Relato de Caso
-
Ano 2022 -
Volume 12 -
Número
3
Osteomielite vertebral por Salmonella: relato de caso
Osteomyelitis of the spine due to Salmonella infection: a case report
Tiago Kruszynski de Assis; Bárbara Hessel Rodrigues; Pedro Paulo Macarini Gonçalves Vieira; Ricardo Alexandre Sato Watanabe
RESUMO
Osteomielite (OM) aguda é um processo inflamatório do osso acompanhado de destruição óssea, geralmente de etiologia infecciosa bacteriana e disseminação hematogênica. Dentre as diferentes formas de osteomielite em crianças, apenas 1 a 2% acometem a coluna vertebral. Apresentamos o caso de uma paciente de 12 anos, previamente hígida, com OM vertebral com quadro clínico inicial de dor, febre e claudicação sem sintomas gastrointestinais associados. O diagnóstico foi realizado pela cultura da biópsia de corpo vertebral com melhora após antibioticoterapia prolongada e adequada.
Palavras-chave:
Osteomielite, Coluna Vertebral, Pediatria, Salmonella.
ABSTRACT
Acute osteomyelitis (OM) is an inflammatory process of bone accompanied by bone destruction, usually of infectious bacterial etiology and hematogenous spread. Among the different forms of osteomyelitis in children, only 1 to 2% affect the spine. We present the case of a previously healthy 12-year-old patient with vertebral OM with an initial clinical presentation of pain, fever and claudication without associated gastrointestinal symptoms. The diagnosis was made by vertebral body biopsy culture with improvement after prolonged and adequate antibiotic therapy.
Keywords:
Osteomyelitis, Pediatrics, Spine, Salmonella.
INTRODUÇÃO
Osteomielite (OM) aguda é um processo inflamatório do osso acompanhado de destruição óssea, geralmente de etiologia infecciosa bacteriana e disseminação hematogênica, sendo mais comum em ossos longos dos membros inferiores.
Em países desenvolvidos, as taxas de OM são de 2-13/100.000 crianças/ano sendo consideravelmente mais comum em países em desenvolvimento1, em crianças com mais de 5 anos e no sexo masculino, chegando a uma frequência duas vezes maior que no sexo feminino2. Dos casos de OM na faixa etária pediátrica, apenas 1 a 2% acometem a coluna vertebral1.
Os principais fatores de risco para OM em crianças incluem doença falciforme, imunodeficiência, trauma, erosões e ferimentos penetrantes, sendo fatores predisponentes em neonatos a prematuridade, infecções cutâneas, bacteremia e presença de cateter venoso central1.
A OM hematogênica é geralmente causada por um único microrganismo, enquanto as infecções polimicrobianas associam-se à disseminação contígua, trauma, insuficiência vascular ou imobilidade3. O agente etiológico mais comum é o Staphylococcus aureus4 com crescente relevância da bactéria Kingella kingae (em crianças menores que 2 anos)5, podendo estar envolvidos menos frequentemente patógenos como S. pneumoniae, Pseudomonas aeruginosas, Haemophilus influenzae tipo b (Hib) e Salmonella spp., este último mais comum em portadores de doença falciforme1.
Descrevemos o caso de uma paciente de 12 anos, previamente hígida, diagnosticada com OM vertebral por Salmonella spp.
RELATO DE CASO
Paciente G.M.O.D., feminina, 12 anos, procurou o pronto-socorro com história de lombalgia há 7 dias da entrada associada a febre com pico máximo de 39,5°C por 4 dias e claudicação. Negava perda de peso, alterações urinárias e gastrointestinais. Negava comorbidades, viagens recentes, contato com tuberculose ou uso de medicações. Referiu vacinação em dia e um episódio de internação prévia por bronquiolite no primeiro ano de vida.
Ao exame físico, apresentava-se em bom estado geral, corada, hidratada, anictérica, acianótica, com ausculta cardíaca e respiratória sem alterações, dor abdominal difusa à palpação e importante dor à palpação de coluna lombar, com dificuldade de manter ortostase.
No exame neurológico apresentava força muscular grau V em membros inferiores, reflexos osteotendíneos 2/4+ globalmente, reflexo-cutâneo plantar em flexão, sem alterações de sensibilidade ou sinais de radiculopatia.
Na entrada, os exames laboratoriais revelaram aumento de provas inflamatórias, com PCR 10mg/dl e VHS 45mm/h sem leucocitose ou desvio à esquerda no leucograma, e a radiografia simples demonstrou lesão lítica em L3 (Figura 1).
Figura 1. Radiografia de coluna lombar em perfil com lesão lítica em L3 (seta).
Mediante hipótese diagnóstica de osteomielite vertebral, foi indicado repouso absoluto, devido à lesão lítica com risco de colapso ósseo, e internação hospitalar para antibioticoterapia intravenosa de amplo espectro com cefalosporina de terceira geração e oxacilina.
Embora não houvesse história de contato com tuberculose, foi solicitado PPD para avaliar a hipótese de doença extrapulmonar, cujo resultado foi negativo (0mm).
Foram programadas ressonância magnética (Figura 2) e biópsia de coluna para descartar tumor ósseo e para confirmação da osteomielite. A ressonância magnética evidenciou irregularidade do planalto vertebral superior de L3, com edema ósseo de todo o corpo vertebral, sem redução da altura ou destruição óssea e aumento de partes moles paravertebrais bilateralmente neste nível. Mostrou também redução espaço discal L2-L3 sem sinais de processo inflamatório do disco.
Figura 2. Ressonância magnética de coluna lombossacra mostrando irregularidade do planalto vertebral superior de L3 com edema ósseo de todo o corpo vertebral e redução espaço discal L2-L3.
Após início da antibioticoterapia, evoluiu afebril, com melhora progressiva da dor e da capacidade de deambular, sendo suspensa oxacilina no sexto dia por resultado de hemocultura positiva para Salmonella spp. sensível a cefalosporinas. Após 21 dias do início do tratamento, apresentou também redução dos valores das provas inflamatórias, com PCR de 1,2mg/dl e VHS de 15mm/h e manutenção da melhora clínica.
Com 28 dias de tratamento, foi realizada biópsia de L3, que descartou neoplasia e confirmou infecção por Salmonella spp. em cultura positiva, sendo por este motivo mantida antibioticoterapia com ciprofloxacino via oral por mais 4 semanas, tendo evoluído com resolução completa do quadro.
Seguiu em acompanhamento com a infectologia pediátrica, com a ortopedia, para seguimento de lesão lítica vertebral e com a imunologia para investigação de imunodeficiência, descartada após exames laboratoriais inalterados.
DISCUSSÃO
Embora a osteomielite vertebral tenha baixa prevalência, é de suma importância considerar este diagnóstico diferencial entre os pacientes apresentando dor lombar aguda, especialmente quando há relato de febre na história.
O diagnóstico da OM vertebral é feito através de uma abordagem clínica, epidemiológica, laboratorial e radiológica, de maneira a avaliar diagnósticos diferenciais como discite, fratura traumática, abscesso epidural, hérnia de disco, síndrome vaso-oclusiva, escorbuto, leucemia e tumor ósseo1. Ainda, no Brasil e em outros países em desenvolvimento, o possível diagnóstico etiológico de tuberculose se faz essencial para direcionamento terapêutico.
Dentre os diagnósticos diferenciais, a discite merece destaque devido à dificuldade de diferenciação entre os dois quadros em suas fases iniciais. A discite é definida por infecção envolvendo o disco intervertebral e ocorre, principalmente, em crianças menores que 5 anos. O quadro clínico envolve recusa a caminhar ou flacidez progressiva, acompanhada ou não de febre baixa.
Paralelamente, a OM vertebral costuma acometer crianças mais velhas e envolver o corpo anterior da vértebra, sendo a apresentação clínica caracterizada por febre e dor na altura da região acometida6. Nesses casos, é importante considerar agentes como M. tuberculosis e Salmonella1.
Salmonelas são enterobactérias gram-negativas, facultativamente anaeróbias e uma das principais causas de diarreia no mundo. Os surtos causados por essas bactérias estão comumente associados ao consumo de aves e ovos, podendo ocorrer pelo contato com répteis, anfíbios, aves e alimentos para animais7.
Embora a taxa real seja desconhecida, estima-se que aproximadamente 1% das infecções entéricas por Salmonella resultem em bacteremia, podendo progredir para infecção em outros sítios, incluindo trato urinário, pulmão, pleura, coração, articulações, músculos, ossos e sistema nervoso central. Uma hemocultura positiva para Salmonella na ausência de sintomas gastrointestinais pode ser um sinal de disfunção imunológica8.
No caso descrito, a paciente não apresentou sintomas gastrointestinais prévios à osteomielite e também não apresentou alterações laboratoriais compatíveis com imunodeficiência ao longo da investigação. Um quadro semelhante foi descrito em 1999, por Akiba et al. (2001)9, de uma criança hígida de 8 anos, sem queixas gastrointestinais prévias, e que evoluiu com osteomielite vertebral por Salmonella spp.
As alterações laboratoriais da osteomielite de coluna são inespecíficas e a ressonância nuclear magnética (RNM) é o exame de imagem de escolha por apresentar elevada sensibilidade e especificidade e ser capaz de diferenciar a discite da osteomielite, além de caracterizar o envolvimento de tecidos adjacentes. O edema e o material purulento na medula ou espaço discal aparecerão como hipossinal em T1 e como hipersinal em T26.
A radiografia de coluna tem valor diagnóstico limitado e pode estar normal no início da doença. Entretanto, pode ser solicitada como avaliação inicial e apresentar, nos casos de discite, estreitamento de espaço discal e, na OM vertebral, rarefação localizada de um corpo vertebral que posteriormente evolui com destruição óssea, como visto no caso descrito6.
O diagnóstico etiológico é possível por meio da hemocultura e da biópsia da região acometida, sendo a hemocultura positiva em metade dos casos10, enquanto a cultura da biópsia positiva em até 87% dos pacientes11. Uma biópsia por agulha pode não ser necessária em pacientes com achados típicos de osteomielite vertebral e hemoculturas positivas com um patógeno provável12. Entretanto, os patógenos isolados de hemocultura nem sempre se correlacionam com resultados de cultura da biópsia por agulha; dessa forma, a mesma deve ser feita nos casos em que uma fonte alternativa para a bacteremia é fortemente suspeita.
O tratamento da OM é realizado através da antibioticoterapia endovenosa de amplo espectro e deve ser iniciado imediatamente após coleta de material para cultura. A terapia é direcionada de acordo com o patógeno mais provável, determinado pela prevalência local, idade do paciente e resultados laboratoriais precoces como coloração de gram.
Embora a osteomielite seja classicamente tratada com antibioticoterapia endovenosa por 4 a 6 semanas, estudos pediátricos mostraram não haver diferenças em relação a pacientes tratados com antibióticos VO por 20 dias após apenas 2 a 4 dias de terapia endovenosa13.
A necessidade de abordagem cirúrgica é infrequente, porém é indicada em casos de déficit neurológico, abscessos paravertebrais ou epidurais, compressão medular devido ao colapso vertebral e/ou instabilidade da coluna vertebral e progressão, persistência ou recorrência da doença a despeito da terapia antimicrobiana12.
Um caso descrito por Cheng et al., em 201814, apresenta uma paciente de 29 anos com OM vertebral por Salmonella com refratariedade ao tratamento farmacológico, compressão medular e abscessos paravertebrais tendo evoluído com remissão da doença somente após a abordagem cirúrgica.
A maioria dos pacientes com osteomielite vertebral apresenta melhora da dor após o início da terapia, com resolução completa após a fusão óssea; no entanto, há riscos de complicações, sendo a mais grave o comprometimento neurológico secundário à formação de abscesso ou ao colapso ósseo. A melhor maneira de reduzir a morbimortalidade é minimizar o tempo entre o início sintomas e início de terapia apropriada15.
REFERÊNCIAS
1. Saavedra-Lozano J, Falup-Pecurariu O, Faust SN, Girschick H, Hartwig N, Kaplan S, et al. Bone and joint infections. Pediatr Infect Dis J. 2017 Ago;36(8):788-99.
2. Puccini PF, Ferranini MAG, Iazzetti AV. Osteomielite hematogênica aguda em Pediatria: análise de casos atendidos em hospital universitário. Rev Paul Pediatr. 2012;30(3):353-8.
3. Nelson JD. Acute osteomyelitis in children. Infect Dis Clin North Am. 1990 Set;4(3):513-22.
4. Dartnell J, Ramachandran M, Katchburian M. Haematogenous acute and subacute paediatric osteomyelitis: a systematic review of the literature. J Bone Joint Surg Br. 2012 Mai;94(5):584-95.
5. Yagupsky P. Kingella kingae: from medical rarity to an emerging paediatric pathogen. Lancet Infect Dis. 2004;4(6):358-67.
6. Fernandez M, Carrol CL, Baker CJ. Discitis and vertebral osteomyelitis in children: an 18-year review. Pediatrics. 2000 Jun;105(6):1299-304.
7. Marcus R, Varma JK, Medus C, Boothe EJ, Anderson BJ, Crume T, et al. Re-assessment of risk factors for sporadic Salmonella serotype Enteritidis infections: a case-control study in five FoodNet Sites, 2002-2003. Epidemiol Infect. 2007 Jan;135(1):84-92.
8. Rodríguez M, Diego I, Martínez N, Rodicio M, Mendoza M. Nontyphoidal Salmonella causing focal infections in patients admitted at a Spanish general hospital during an 11-year period (1991-2001). Int J Med Microbiol. 2006;296(4-5):211.
9. Akiba T, Arai T, Ota T, Akiba K, Sakamoto M, Yazaki NI. Vertebral osteomyelitis and paravertebral abscess due to Salmonella oranienburg in a child. Pediatr Int. 2001;43:81-3.
10. Waldvogel FA, Medoff G, Swartz MN. Osteomyelitis: a review of clinical features, therapeutic considerations and unusual aspects. N Engl J Med. 1970 Jan;282(4):198-206.
11. Howard CB, Einhorn M, Dagan R, Yagupski P, Porat S. Fine-needle bone biopsy to diagnose osteomyelitis. J Bone Joint Surg Br. 1994;76:311.
12. Berbari EF, Kanj SS, Kowalski TJ, Darouiche RO, Widmer AF, Schmitt SK, et al. 2015 Infectious Diseases Society of America (IDSA) clinical practice guidelines for the diagnosis and treatment of native vertebral osteomyelitis in adults. Clin Infect Dis. 2015 Set;61(6):e26-e46.
13. Peltola H, Paakkonen M, Kallio P, Kallio MJ, Osteomyelitis-Septic Arthritis Study Group. Short- versus long-term antimicrobial treatment for acute hematogenous osteomyelitis of childhood: prospective, randomized trial on 131 culture-positive cases. Pediatr Infect Dis J. 2010 Dez;29(12):1123-8.
14. Cheng W, Lian K, Luo D, Lin D, Feng W, Xian H, et al. Salmonella potsdam causing lumbar vertebral osteomyelitis - a case report. Medicine. 2018 Mai;97(18):e0682.
15. McHenry, MC, Easley KA, Locker GA. Vertebral osteomyelitis: long-term outcome for 253 patients from 7 Cleveland-area hospitals. Clin Infect Dis. 2012 Mai;34(10):1342-50.
Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Tiago Kruszynski de Assis
Escola Paulista de Medicina
Rua Botucatu, nº 740, Vila Clementino
São Paulo - SP. Brasil. CEP: 04023-062
E-mail: tiago.assis@unifesp.br
Data de Submissão: 27/07/2020
Data de Aprovação: 24/08/2020