medicamentoso deve ser considerada.

Palavras-chave: Doença de Graves, Doenças Autoimunes, Hipotireoidismo, Hipertireoidismo, Doença de Hashimoto.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Hashimotos thyroiditis (TH) and Graves disease (GD) are common autoimmune thyroid disorders in medical practice; however, spontaneous transformation of GD into hypothyroidism due to autoimmune thyroiditis is uncommon, especially in children. Thus, being a rare entity, the pathophysiology remains unknown.
METHODS: Report a case of a GD quickly evolution into HT.
CASE REPORT: An 11-year-old girl presented with inicial symptoms of GD, evolueting into TH within a few months after her initial diagnosis and treatment. The spectrum of clinical manifestations was evidenced, as well as laboratory tests.
DISCUSSION: Graves disease and Hashimotos thyroiditis are opposite manifestations within the spectrum of autoimmune thyroid diseases, and migration from one pole to another may occur, but this manifestation has been rarely reported in the literature.
CONCLUSION: In view of the possible conversion of a GD into a TH, monitoring of thyroid function and possible clinical manifestations in patients with GD even after initial remission with drug treatment should be considered.

Keywords: Graves Disease, Autoimmune Diseases, Hypothyroidism, Hyperthyroidism, Hashimoto Disease.


INTRODUÇÃO

As disfunções tireoidianas correspondem a cerca de 30-40% dos pacientes endocrinológicos, tendo uma prevalência de 3,82% na Europa. A American Association of Clinical Endocrinologists (AACE) estimou que cerca de 4,78% da população americana tem alguma desordem tireoidiana não diagnosticada, na Europa chega a 6,6%, sendo dessas 4,94% hipotireoidismo e 1,72% hipertireoidismo1.

A principal etiologia de disfunção tireoidiana é a doença tireoidiana autoimune, que inclui diversas patologias, sendo as mais frequentes a doença de Graves (DG) e a tireoidite de Hashimoto (TH), causando como manifestação o hipertireoidismo e o hipotireoidismo, respectivamente. A evolução de um quadro de hipertireoidismo para hipotireoidismo em jovens, em tireotoxicose, é consideravelmente raro chegando a 2,7% após 2 anos de tratamento com metimazol. No entanto, o hipotireoidismo em pacientes com hipertireoidismo prévio é mais comumente encontrado secundário a tratamentos como iodo radioativo e tireoidectomia, chegando a ocorrer em 66,2 e 75% dos casos, respectivamente2.

Já a transição de um hipertireoidismo por DG para um hipotireoidismo por TH ainda é pouco retratada e compreendida na literatura, alguns autores passam a considerar as doenças autoimunes da tireoide como um espectro de doenças, sendo a DG e a TH polos opostos desse espectro.

O objetivo desse estudo foi descrever um caso de uma criança portadora de um hipertireoidismo por DG com rápida evolução para hipotireoidismo por TH, evidenciando as principais características da doença e os impactos sociais gerados em decorrência da patologia, possibilitando a ampliação e otimização de estudos acerca de sua terapêutica e prognóstico.


MÉTODOS

O presente trabalho se encontra em cumprimento com a Resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, passou pela avaliação do comitê de ética de pesquisa em seres humanos (CEPSH) sendo aprovado pelo certificado de apresentação para apreciação ética (CAAE) sob o número 11434919.9.0000.5219.

O relato de caso constituiu-se em uma pesquisa fenomenológica e descritiva, com abordagem qualitativa e longitudinal, sendo a coleta de dados realizada através da análise do prontuário e exames do paciente portador do hipotireoidismo, no consórcio intermunicipal de saúde do Oeste do Paraná (CISOP), na cidade de Cascavel. A técnica bibliográfica teve como base científica artigos encontrados em banco de dados do MEDLINE, PubMed, e SciELO, bem como literaturas atualizadas que descrevem a citada patologia.


RELATO DE CASO

MFSC, sexo feminino, procurou atendimento no consórcio intermunicipal de saúde do Oeste do Paraná (CISOP) na cidade de Cascavel-Paraná no ano de 2016, com 11 anos e 3 meses de idade, presentando queixa de protusão ocular à esquerda e sensação de pressão no mesmo, além disso, queixava-se de irritabilidade leve, sem outros sintomas. Avó materna apresentava patologia tireoidiana a qual não soube especificar, sem outros dados relevantes. Ao exame físico apresentava exoftalmia bilateral, mais acentuada a esquerda e bócio, estadiamento de Tanner P1M2 bilateral, altura na média para idade (148,5cm), peso no percentil 25 (32,4kg). Os exames laboratoriais iniciais confirmaram tireotoxicose por DG, sendo iniciado tratamento com tiamazol 10mg/dia e propranolol 40mg/dia. A Tabela 1 demonstra os valores laboratoriais iniciais, bem como a evolução dos mesmos durante o tratamento.




Após 4 meses de tratamento evoluiu com melhora da exoftalmia com persistência do bócio e elevação dos níveis séricos do TSH (28.63mU/L), sendo reduzido a dose do tiamazol para 2,5mg ao dia e suspenso o propranolol. Retornou após 3 meses do ajuste da medicação em eutireoidismo, sendo mantido a dose da medicação antitireoidiana em uso (Tabela 1). Com 10 meses em tratamento apresentava-se eutireoidiana com normalização dos níveis séricos do TRAB (1,50UI/L) sendo realizado a suspensão do tratamento medicamentoso.

Após 5 meses de suspensão do tratamento da medicação antitireoidiana, a paciente mantinha-se em eutireoidismo, assintomática, apenas com elevação do anticorpo antiperoxidase (> 600UI/mL) e TRAB normal (1,67UI/L) – Tabela 1. Iniciou com quadro de prostração, apatia, cansaço e aumento do bócio com 9 meses após suspensão do tiamazol, os exames laboratoriais realizados nesse momento confirmaram diagnóstico de hipotireoidismo por tireoidite de Hashimoto (TSH 76,27mUI/mL; antiTPO >600UI/mL; anti-tireoglobulina 1146UI/mL e TRAB 0,57UI/L), sendo foi iniciado levotiroxina sódica 75mcg. A menor evoluiu com normalização da função tireoidiana mantendo-se o uso de levotiroxina até o momento atual.


DISCUSSÃO

O caso relatado acima descreve uma paciente que desenvolveu hipotireoidismo autoimune posterior a vários meses em tratamento com drogas antitireoidianas (DAT) e acompanhamento por hipertireoidismo devido a DG. O hipertireoidismo é um estado hipermetabólico causado pelo aumento dos níveis de T3 e T4 livres na circulação decorrente de um hiperfuncionamento da glândula tireoide. A DG é a causa mais comum de hipertireoidismo, sendo uma doença autoimune caracterizada pela presença de anticorpos antirreceptor de TSH (TRAB), levando a uma estimulação autônoma na produção e liberação de hormônios tireoidianos pelas células foliculares3. A tireotoxicose se caracteriza por uma síndrome clínica em decorrência do excesso de hormônios tireoidianos. Os principais sintomas são: nervosismo, perda de peso, tremores, palpitação, náuseas e vômitos4.

Uma causa frequentemente negligenciada de tireotoxicose é a Hashitoxicose, uma tireotoxicose transitória causada por inflamação destrutiva dos folículos tireoidianos devido à TH, causando dano destes e liberação excessiva dos hormônios estocados, espera-se que esse distúrbio remita ou evolua para hipotireoidismo espontaneamente5.

Nesse relato a paciente apresentava TRAB e antiTPO positivo com TSH suprimido, confirmando hipertireoidismo por DG. A doença de Graves é uma hiperestimulação difusa da tireoide através de fatores imunológicos, sua incidência é baixa chegando a 3/100.000 em adolescente com tendência a aumentar conforme a idade, afetando mais meninas em uma razão de 9,7/1 menino6.gender, pregnancy, etc. O tratamento de escolha foi o tiamazol, o qual manteve a paciente estável clínica e laboratorialmente por 10 meses. Essa medicação é a primeira linha de tratamento do hipertireoidismo, sendo classificada como DAT, ficando como segunda linha outros métodos de terapia como radioiodo e tireoidectomia2.

Após os 10 meses de tratamento com DAT, a paciente permaneceu em eutireoidismo por comprovação laboratorial por 5 meses e após 9 meses de suspensão da medicação retornou à consulta clínica e laboratorialmente em hipotireoidismo, com anticorpos antitireoglobulina e antiperoxidase alterados, confirmando tireoidite autoimune (TH) e mantendo-se com TRAB negativo. O hipotireoidismo é uma síndrome decorrente da deficiência da produção ou ação dos hormônios tireoidianos tendo como consequência a redução do metabolismo e prejuízo das atividades biológicas dependente da ação desses hormônios7. Em crianças a causa mais comum é a TH, com prevalência de 1-2% e proporção de 3 meninas para 1 menino, sendo sua relação com os antígenos leucocitários humanos bem documentada (HLA-DR3, HLA-DR4, HLA-DR5)8. A TH pode ser diagnosticada laboratorialmente pelo aumento do TSH com a presença de anticorpos antiTPO e antitireoglobulina positivos9.

Apesar de inicialmente as doenças tireoidianas autoimunes serem consideradas distintas, atualmente a DG e a TH representam desfechos opostos de um mesmo leque de processo fisiopatológico autoimune. Na TH, a predominância é da resposta celular Th1 formando um infiltrado linfocítico, favorecendo a imunidade celular e o desenvolvimento de apoptose celular. Já na DG, tem predominância de citocinas Th2, favorecendo a imunidade humoral com a produção aumentada de auto anticorpos pelos linfócitos B. O aumento da concentração da imunoglobulina G ou as citocinas Th2 induzem a expressão de moléculas antiapoptóticas, protegendo os tireócitos contra a apoptose na DG10.

McLachlan et al. (2007)11 sugere uma possível relação imune entre uma DG para uma TH, na qual a estimulação excessiva da tireoide induz dano a mesma, expondo antígenos com a tireoglobulina e tireoperoxidase (TPO), associado a menores populações de células T reguladoras diminuiriam a autotolerância a autoantígenos produzindo assim anticorpos antitireoglobulina e antiTPO11.

Em revisão na literatura, foi constatado seis relatos de crianças (Tabela 2), nas quais apresentavam sintomas clássicos de hipertireoidismo, com posterior diagnóstico laboratorial de DG, sendo tratadas com DAT por um período de 1,5 a 4 anos. Durante o tratamento foi encontrado um aumento ou persistência de valores acima da referência dos anticorpos antiTPO e antitireoglobulina mesmo após normalização do TRAB. A síndrome de Turner foi relatada em duas pacientes e durante o tratamento outro paciente teve diagnostico de diabetes mellitus tipo 1. No acompanhamento durante o tratamento dois pacientes desenvolveram hipotireoidismo subclínico, nos demais não foi relatado nenhuma clínica de hipotireoidismo.




A prevalência de DG na população infantil chega a 0,02%12 o hipertireoidismo é causado por anticorpos estimuladores dirigidos contra o receptor do TSH, conhecidos como TRAb (TRAb, Thyrotropin Receptor Antibody e a evolução de TH para DG é de 4%13, no entanto a frequência e prevalência da evolução de DG para TH em crianças ainda é desconhecida.


CONCLUSÃO

O presente relato de caso alerta para a possibilidade da conversão do hipertireoidismo em hipotireoidismo dentro do espectro das doenças tireoidianas autoimunes, ocorrência ainda pouco relatada e estudada. Assim sendo, ressalta-se a necessidade de monitorar os portadores de hipertireoidismo por DG mesmo após a remissão inicial com tratamento medicamentoso, para a mudança repentina da sintomatologia. A hipótese de conversão para hipotireoidismo deve ser sempre lembrada evitando-se assim, uma rápida descompensação clínica.


REFÊRENCIAS

1. Madariaga AG, Palacios SS, Guillén-Grima F, Galofré JC. The incidence and prevalence of thyroid dysfunction in Europe: a meta-analysis. J Clin Endocrinol Metab. 2014 Mar;99(3):923-31.

2. Azizi F, Amouzegar A. Management of thyrotoxicosis in children and adolescents: 35 years’ experience in 304 patients. J Pediatr Endocrinol Metab. 2018 Jan;31(2):159-65.

3. Oliveira V, Maldonado RR. Hipotireoidismo e hipertireoidismo - uma breve revisão sobre as disfunções tireoidianas. Interciência Soc [Internet]. 2014; [citado 2019 Ago 12]; 3(2):36-44. Disponível em: http://fmpfm.edu.br/intercienciaesociedade/colecao/online/v3_n2/4_hipotireoidismo.pdf

4. Leo S De, Lee SY, Braverman LE, Unit E, Sciences C. Hyperthyroidism. Lancet Rev. 2016 Ago;388(10047):906-18.

5. Unnikrishnan A. Hashitoxicosis: a clinical perspective. Thyroid Res Pract. 2013 Fev;10(4):5-8.

6. Wémeau JL, Klein M, Sadoul JL, Briet C, Vélayoudom-Céphise FL. Graves’ disease: introduction, epidemiology, endogenous and environmental pathogenic factors. Ann Endocrinol (Paris). 2018 Dez;79(6):599-607. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ando.2018.09.002

7. Vilar L. Endocrinologia clínica. 5th ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2013.

8. Leung AKC, Leung AAC. Evaluation and management of the child with hypothyroidism. World J Pediatr. 2019 Abr;15(2):124-34. DOI: https://doi.org/10.1007/s12519-019-00230-w

9. Brenta G, Vaisman M, Sgarbi JA, Bergoglio LM, Andrada NC, Bravo PP, et al. Diretrizes clínicas práticas para o manejo do hipotiroidismo. Arq Bras Endocrinol Metabol [Internet]. 2013 Jun; [citado 2019 Ago 12]; 57(4):265-98. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-27302013000400003&lng=en&tlng=en

10. Sgarbi JA, Maciel RMB. Patogênese das doenças tiroidianas autoimunes. Arq Bras Endocrinol Metabol. 2009;53(1):5-14.

11. McLachlan SM, Nagayama Y, Pichurin PN, Mizutori Y, Chen CR, Misharin A, et al. The link between Graves’ disease and Hashimoto’s thyroiditis: a role for regulatory T cells. Endocrinology. 2007;148(12):5724-33.

12. Sandrini R, França SN, Lacerda L, Graf H. Tratamento do hipertireoidismo na infância e adolescência. Arq Bras Endocrinol Metabol. 2005;45(1):32-6.

13. Smyczyńska J, Cyniak-Magierska A, Stasiak M, Karbownik-Lewińska M, Lewiński A. Persistent remission of Graves’ disease or evolution from Graves’ disease to Hashimoto’s thyroiditis in childhood - a report of 6 cases and clinical implications. Neuro Endocrinol Lett. 2014;35(5):335-41.










Centro Universitário FAG, Medicina - Cascavel - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Thiago Acorsi Rodrigues
Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz
Av. das Torres, 500 - Loteamento Fag
Cascavel/PR, Brasil. CEP: 85806-095
E-mail: thiago9936@hotmail.com

Data de Submissão: 28/09/2019
Data de Aprovação: 21/01/2020