Ponto de Vista
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Ano 2022 -
Volume 12 -
Número
1
Acidente vascular cerebral em crianças: análise histórica no Brasil
Stroke in children: a historical overview in Brazil
Felipe Kalil-Neto1; Maria Valeriana Leme de Moura Ribeiro2; Fernanda de Oliveira Schmidt3; Ayrton Massaro4
RESUMO
Acidente vascular cerebral (AVC) na infância é uma doença prevalente e uma importante causa de morbidade em crianças. As etiologias são diversas e multifatoriais. Apesar de sua importância, esta doença e seu reconhecimento foi até recentemente negligenciado. O principal objetivo desta nota histórica é descrever e destacar a contribuição de diferentes autores para o reconhecimento do acidente vascular cerebral em crianças no Brasil.
Palavras-chave:
Acidente Vascular Cerebral, Criança, História, Brasil.
ABSTRACT
Stroke in infancy is a prevalent disease and a significant cause of morbidity in children. The etiologies are diverse and multi-factorial. Despite its importance, this disease and its recognition was until recently overlooked and understudied. The main objective of this historical note is to describe and to highlight the contribution of different authors for the recognition of pediatric stroke in Brazil.
Keywords:
Stroke, Child, History, Brazil.
INTRODUÇÃO
O AVC pediátrico é uma importante causa de lesão cerebral adquirida e morbidade em crianças. As estimativas de incidência variam de 1,3 a 13 por 100.000 e em neonatos, de 1-2.500-5.000 nascidos vivos1. Uma maior preocupação com o impacto dessa doença na saúde infantil tem se dado nas últimas duas décadas, refletindo-se em um notável aumento do número de publicações2. Embora existam semelhanças entre o AVC de adultos jovens e adolescentes, praticamente todos os aspectos do AVC em idosos são diferentes daqueles em crianças3. Os mecanismos únicos que explicam a fisiopatologia do acidente vascular cerebral na infância permanece pouco compreendida1. As etiologias são diversas, e fatores de risco como cardiopatia congênita, anemia falciforme, infecções, arteriopatia e condições pró-trombóticas devem ser sempre lembradas1. Embora diferentes tratamentos estejam disponíveis, como trombólise e recanalização aguda, a patobiologia do AVC precisa ser esclarecida para que as estratégias de prevenção sejam implementadas. Após introduzir este importante tema, o objetivo desta revisão histórica é descrever e destacar a contribuição de diferentes autores para o reconhecimento do AVC pediátrico no Brasil.
Primeiras descrições de AVC no Brasil
Em 1972, a Dra. Satoe Gazal, uma das várias alunas do Dr. Antonio Lefèvre (pioneiro da neurologia infantil no Brasil) concluiu sua tese de doutorado intitulada “Acidentes cerebrovasculares em crianças - Estudo clínico e angiográfico de 20 pacientes com oclusões arteriais”4. Embora não tenha sido publicado na época, é razoável dizer que esta é uma das primeiras e mais importantes contribuições da área de AVC pediátrico no Brasil.
Contribuição histórica
Neste notável estudo, podemos observar uma realidade médica neurológica não dependente da tomografia computadorizada (TC) e da ressonância magnética (RM), mas da angiografia cerebral como importante determinante na pesquisa de distúrbios neurológicos e determinante fundamental da causa vascular da hemiplegia. Além de mencionar a importância do advento da angiografia cerebral, a tese cita descrições históricas de Gowers (1888), Osler (1889) e Freud (1897), sobre a possibilidade de alterações vasculares como causas de hemiplegia em crianças5.
Similarities and differences to current data
Na época, o autor afirmou que a patogênese do AVC em crianças permanecia obscura, e as discussões nesse campo, por falta de informações, eram mais teóricas do que objetivas. Infelizmente, hoje em dia, apesar da rápida expansão do conhecimento dos mecanismos subjacentes ao AVC pediátrico, existem muitas informações cruciais que precisam ser melhor compreendidas3. O autor descreveu, como se sabe hoje, que as lesões obstrutivas não dependem, na maioria dos casos, de processos degenerativos, como observado em adultos com distúrbio do metabolismo lipídico, por exemplo. Por outro lado, o autor relata o papel da inflamação na parede vascular causada por doenças infecciosas.
Observando a investigação neurológica, é interessante observar as diferenças esquemáticas: a grande maioria dos pacientes foi submetida a craniograma (estudo das projeções frontal e lateral) , punção lombar (por punção suboccipital), eletroencefalograma e angiografia cerebral (por punção percutânea de artéria carótida ou artéria vertebral).
Relatos de Caso
A idade dos pacientes variou de 2 a 11 anos. Um achado curioso foi que 18/20 casos estavam relacionados a processo infeccioso, ativo ou em regressão; apenas 2/20 não foram associados à infecção. Entretanto, a tendência na época era relacionar os processos infecciosos à doença cerebrovascular em crianças5,6. Esses achados vão de encontro às evidências atuais1,7,8, nas quais são de extrema relevância as cardiopatias congênitas, as anormalidades protrombóticas e a anemia falciforme, que na época nem sequer eram citadas como prevalentes. A análise angiográfica classificou a localização das oclusões como extracraniana (5/20) e intracraniana (15/20).
Apesar de não ser um exame de rotina na investigação de AVC, o EEG foi realizado em 19 pacientes e mostrou alterações em 16 pacientes. Esses achados têm apenas um valor observacional, pois é sabido que as informações do EEG em pacientes com AVC não são clinicamente relevantes, a menos que haja suspeita de convulsões.
Embora a apresentação clínica e as características sejam um pouco diferentes da literatura atual, o território cerebral mais acometido foi a artéria cerebral média. Além disso, o autor também sugere um modelo de hipersensibilidade pós-infecciosa como mecanismo patogênico de oclusões arteriais clínicas e angiográficas.
Direções futuras
Em 2003 , foi criado o International Pediatric Stroke Study (IPSS), um banco de dados atualizado com mais de 5.000 casos de AVC pediátrico em 215 centros diferentes em 54 países em todo o mundo9. É importante chamar a atenção para a participação nas IPSS do grupo brasileiro da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), liderado pela Dra. Maria Valeriana Leme de Moura Ribeiro. Além disso, em recente publicação em um dos mais importantes periódicos de neurologia do mundo, o estudo de acidente vascular cerebral pediátrico e doenças cerebrovasculares é citado como uma subespecialidade emergente no campo da neurologia9.
CONCLUSÕES
Nesta breve nota histórica, buscamos aprimorar as primeiras descrições de acidente vascular cerebral em crianças no Brasil. Este é um relato importante porque mostra várias semelhanças e diferenças no que diz respeito aos dados epidemiológicos, fisiopatologia e diagnóstico. O reconhecimento precoce do AVC é um alvo educacional fundamental para os profissionais de saúde.
REFERÊNCIAS
1. Krishnamurthi RV, deVeber G, Feigin VL, Barker-Collo S, Fullerton H, Mackay MT, et al. Stroke prevalence, mortality and disability-adjusted life years in children and youth aged 0-19 years: data from the global and regional burden of stroke 2013. Neuroepidemiology. 2015;45(3):177-89.
2. Amlie-Lefond C, Rivkin MJ, Friedman NR, Bernard TJ, Dowling MM, deVeber G. The way forward: challenges and opportunities in pediatric stroke. Pediatr Neurol. 2016 Mar;56:3-7.
3. Kirton A, deVeber G. Paediatric stroke: pressing issues and promising directions. Lancet Neurol. 2015 Jan;14(1):92-102.
4. Gazal S. Cerebrovascular accidents in children - clinical and angiographic study of 20 patients with arterial occlusions [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP); 1972.
5. Davie JC, Coxe W. Occlusive disease of the carotide artery in children. Carotid thrombectomy with recovery in a 2-year-old-boy. Arch Neurol. (Chic). 1967 Sep;17(3):313-23.
6. Shillito Junior J. Carotid arteritis: a cause of hemiplegia in childhood. J Neurosurg. 1964 Jul;21:540-51.
7. Sinclair AJ, Fox CK, Ichord RN, Almond CS, Bernard TJ, Beslow LA, et al. Stroke in children with cardiac disease: report from the International Pediatric Stroke Study Group Symposium. Pediatr Neurol. 2015 Jan;52(1):5-15.
8. Dowling MM, Hynan LS, Lo W, Licht DJ, McClure C, Yager JY, et al. International Paediatric Stroke Study: stroke associated with cardiac disorders. Int J Stroke. 2013 Oct;100(Suppl A100):39-44.
9. Bernson-Leung ME, Veber GA. Emerging subspecialties in neurology: pediatric stroke and cerebrovascular disorders. Neurology. 2016 Nov;87(18):e219-e22.
1. Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Department of Neurology - Porto Alegre - RS - Brasil
2. Hospital de Clinicas da Universidade Estadual de Campinas, Department of Neurology - Campinas - SP - Brasil
3. Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Department of Neonatology - Porto Alegre - RS - Brasil
4. Hospita Sírio-Libânes, Department of Neurology - Sao Paulo - SP - Brasil
Corresponding author:
Felipe Kalil-Neto
Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Av. Ipiranga, 6690 - Partenon, Porto Alegre, RS, Brasil
CEP: 90610-001
E-mail: felipekalil@yahoo.com.br
Data de Submissão: 17/07/2020
Data de Aprovación: 02/08/2020