ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Celulite por acidente acantotóxico e suas peculiaridades: um relato de caso

Acantotoxic accident cellulite and its distinctiveness: a case report

RESUMO

INTRODUÇÃO: Os acidentes acantotóxicos causados por arraias são bem descritos no Brasil. São mais comuns na região Norte, em especial nos meses de junho a agosto, devido à temporada de praias de rio e maior contato com rios, represas e lagos de água doce: habitat natural dessas espécies. Têm caráter inflamatório intenso e também necrosante tardio, sendo o veneno composto por polipeptídeos com propriedades termolábeis. Não existe antiveneno para esses casos no Brasil. O tratamento baseia-se em controle de sintomas e prevenção de infecção secundária, com vigilância para efeitos tardios do veneno.
OBJETIVOS: Discutir a conduta emergencial e acompanhamento médico de um caso de acidente acantotóxico com paciente pediátrico e descrever as peculiaridades envolvidas nesse tipo de acidente.
MÉTODOS: Relato de caso de uma criança de 9 anos, do sexo masculino, admitido em um serviço de emergência pediátrico de hospital escola do Distrito Federal, com antecedente de ferimento por arraia de água doce, quadro clínico compatível com celulite e evolução arrastada.
RESULTADOS: Evolução lenta para os padrões habituais de celulite, com necessidade de troca de antibióticos e sinais tardios de uma possível formação necrótica.
CONCLUSÃO: A abordagem da celulite foi redirecionada por conta do fator etiológico relacionado ao acidente acantotóxico, sendo necessário ampliar o espectro para cobrir bactérias gram-negativas e anaeróbias. Permitiu-se então a resolução e prevenção de complicações mais graves, como a necrose tardia.

Palavras-chave: Pediatria, Celulite, Venenos de Peixe, Acidentes.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Acantotoxic accidents caused by skates (fish) are routinely caught in Brazil. It is more common in the northern region, especially from June to August, due to the season of river beaches and greater contact with rivers, dams and freshwater lakes: natural habitat of those species. It has an intense and also late inflammatory character, being a poison composed of polypeptides with thermolabile properties. There is no antivenom for those cases in Brazil. The treatment is based on symptom control and prevention of secondary infection, with status for the late effects of the poison.
OBJECTIVES: To review emergency management and medical follow-up of an acantotoxic accident case in a pediatric patient and report the singularities related to this variety of accidents.
METHODS: A case report of a 9-year-old boy admitted to a pediatric emergency department of a Federal District School Hospital, with a history of freshwater stingray injury, a clinical presentation of cellulitis and a dragged course.
RESULTS: Regarded evolution compared to usual cellulitis patterns, requiring the antibiotic change and late signs of a form of necrotic formation.
CONCLUSION: The approach to cellulitis was redirected due to the etiological factor correlated to the acantotoxic accident, implying to broaden the spectrum for gram-negative and anaerobic bacteria. It was then allowed to resolve and prevent more serious complications, such as late necrosis.

Keywords: Cellulitis, Fish Venoms, Pediatrics, Skates, Fish.


INTRODUÇÃO

O Brasil é um país com densidade hídrica muito rica e flora aquática formidável. É muito comum o contato de populações com ambientes como: praias marinhas, praias de água doce, rios, represas e lagos. Nesse contexto, insere-se os animais aquáticos venenosos, um tema pouco conhecido por populações, cuja vivência diária não envolve a pesca e atividades relacionadas. Os acidentes mais comuns no cenário descrito são aqueles provocados por bagres, arraias e peixes-escorpião1.

Acidentes com arraias são a causa mais comum de picadas relacionadas a peixes no mundo2,3. Segundo estudo que revisou informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), a maioria dos acidentes envolvendo animais aquáticos venenosos no Brasil foi causada por arraias (69%)4. Vale citar, ainda, que muitos desses acidentes não são notificados pela dificuldade da população ribeirinha e indígena de terem acesso a serviços de saúde5,3. Os principais relatos de acidentes causados por arraias (acantóxicos) no Brasil são nas bacias dos rios Paraná, Paraguai, Araguaia e Amazonas.

As arraias se alimentam de pequenos invertebrados e peixes, e costumam ficar parcialmente enterradas na areia ou em lama. Elas possuem um a três ferrões, que são utilizados como forma de defesa e, por esse motivo, a maioria dos acidentes acantóxicos ocorre em pés, tornozelos ou perna, além de ocorrerem também em mãos e braços, principalmente de pescadores6. Os ferrões estão cobertos por muco, que contém células do sistema imune e bactérias. Seu veneno possui células secretoras que produzem proteínas com ação necrotizante, edematosa, proteolítica, neurotóxica e miotóxica5. O veneno da arraia causa dor intensa, podendo causar traumas sérios em nervos e vasos sanguíneos, tanto pelo ferrão quanto pelo veneno e muco. Além disso, é comum a infecção secundária da lesão envolvendo bactérias gram-negativas6.


RELATO DE CASO

RSS, 9 anos, masculino, procedente de Planaltina/DF, acompanhado de sua tia, procurou o pronto-socorro de um serviço de emergência pediátrico, de hospital escola de atenção secundária no Distrito Federal, 3 dias após sofrer ferroada em dorso de pé direito, ocasionada por arraia de um rio na região Centro-Oeste (Figura 1, 2). Foi prescrita cefalexina, fez uso por 4 dias, porém não obteve melhora. Retornou ao pronto-atendimento com piora dos sinais flogísticos em pé direito, caracterizados por rubor, calor, edema e dor importantes, além de certa limitação à deambulação. Paciente foi internado para antibioticoterapia endovenosa, sendo iniciada ampicilina+sulbactam e sintomático SOS, sendo a dipirona de horário suficiente para analgesia. À admissão apresentava leucograma de 8.600/mm3 e VHS de 10mm/h, sem alterações de série vermelha; vacina dT atualizada para a idade. O paciente apresentou melhora importante dos sinais flogísticos, entretanto, no sexto dia de tratamento com ampicilina+sulbactam, criança evoluiu com piora do quadro clínico, com dois picos de febre aferidos em 39.2 e 38.5ºC associados à coloração violácea no centro da lesão e surgimento de pequena vesícula; neste momento, leucograma de 10.400/mm3. Tendo em vista a piora clínica, a clindamicina foi adicionada à terapêutica para melhor cobertura de germes anaeróbios. Não foi necessário tratamento local. Paciente evoluiu com melhora do quadro, sem novos picos febris ou piora dos sinais flogísticos. Realizou 13 dias de antibioticoterapia com ampicilina+sulbactam e 7 dias de clindamicina. Recebeu alta médica após 14 dias de internação. Não foram realizados cultura durante a internação ou hemograma à alta médica.


Figura 1. Arraia de água doce do gênero Potamotrygon em foto tirada pela família do paciente na área do acidente.


Figura 2. Fotografia evidenciando lesão de inoculação do ferrão da arraia com 12 horas do acidente.



CONSIDERAÇÕES ÉTICAS

Responsável legal assinou termo de consentimento livre e esclarecido, autorizando o relato do caso. O relato foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde do Distrito Federal, sob registro CAAE 36397920.6.0000.5650.


DISCUSSÃO

As arraias de água doce possuem ferrões pontiagudos retrosserrilhados na base da cauda, envolvidos por um epitélio rico em células glandulares produtoras de veneno7. Essas células, quando comprimidas durante a penetração, liberam seu conteúdo dentro do corpo da vítima. O veneno é composto por polipeptídeos de alto peso molecular, serotonina, fosfodiesterase e a 5-nucleotidase. É um veneno termolábil, assim, a única terapêutica aguda indicada é a imersão do membro lesado em água corrente aquecida, que pode inativar algumas das proteínas do veneno.

O quadro do acidente acantotóxico geralmente é marcado por uma lesão puntiforme (ou lacerante) em membro inferior, usualmente em dorso do pé, acompanhado de dor intensa de início imediato, associado a eritema e edema locais3,8. Com a evolução do quadro, podem surgir linfagite e necrose dos tecidos locais, sendo que esta pode ter um curso agudo ou tardio. Alguns pacientes podem também apresentar sintomas sistêmicos como febre, náuseas, vômitos e agitação. A dor geralmente atinge seu pico em 30-60 minutos após o acidente e pode durar por mais de 48 horas9. O veneno inicialmente induz uma fase de resposta neurogênica (primeiros 0 a 5 minutos) e então uma fase inflamatória dolorosa (decorrente da atividade proteolítica, lesão endotelial e ativação de cascata inflamatória, cujos mediadores principais são: IL-1b, IL-6, citocinas e quimicionas)10.

A necrose surge na maioria dos pacientes, com apresentação majoritariamente típica (75%) de início no centro da lesão seguida por formação de círculos concêntricos de áreas necróticas, precoces ou tardias.

Percebeu-se que o sexo e a maturação do animal teriam um efeito na composição das toxinas, sendo isto decorrência principalmente dos hábitos alimentares específicos de cada faixa etária. Fêmeas jovens de até 2 anos, por exemplo, produzem substâncias de maior potencial nociceptivo, como peptídeos com ação neuroativa. Já as arraias adultas têm o veneno composto principalmente por moléculas eficazes em causar exsudação de proteínas e desencadear necrose tecidual. O paciente apresentou, como sintoma principal, a dor, que irradiava para parte do membro inferior direito, sem sinais de necrose nos primeiros dias. Como a dor foi relatada como o sintoma mais proeminente, provavelmente o acidente ocorreu por picada de arraia filhote (frequentes nessa época do ano, época da piracema).

Complicações do ferimento por peixes acantotóxicos podem ocorrer, sendo as infecções secundárias as mais comuns, seguidas pela necrose tardia11. Os fatores de risco para as complicações ainda não são bem definidos na literatura, mas a virulência das espécies de bactérias, área e profundidade da lesão, além de higiene precária da ferida e demora do início do tratamento devem ser considerados11.

Muitas bactérias gram-negativas foram identificadas no muco que reveste os ferrões das arraias e nas águas onde esses peixes habitam. Estudos evidenciam que as espécies de bactérias gram-negativas como Acinetobacter spp., Pseudomonas aeruginosa, Klebsiella pneumoniae, Klebsiella oxytoca, Serratia spp., Shigella spp. e Enterobacter spp. são encontradas apenas no muco, enquanto que Plesiomonas shigelloides e Citrobacter koseri são encontradas apenas na água. As bactérias encontradas tanto na água como no muco são Aeromonas hydrophila, Aeromonas sobria, Pseudomonas putida, Clostridium freundii, Escherichia coli e Enterobacter cloacae12. Dessas bactérias algumas são mais prováveis de causar infecção devido às proteases produzidas que influenciam em sua virulência. Aeromonas hydrophila, Pseudomonas spp. e Vibrio spp. são espécies citadas na literatura como agentes isolados em infecções secundárias causadas por arraias de água doce, sendo essas as bactérias que produzem maior quantidade de proteases - hemolisina, gelatinase e caseinase12. A resistência aos antimicrobianos também é documentada, mostrando que até 70% das bactérias encontradas no muco e na água dos rios possuem alguma resistência. As espécies com resistência a mais tipos de antimicrobianos são Pseudomonas aeruginosa, Pseudomonas putida e Enterobacter cloacae. Os antimicrobianos com mais bactérias resistentes são ampicilina, amoxicilina/ácido clavulânico e cefalotina; portanto, não devem ser utilizados como primeira escolha11,12.

Essas características justificam a falha do tratamento inicial do paciente com cefalosporina de primeira geração (1ª escolha para celulite) por provável resistência de algumas bactérias gram-negativas específicas do acidente acantotóxico. A troca do esquema antibiótico para ampicilina+sulbactam ampliou a cobertura aos gram-negativos; o paciente apresentou melhora clínica da dor e do aspecto da ferida. A piora extemporânea do quadro (6 dias após novo esquema) pode estar relacionada à necrose tardia, causada pelo veneno citotóxico ou por atividade de bactérias resistentes ao tratamento. A ampliação da cobertura para anaeróbios com clindamicina mostrou resultado favorável.


CONCLUSÃO

Os acidentes acantotóxicos são um assunto de pouco conhecimento e com carência de protocolos para o manejo adequado, com centros médicos ainda despreparados ante as peculiaridades envolvidas. Encontra-se na literatura apenas relatos desse tipo de acidente em adultos; isto posto, este artigo apetece por contribuir com a condução desse tipo de acidente na faixa etária pediátrica. A imediata imersão em água quente, manejo da dor, limpeza intensa da ferida com remoção de fragmentos do ferrão, utilização de antibióticos cobrindo também gram-negativos ao primeiro sinal de infecção e profilaxia para tétano são medidas recomendadas por alguns autores11; adiciona-se a vigilância dos sinais tardios de necrose local também como um importante aspecto a ser avaliado. Apesar da ausência de protocolos, a condução de um aparente caso de celulite foi redirecionada por conta do fator etiológico relacionado ao acidente acantotóxico, o que permitiu a resolução e prevenção de complicações mais graves.


REFERÊNCIAS

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1. ESCS, Faculdade de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde - Brasília - DF - Brasil
2. Hospital Regional de Sobradinho HRS, Programa de Residência Médica em Pediatria - Brasília - DF - Brasil
3. Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Preceptoria da Residência Médica em Pediatria do Hospital Regional de Sobradinho HRS - Brasília - DF - Brasil
4. ESCS, Docência da Faculdade de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde - Brasília - DF - Brasil
5. Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Médica Pediatra do Hospital Regional de Sobradinho HRS - Brasília - DF - Brasil

Endereço para correspondência:

Giovanna Breda Rezende
Escola Superior de Ciências da Saúde - ESCS
SMHN, Conjunto A, Bloco 01, Edifício Fepecs, Asa Norte, Brasília, DF, Brasil
CEP: 70710-907
E-mail: giovanna.breda97@gmail.com

Data de Submissão: 14/12/2019
Data de Aprovação: 14/09/2020