Artigo de Revisao
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Ano 2022 -
Volume 12 -
Número
2
Transtorno alimentar restritivo evitativo/ARFIRD: o que é esse transtorno alimentar?
What is avoidant/restrictive food intake disorder (ARFID)?
Mariana Mello Mattos Shaw de Almeida1; Luiza Amélia Cabus Moreira1; Rachel Moreira Leahy2
RESUMO
INTRODUÇÃO: O transtorno alimentar restritivo evitativo (TARE) é uma categoria diagnóstica relativamente nova introduzida na literatura médica em 2013 no DSM-V com o nome de avoidant restrictive food intake disorder (ARFID). Inclui indivíduos que apresentam comportamento alimentar anormal que podem ou não levar a perda de peso, mas que sem dúvidas leva ao comprometimento da qualidade de vida dos mesmos. Entre as causas aventadas para esse comportamento incluem-se pacientes que não comem por medo, por questões neurossensoriais e/ou por falta de apetite.
OBJETIVOS: Revisão da literatura sobre o transtorno restritivo evitativo.
MÉTODOS: Revisão integrativa da literatura sobre o tema no PubMed e a partir do mesmo, busca de material adicional a partir das referências. Foram avaliadas 30 fontes entre livros e artigos publicados.
CONCLUSÃO: O principal diagnóstico diferencial a ser feito é com a anorexia nervosa de início precoce. O tratamento não é bem estabelecido, porém há intervenções comportamentais e medicamentosas que vem sendo estudadas.
Palavras-chave:
comportamento alimentar, transtornos do comportamento infantil, criança.
ABSTRACT
INTRODUCTION: Avoidant restrictive food intake disorder (ARFID) is a relatively new diagnostic category introduced in the medical literature in 2013 in the DSM-V. It includes individuals who exhibit abnormal eating behavior that may or may not lead to weight loss, but which undoubtedly leads to compromised quality of life. Causes for this behavior include patients who do not eat out of fear, neurosensory issues, and/or lack of appetite.
OBJECTIVES: Make a review of which is ARFID.
METHODS: Integrative review of the literature on the subject in PubMed and from there, searching for additional material from the references. 30 sources were evaluated among books and published articles.
CONCLUSION: The main differential diagnosis to be made is with early onset anorexia nervosa. The treatment is not well established, but there are behavioral and drug interventions that have been studied.
Keywords:
feeding behavior, child behavior disorders, child.
INTRODUÇÃO
Queixas relacionadas à alimentação como seletividade ou evitação alimentar são muito comuns na prática pediátrica. Tais situações vinham sendo descritas por termos como “evitação emocional de alimentos”, “anorexia nervosa sem fobia de engordar”, “alimentação restritiva” e “anorexia infantil”. Em 2013, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders1 (DSM-V) agrupou tais situações, que antes não eram bem definidas, em um subgrupo denominado de avoidant restrictive food intake disorder (ARFID) ou, em português, “transtorno alimentar restritivo/evitativo” (TARE).
Em vista do incremento diagnóstico cada vez maior e da sua similaridade com o TARE torna-se importante citar a anorexia nervosa (AN) de início precoce, definida pelo início da sintomatologia antes dos 14 anos de idade2. O TARE tem em comum com a AN de início precoce a restrição alimentar. Sabe-se, no entanto, que no TARE essa restrição é decorrente de inúmeros fatores como características sensoriais dos alimentos, medo das consequências de ingerir o alimento e/ou falta de interesse na ingestão do mesmo, ao passo que na AN de início precoce a restrição alimentar se dá pelo medo de ganhar peso3.
Dado que são poucas as publicações no Brasil sobre o assunto, o objeto desse texto é uma revisão breve dos conceitos da doença, prevalência, tratamento e prognóstico, ainda que muito haja a ser definido mesmo na literatura internacional. O termo TARE será utilizado nesse artigo ao lado da terminologia adotada no DSM, qual seja: ARFID.
Transtorno alimentar restritivo/evitativo (TARE)
Definição e características clínicas
O TARE é uma categoria diagnóstica relativamente nova introduzida na literatura médica em 2013 no DSM-V1. Antes da publicação deste manual, a terminologia “transtorno de alimentação da primeira infância” era adotada pelo DSM-IV4 e incluía problemas alimentares que levavam à perda de peso, na ausência de doença orgânica definida em crianças até os 6 anos de idade. No DSM-V1 não há restrição de idade para o início da doença, podendo acometer, inclusive, adolescentes e adultos.
O TARE é um transtorno alimentar (TA) caracterizado pelo fracasso persistente em satisfazer as necessidades nutricionais e/ou energéticas associadas a um ou mais dos quatro itens abaixo1:
1. Perda de peso significativa (ou insucesso em obter o ganho de peso esperado ou atraso do crescimento em crianças);
2. Deficiência nutricional significativa;
3. Dependência de alimentação enteral ou suplementos nutricionais;
4. Interferência marcante no funcionamento psicossocial.
Os critérios de exclusão incluem: o TA não é explicado por indisponibilidade de alimento ou por uma prática culturalmente aceita, não ocorre durante o curso de AN ou bulimia nervosa (BN) e não há alterações na imagem corporal, assim como não é explicado por doença psiquiátrica ou patologia orgânica de base.
Dentre os aspectos mais marcantes da doença destaca-se a interferência no funcionamento psicossocial5. A alimentação é, culturalmente, uma das formas de socialização. Dessa forma, devido à alimentação extremamente restrita, o indivíduo fica impossibilitado de participar de eventos em família ou entre amigos como almoços e viagens impossibilitando o seu convívio em sociedade.
Diferentemente da AN, no TARE não há distorção da imagem. Os pacientes têm consciência do baixo peso e, em muitos casos, há, ainda, o desejo de ganho de peso corporal6. O TARE é mais frequente em homens7 e, em alguns casos, pode haver história pregressa de condições médicas patológicas relacionadas ao trato gastrointestinal, a exemplo de doença do refluxo gastroesofágico, que por dor, náusea ou vômitos pode vir a desencadear a aversão alimentar8.
Subgrupos de TARE/ARFID
Três subgrupos com características distintas foram relatados9:
Grupo I: recusa alimentar por pouco apetite ou desinteresse por alimento.
Nesse grupo, não há motivação aparente que explique a recusa alimentar. Apresentam padrão evitativo, com limitada variedade alimentar (menos que 12 alimentos), podendo ou não estar abaixo do peso sem que haja, no entanto, preocupação com a forma corporal10.
Grupo II: recusa alimentar devido às propriedades sensoriais do alimento.
Nesse grupo, a recusa alimentar se dá por restrições secundárias a cor, textura, sabor e cheiro do alimento. Em 40% dos casos, nota-se a presença de outros transtornos como o transtorno de espectro autista (TEA) ou transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)11.
Grupo III: recusa alimentar por medo das consequências negativas de se alimentar.
Assemelha-se a um transtorno fóbico. Fobias alimentares podem ocorrer de forma isolada ou como parte de um transtorno de ansiedade generalizada (TAG). Mais comumente, relatam-se os seguintes medos: vomitar, engasgar, sufocar ou contaminar-se com o alimento. Em alguns casos, é possível identificar um desses eventos como desencadeante da recusa alimentar12.
Prevalência de TARE
Os critérios diagnósticos da doença foram recentemente definidos e ainda não há estudos epidemiológicos suficientes para determinar a prevalência e incidência da doença na população13. No entanto, alguns estudos podem preliminarmente dar uma ideia da dimensão do problema.
Em clínicas de tratamento de TA, a prevalência da doença é maior do que na população geral. Na América do Norte essa prevalência variou de 7,2 a 17,4%7,14.
Com base nos novos critérios do DSM-V, um estudo retrospectivo através de revisão de 215 prontuários de pacientes entre 8-21 anos, acompanhados em um centro de tratamento para TA, observou uma prevalência de 14%14.
Um estudo retrospectivo caso controle com 172 pacientes entre 8-18 anos portadores de TA restritivo, encontrou uma prevalência de 13,8% de TARE segundo os novos critérios do DSM-V7.
Um estudo retrospectivo através de revisão de 2.231 portuários de pacientes entre 8-18 anos em um centro de referência de gastroenterologia infantil em Boston (EUA) observou uma prevalência de 1,5% de TARE. Desses, 67% dos pacientes eram do sexo masculino. Na grande maioria, o TA se dava por pouco interesse na alimentação ou, ainda, por questões sensoriais. É importante ressaltar que 2,4% dos pacientes não preenchiam os critérios de TARE, porém, nesses, não haviam informações suficientes para a confirmação ou exclusão do diagnóstico15.
Em estudos populacionais, a prevalência desse transtorno alimentar é bem menor. Um estudo realizado na Austrália, em adultos com idade maior ou igual a 15 anos, através de entrevistas, encontrou uma prevalência de 0,3%16.
Na Suíça, 1444 crianças entre 8 e 13 anos foram submetidas a um questionário. Desses, 3,2% (46) preencheram os critérios para TARE. A recusa alimentar secundária a características sensoriais correspondeu a 60,9%, a falta de interesse no alimento ou em comer a 39,1% e a restrição devido a consequências negativas ao ato de alimentar-se a 15,2%17.
Comorbidades associadas à TARE
Sabe-se que indivíduos com TEA apresentam 5 vezes mais chance de desenvolver TARE quando comparados com pares sem espectro autista18. É importante ressaltar que alguns indivíduos com autismo podem ser seletivos e apresentar obesidade devido à preferência por alimentos de alta densidade calórica. Isso não exclui o diagnóstico de TARE desde que, ainda que obesos, existam deficiências de micronutrientes que podem vir a acarretar outras doenças como escorbuto, raquitismo e anemia18.
Além da associação com TEA, o TA é comumente visto em pacientes com dificuldades de aprendizado e comprometimento cognitivo19, ou ainda, com TAG. Este último é mais frequente nesse TA, quando comparados aos indivíduos com AN ou bulimia, nos quais os transtornos de humor são mais comuns7.
Dificuldades no diagnóstico diferencial entre TARE e AN de início precoce
Tanto a AN quanto o TARE frequentemente cursam com baixo peso ou desnutrição e requerem o envolvimento de uma equipe multidisciplinar e da família no tratamento20. Outro fato importante é que, em ambas doenças, os indivíduos podem relatar sensação de empachamento, epigastralgia ou falta de interesse em alimentar-se21.
O diagnóstico diferencial entre pacientes com AN que não referem o medo de engordar e TARE é um desafio. Os indivíduos com AN que não referem o medo de engordar atribuem, em geral, a não ingestão de alimentos à ausência de apetite e ideias irracionais para justificar o fato22, o que dificulta o entendimento do profissional acerca do real motivo. Estariam eles minimizando ou negando suas preocupações com o peso e forma corporal ou seriam pacientes de TARE?23 O importante é demonstrar a incongruência. Há pacientes com AN que negam o medo de engordar, mas com o ganho de peso tornam-se agressivos com a equipe e passam a ter atitudes inconsistentes como desligar bombas de infusão e vomitar, visando o não ganho de peso24.
Abordagem e tratamento
Ainda há muito a se conhecer no universo do TARE. A variedade de manifestações clínicas aponta para a necessidade de uma abordagem terapêutica individualizada com envolvimento multidisciplinar25.
Em crianças, as intervenções comportamentais têm sido as mais estudadas. No entanto, a terapia cognitiva comportamental (TCC), utilizada em outros transtornos alimentares, não tem ainda embasamento suficiente para ser normalizada13. Estratégias de exposição e dessensibilização também têm sido utilizadas em diversos centros. Ainda não há estudos randomizados em adultos ou adolescentes sobre o tratamento.
Pacientes com TARE demonstram ter uma duração mais longa da doença7, maior tempo de hospitalização26 e, quando desnutridos, necessitam mais frequentemente de alimentação por sonda nasoenteral27 em comparação com outros tipos de TA.
Ainda que não exista um protocolo para o tratamento, sugere-se alguns aspectos gerais na abordagem dessa doença25:
1. Dar ênfase a questão do sofrimento emocional;
2. Realizar as refeições em um lugar seguro, lidar com o estresse do paciente e da família nesse momento e consumir alimentos sadios ao invés de lanches;
3. Avaliação de fonoaudiólogo quando necessário;
4. Assegurar ausência de risco na exposição;
5. Suporte a família;
6. Vídeos da alimentação supervisionados/ver os vídeos feitos em casa;
7. Recompensar a criança;
8. Supervisionar os pais no manejo comportamental das intervenções;
9. Considerar tratar os sintomas de somatização.
Evolução
As complicações médicas nessa patologia são decorrentes da desnutrição quando presente. Há evidências que os indivíduos acometidos são mais suscetíveis a desenvolver bradicardia, prolongamento do intervalo QT e anormalidades eletrolíticas, essa última, em frequência duas vezes maior quando comparados com pacientes com AN26. É importante destacar ainda, que por acometer faixas etárias mais jovens que em outros TA, o impacto físico e no desenvolvimento sexual podem ser maiores nessa doença.
Sugere-se ainda que pacientes com diagnóstico inicial de TARE possam desenvolver AN durante o tratamento, sugerindo que essa patologia possa ser um fator de risco para o desenvolvimento de AN. A preocupação com o peso pode surgir após a realimentação em alguns indivíduos com TARE, se esses apresentarem associação com transtorno obsessivo compulsivo (TOC), resultando em um diagnóstico de anorexia que não era evidente quando o paciente estava desnutrido28.
Alguns autores sugerem que pacientes que são seletivos ou “neofóbicos”, desde idade muito precoce, tendem a persistir com os sintomas durante toda a vida29.
Lange e Wallin (2019)30 observaram evoluções semelhantes em um seguimento de 15,9 anos entre anorexia de início precoce e TARE com baixo peso. Cerca de 25% dos pacientes com TARE persistiram com os critérios e 20% daqueles com AN de início precoce também, demonstrando que a evolução pode ser crônica em ambas as patologias.
CONCLUSÕES
O TARE é um transtorno que foi recentemente descrito, apesar dos pediatras estarem há anos lidando com crianças com o que era conhecido como “problemas alimentares”. Por se tratar de um transtorno alimentar, essa doença implica em grande impacto do ponto de vista nutricional e social.
A padronização diagnóstica torna mais fácil a identificação de subtipos de pacientes restritivos possibilitando, assim, uma abordagem mais adequada para a doença.
Em crianças, as intervenções comportamentais têm sido mais estudadas, no entanto, a TCC, utilizada em outros transtornos alimentares, ainda não demonstrou embasamento suficiente. Estratégias de exposição e dessensibilização também constituem uma opção terapêutica.
Por fim, associações desse transtorno com outras doenças psiquiátricas são comumente vistas e, ainda, as complicações decorrentes da desnutrição tornam esses pacientes mais susceptíveis a distúrbios de condução, bradicardias e anormalidades eletrolíticas, podendo contribuir para o incremento na mortalidade.
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1. Universidade Federal da Bahia (UFBA), Residência Médica em Pediatria - Salvador - Bahia - Brasil
2. Centro de Estudos Superiores de Maceió, Graduação em Psicologia - Maceió - Alagoas - Brasil.
Endereço para correspondência:
Mariana Mello Mattos Shaw de Almeida
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Av. Milton Santos, s/nº, Ondina, Salvador, BA, Brasil. CEP: 40170-110.
E-mail: mariana.shaw@hotmail.com
Data de Submissão: 11/09/2020
Data de Aprovação: 18/10/2020