ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 3

Encefalite por enterovírus com sequelas neurológicas tratada com sucesso com corticosteroides

Enteroviral encephalitis with neurological sequelae treated successfully with corticoids

RESUMO

Infecções por enterovírus são comuns na infância e podem comprometer o sistema nervoso central. A preocupação primária é a ausência de tratamento específico para casos graves. Há dados sobre o uso de imunoterapia para reduzir as sequelas neurológicas e alguns poucos estudos em que foi avaliada a eficácia e segurança dessa modalidade de tratamento. O presente artigo relata um caso de encefalite por enterovírus com sequelas neurológicas tratado de forma bem sucedida com corticosteroides.

Palavras-chave: Encefalite, Doenças do Sistema Nervoso, Infecções por Enterovírus, Imunoterapia.

ABSTRACT

Enteroviral infections are a common condition in childhood that may compromise the central nervous system. The primary concern is the absence of specific treatment for severe cases. Data report uses immunotherapy to reduce neurological sequelae, with limited studies evaluating its efficacy and safety. This case describes enteroviral encephalitis with neurological sequelae, treated successfully with corticosteroids.

Keywords: Encephalitis, Nervous System Diseases, Enterovirus Infections, Immunotherapy.


INTRODUÇÃO

Os enterovírus são uma etiologia comum das doenças virais pediátricas, representando 44% dos casos notificados em crianças com menos de um ano de idade. A encefalite é uma das manifestações mais graves e, embora não exista tratamento específico, imunoterapia tem sido proposta para casos graves com sequelas neurológicas. O presente relato descreve um caso grave de encefalite por enterovírus com sequelas neurológicas, tratado com sucesso com corticosteroides.

O presente estudo foi aprovado pelo Conselho de Revisão Institucional do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.


RELATO DE CASO

Uma menina de 3 anos de idade, previamente hígida, foi trazida à Unidade de Urgência Pediátrica com febre, cefaleia occipital e vômitos, evoluindo com distúrbios do sono, ataxia, disartria e disfagia. Análise de líquido cefalorraqueno (LCR) revelou os seguintes dados: células 392/mm2, hemácias 29/mm2, neutrófilos 29%, linfócitos 63%, monócitos 8%, proteínas 85mg/dl, glicose 68mg/dl, lactato 21mg/dl. Tomografia craniana não identificou anomalias.

Sob suspeita de meningoencefalite, foi iniciado tratamento com ceftriaxona e aciclovir. Novos sintomas apareceram 24 horas após a internação, incluindo tetraplegia, afasia, paralisia facial e agravamento da disfagia, exigindo encaminhamento para a unidade de terapia intensiva. A paciente apresentava oscilações do nível de consciência, exigindo intubação orotraqueal durante três dias. A paciente recebeu dez dias de ceftriaxona e 14 dias de aciclovir sem qualquer melhoria neurológica. Foi levantada a hipótese diagnóstica de encefalomielite disseminada aguda (ADEM), o que levou à introdução de pulsoterapia com metilprednisolona 30mg/kg/dia por cinco dias, com a qual houve melhoria rápida e definitiva dos sintomas neurológicos. No entanto, a ressonância magnética craniana (RM) não identificou sinais específicos de ADEM.

O resultado do teste de reação em cadeia da polimerase (PCR) realizado em amostra de LCR foi positivo para enterovírus, enquanto as culturas bacterianas foram negativas. Foi dado prosseguimento ao tratamento com prednisolona 2mg/kg por duas semanas e mais quatro semanas com redução gradual da dosagem. Um mês e meio após a apresentação inicial, a paciente teve alta com recuperação neurológica quase completa, apresentando mioclonia na mão direita, disartria discreta e desvio da comissura esquerda.


DISCUSSÃO

Os enterovírus são uma das etiologias mais prevalentes de infecções virais pediátricas, causando uma grande gama de acometimentos clínicos. A prevalência de encefalite varia de <1% a 15%1,2 e a taxa de mortalidade relatada chega a 14%1-5. Os sintomas mais frequentes são febre, mioclonia, ataxia, fraqueza dos membros, disfunção de par craniano, todos observados no caso em pauta3.

Na abordagem inicial da encefalite, sem identificação etiológica, é recomendado o tratamento empírico com aciclovir e a antibioticoterapia para cobertura do vírus do herpes simples e bactérias6, os patógenos mais prevalentes. Não obstante os 14 dias de tratamento, nossa paciente não teve qualquer melhoria neurológica.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o presente caso poderia ser classificado como encefalomielite associada à paralisia flácida aguda7, atrelada a recomendação de imunoterapia para a redução de sequelas neurológicas, especificamente através da administração de imunoglobulina endovenosa (IgEV). Existe uma relação entre a doença neurológica por enterovírus grave e elevação do nível de produção de citocinas, o que corrobora o conceito de utilizar terapia anti-inflamatória para melhorar os desfechos. Historicamente, a IgEV foi utilizada em surtos da doença em alguns países8, em casos neonatais graves, pacientes imunocomprometidos, desregulação do sistema nervoso autônomo e insuficiência cardiopulmonar4,7. Tal prática tem levado a redução das taxas de mortalidade e melhorado o prognóstico neurológico, controlando a inflamação, modulando a produção de citocinas e neutralizando patógenos3,9,10. No entanto, para uma recomendação formal, são necessários mais estudos6,11.

Em comparação com IgEV, há pouca informação sobre os efeitos dos corticosteroides na encefalite por enterovírus. Alguns estudos avaliaram seu uso em distúrbios imunomediados, casos de paralisia flácida aguda, mielite transversa, encefalomielite disseminada aguda, mesmo em associação com IgEV, observando efeitos favoráveis na recuperação neurológica devido ao seu efeito anti-inflamatório3,12,13. Outras opções de tratamento em investigação incluem antivirais como ribavirina e pleconaril, que atuam na inibição da replicação e entrada do vírus nas células, respectivamente4,8,14. Dados sobre eficácia e segurança são limitados.

Por conta da suspeita de ADEM, a paciente recebeu altas doses de corticosteroides por cinco dias, apresentando resposta clínica ao final do quinto dia de tratamento. A RM craniana não foi conclusiva para ADEM. O teste de PCR do LCR foi positivo para enterovírus, fechando o diagnóstico de encefalite por enterovírus. A paciente completou seis semanas de corticosteroides como imunoterapia, exibindo recuperação progressiva dos movimentos dos membros e melhora da disfagia e disartria. O tempo de recuperação neurológica varia a cada caso. Indivíduos com comprometimento discreto melhoram em 100% dos casos, mesmo sem tratamento específico; 77% dos casos moderados se recuperam em dois meses; e quase 90% se recuperam em 12 meses após imunoterapia3,15. Nossa paciente recebeu alta um mês e meio após o início dos sintomas com sequelas neurológicas mínimas.


CONCLUSÃO

A imunoterapia parece ser benéfica no prognóstico neurológico e deve ser considerada no tratamento da encefalite por enterovírus de pacientes com comprometimento neurológico grave. Corticosteroides podem ser uma opção disponível de imunoterapia. Mais pesquisas são necessárias para estabelecer sua eficácia.


REFERÊNCIAS

1. Ai J, Xie Z, Liu G, Chen Z, Yang Y, Li Y, et al. Etiology and prognosis of acute viral encephalitis and meningitis in Chinese children: a multicentre prospective study. BCM Infect Dis [Internet]. 2017; [cited 2019 Jan 27]; 17(494):494. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5513334/pdf/12879_2017_Article_2572.pdf

2. Fowlkes AL, Honarmand S, Glaser C, Yagi S, Schnurr D, Oberste MS, et al. Enterovirus-associated encephalitis in the california encephalitis project, 1998-2005. J Infect Dis [Internet]. 2008; [cited 2019 Jan 27]; 198(11):1685-91. Available from: https://academic.oup.com/jid/article-abstract/198/11/1685/961680

3. Teoh HL, Mohammad SS, Britton PN, Kandula T, Lorentzos MS, Booy R, et al. Clinical characteristics and functional motor outcomes of enterovirus 71 neurological disease in children. JAMA Neurol [Internet]. 2016 Mar; [cited 2019 Jan 27]; 73(3):300-7. Available from: http://archneur.jamanetwork.com/article.aspx?doi=10.1001/jamaneurol.2015.4388

4. Jain S, Patel B, Bhatt GC. Enteroviral encephalitis in children: clinical features, pathophysiology, and treatment advances. Pathog Glob Health [Internet]. 2014; [cited 2019 Jan 27]; 108(5):216-22. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4153822/pdf/pgh-108-05-216.pdf

5. Huang CC, Liu CC, Chang YC, Chen CY, Wang ST, Yeh TF. Neurologic complications in children with enterovirus 71 infection. N Engl J Med [Internet]. 1999; [cited 2019 Jan 27]; 341(13):936-42. Available from: https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJM199909233411302

6. Tunkel AR, Glaser CA, Bloch KC, Sejvar JJ, Marra CM, Roos KL, et al. The management of encephalitis: clinical practice guidelines by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis [Internet]. 2008 Aug; [cited 2019 Jan 27]; 47(3):303-27. Available from: https://academic.oup.com/cid/article-abstract/47/3/303/313455

7. World Health Organization (WHO). A guide to clinical management and public health response for hand, foot and mouth disease (HFMD). Geneva: WHO; 2011.

8. Ooi MH, Wong SC, Lewthwaite P, Cardosa MJ, Solomon T. Clinical features, diagnosis, and management of enterovirus 71. Lancet Neurol. 2010 Nov;9(11):1097-105. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(10)70209-X

9. Bhatt GC, Sankar J, Kushwaha KP. Use of intravenous immunoglobulin compared with standard therapy is associated with improved clinical outcomes in children with acute encephalitis syndrome complicated by myocarditis. Pediatr Cardiol [Internet]. 2012; [cited 2019 Jan 27]; 33(8):1370-6. Available from: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2Fs00246-012-0350-4.pdf

10. Wang SM, Lei HY, Huang MC, Su LY, Lin HC, Yu CK, et al. Modulation of cytokine production by intravenous immunoglobulin in patients with enterovirus 71-associated brainstem encephalitis. J Clin Virol [Internet]. 2006; [cited 2019 Jan 27]; 37(1):47-52. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16861032/

11. Kneen R, Michael BD, Menson E, Mehta B, Easton A, Hemingway C, et al. Management of suspected viral encephalitis in children - Association of British Neurologists and British Paediatric Allergy, Immunology and Infection Group National Guidelines. J Infect [Internet]. 2012 May; [cited 2019 Jan 27]; 64(5):449-77. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22120594/

12. Defresne P, Meyer L, Tardieu M, Scalais E, Nuttin C, Bont B, et al. Efficacy of high dose steroid therapy in children with severe acute transverse myelitis. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2001;71(1):272-4.

13. Pillai S, Tantsis E, Prelog K, Ramanathan S, Webster R, Ouvrier RA, et al. Confirmed enterovirus encephalitis with associated steroid-responsive acute disseminated encephalomyelitis: an overlapping infection and inflammation syndrome. Eur J Paediatr Neurol. 2015 Mar;19(2):266-70. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejpn.2014.12.015

14. Rotbart HA, Webster AD. Treatment of potentially life-threatening enterovirus infections with pleconaril. Clin Infect Dis. 2001 Jan;32(2):228-35. DOI: https://academic.oup.com/cid/article-lookup/doi/10.1086/318452

15. Huang MC, Wang SM, Hsu YW, Lin HC, Chi CY, Liu CC. Long-term cognitive and motor deficits after enterovirus 71 brainstem encephalitis in children. Pediatrics. 2006;118(6):e1785-e8. DOI: www.pediatrics.org/cgi/doi/10.1542/










Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, Departamento de Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Laura Catalina Chavarro Borrero
Hospital Universitário da Universidade de São Paulo
Av. Prof. Lineu Prestes, nº 2565, Butantã
São Paulo, SP, Brasil. CEP: 05508-000
E-mail: lauracata_91@hotmail.com

Data de Submissão: 30/06/2020
Data de Aprovação: 26/10/2020