Artigo de Revisao
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Ano 2022 -
Volume 12 -
Número
3
Doença inventada ou induzida em uma criança pelo (a) cuidador (a): o que o médico precisa saber
Illness fabricated or induced in a child by a caregiver: what the doctor needs to know
Marcia Maria Costa Giacon Giusti; Carolina Machado Benites; Amanda Beatriz Andrade; Renan Gianecchini Vignardi; Anna Carolina Macieira Feitosa; Gabriel Stecca Canicoba; Carmen Silvia Molleis Galego Miziara; Ivan Dieb Miziara
RESUMO
A invenção, indução ou exacerbação da doença pelos cuidadores é conhecida como síndrome de Munchausen por procuração desde o século passado, embora esse nome seja atualmente considerado inadequado. Para este estudo, adotaremos esta segunda designação. O abuso infantil não é um problema recente, nem é fácil identificar. O agressor pode praticar múltiplas formas de agressão, mas uma delas assume importância não só pelas consequências imediatas ou tardias, mas também porque o agressor, na maioria das vezes, é a mãe. Este estudo teve como objetivo abordar a síndrome de forma ampla com informações sobre o diagnóstico e conduta médica e jurídica, conforme dados da literatura.
Palavras-chave:
Síndrome de Munchausen por Procuração, Violência, Abuso Infantil, doença inventada ou induzida (FII) em crianças.
ABSTRACT
The caregivers fabrication, induction, or exacerbation of disease has been known as Munchausen syndrome by proxy since the last century, although this name is currently considered inappropriate. For this study, we will adopt this second designation. Child abuse is not a recent problem, nor is it easy to identify. The perpetrator can practice multiple forms of aggression, but one of them assumes importance not only because of the immediate or late consequences but also because the aggressor, in most cases, is the mother. This study aimed to broadly address the syndrome with information about the diagnosis and medical and legal conduct, according to literature data.
Keywords:
Munchausen Syndrome by Proxy, Violence, Child Abuse, Fabricated or Induced Illness (FII) in Children.
INTRODUÇÃO
A invenção, indução ou exacerbação da doença pelo cuidador é conhecida como síndrome de Munchausen por procuração desde o século passado, embora esse nome seja atualmente considerado inadequado, pois retira o foco da criança e direciona o tema para o transtorno psiquiátrico do cuidador da criança1. Para este estudo, adotaremos o nome de doença inventada, fabricada ou induzida (FII) em crianças por um cuidador.
A indução da doença é estabelecida quando o agressor utiliza algum mecanismo para desencadear uma condição mórbida (doença ou lesão) na vítima, como pode ocorrer com o uso de veneno. Por sua vez, a invenção seria o uso de mentiras, omitindo ou afirmando a ocorrência de uma condição de doença inexistente, como adicionar sangue à urina de uma criança simulando hematúria2.
O termo síndrome de Munchausen por procuração (SMPP) foi cunhado por Roy Meadow (pediatra inglês), em 1977, como uma forma grave e persistente de abuso infantil em que o cuidador, geralmente a mãe, “inventa ativamente”, exacerba, falsifica, simula ou induz doenças em crianças sob seus cuidados, tentando convencer os pediatras de que há necessidade de atendimento médico3.
Segundo Roesler, 2015, qualquer doença pediátrica pode ser inventada de diversas formas4, principalmente aquelas em que a informação fornecida pelo cuidador é base fundamental para o sucesso diagnóstico5, como a epilepsia. As manifestações clínicas das convulsões podem ser simuladas por meio de informações incorretas/imprecisas ou mesmo produzidas pela administração de substâncias como a alimemazina (ou trimeprazina - N, N, 2-trimetil-3-fenotiazin-10-ilpropan-1-amina) que é um derivado de fenotiazina relacionado com clorpromazina). A refratariedade da doença também pode estar relacionada à baixa adesão ao tratamento pelo responsável pelo cuidado da criança6.
Os consequentes abusos contra crianças, baseados na desordem fática do agressor, não são facilmente identificados ou mensurados. Estima-se que 200 crianças sejam vitimizadas a cada ano nos Estados Unidos da América, mas esse número certamente é subestimado7.
A falha em reconhecer ou retardar o diagnóstico da SMPP, devido à sua complexidade diagnóstica, é fator de altas taxas de morbimortalidade infantil, estima-se que a taxa de mortalidade seja em torno de 10% e a morbidade seja superior a 50%8.
A não identificação dessa doença expõe as vítimas a riscos e sofrimentos físicos e mentais de grandes proporções, tanto por métodos de investigação quanto por tratamentos desnecessários. Conhecer o tema é a melhor forma de alertar os profissionais para a possibilidade da doença e evitar a perpetuação dos maus-tratos. O objetivo deste estudo foi abordar de forma ampla a síndrome com informações sobre o diagnóstico e os procedimentos a serem adotados, conforme dados da literatura.
MÉTODO
Foi realizada uma revisão narrativa da literatura na Universidade Nove de Julho, sem limite de tempo de busca, aplicando-se os descritores Síndrome de Munchausen por Proxy e Síndrome de Munchausen causada por terceiros. A base de dados foi PubMed e Periódicos da Capes. Os critérios de inclusão foram artigos que continham as palavras Munchausen ou Doença inventada ou Induzida em Crianças no título ou resumo e artigos obtidos na íntegra.
Resumo histórico
A Síndrome de Munchausen foi inspirada na criação histórica de Karl Friedrich Hieronymus, conhecido como Barão de Münchausen, 1720-1797, e eternizada por suas histórias fabulosas e exageradas6,7, e foi citada pela primeira vez pelo Dr. Richard Alan John Asher em 1951. Em seu artigo, Asher escreveu: “Aqui está descrita uma síndrome comum que a maioria dos médicos já viu, mas sobre a qual pouco se escreveu”9. A síndrome de Munchausen por procuração está incluída na Classificação Internacional de Doenças, 10a edição, como sendo a falsa produção, repetidamente, de sinais e sintomas, sem motivo óbvio, com motivação interna e que muitas vezes está associada a transtornos de personalidade e relacionamento10.
Em um artigo publicado no The Lancet em 1977, Meadow descreveu dois casos de mães que durante anos forneceram informações falsas “sistematicamente” sobre os sintomas clínicos de seus filhos. O primeiro caso foi uma menina de seis anos com hematúria e piúria desde os três anos de idade, resistente a múltiplos esquemas terapêuticos. O segundo caso foi de um menino com hipernatremia desde as seis semanas de idade e que apresentava sonolência e vômitos intermitentes. Um de seus testes mostrou 160-175 mmol de sódio. A autópsia mostrou erosão gástrica que poderia ter sido causada por alguma substância química. Neste artigo médico, o termo síndrome de, traduzido como síndrome de Munchausen ou causado por terceiro, foi aplicado pela primeira vez11. Recentemente, outro termo foi sugerido para designar essa condição, abuso médico infantil4 ou doença induzida (FII)12.
Nomenclatura
Desde a primeira publicação de Meadow em 1977 (síndrome de Munchausen), várias outras terminologias têm sido utilizadas para representar a invenção do cuidador, indução ou exacerbação de doença ou sintomas em crianças. No Reino Unido, o termo “doença inventada ou induzida por cuidadores” é usado para designar a síndrome de Munchausen, ressaltando que o foco do problema é a criança (vítima) e não a doença psiquiátrica do agressor1. Nos Estados Unidos da América, aplica-se a nomenclatura “abuso médico infantil”4,13, reforçando o fato de que muitos danos são causados pela atuação do médico devido à falha ou impossibilidade de reconhecimento da condição.
O termo falsificação de doença pediátrica (FDP), seja devido a doença, deficiência ou sintoma, também foi sugerido pela American Professional Society on the Abuse of Children em substituição ao nome Síndrome de Munchausen por procuração.
Em 2013, a quinta edição do Manual de Transtornos Mentais (DSM-5) incluiu entre os “Sintomas Somáticos e Transtornos Relacionados” os transtornos factícios impostos a outros em substituição à designação de transtorno factual, conforme consta na quarta edição (DSM-4)14.
Definições
A SMPP é uma forma grave de violência, com consequentes danos, decorrentes da atuação dos pais/cuidadores nas mais diversas formas: invenção de sinais e sintomas (podendo incluir informações inverídicas no histórico médico da criança); invenção de sinais e sintomas falsificados em documentos médicos e indução de manifestações de doenças nas mais diversas formas15.
Um estudo multicêntrico internacional concluiu que a invenção ou indução de sangramento, abuso de substâncias, relatos de crises epilépticas, provocação de febre ou atraso no desenvolvimento foram os meios mais utilizados pelo agressor na tentativa de induzir o médico a investigar, muitas vezes de forma invasiva, e/ou instituir tratamentos com potencial para eventos adversos16.
Epidemiologia, incidência e prevalência
Poucos estudos enfocam a incidência e prevalência da síndrome, mas não mencionam que a subnotificação é evidente devido à grande dificuldade de diagnóstico. Estima-se que a taxa de FII seja de 0,04% de todas as crianças abusadas17.
Um estudo irlandês publicado em 1996, mostrou que a incidência de envenenamento não acidental ou maus-tratos por asfixia em menores de 16 anos foi de 0,5/100 mil crianças. Quando analisaram menores de 5 anos, a incidência foi de 1,2/100 mil e em menores de 1 ano, tal incidência aumentou para 2,8/100 mil18. Na Nova Zelândia, a taxa foi de 2/100 mil19.
Ferrara et al., 2013, avaliaram 751 pacientes pediátricos hospitalizados (média de idade 8,4 anos) e encontraram prevalência de 1,8% de transtorno factício e 0,53% (média de idade 10,5 anos) de FII, com duração média de abuso de 10,3 meses20.
Gênero: não há diferença entre os gêneros18, ou com leve predominância do sexo masculino (54%)16. Idade - crianças menores de 5 anos são as vítimas mais frequentes18, com média de idade entre 20 e 31 meses18,19,21,22. Crianças menores de 3 anos correspondem a 26%, de 3 a 13 anos a 52% e maiores de 13 anos 12%16.
Formas de atuação do agressor: diversas formas podem ser aplicadas pelo perpetrador para inventar ou induzir as manifestações de adoecimento na criança, as seguintes são citadas como as mais comumente empregadas1.
a) Indução de sintomas por administração de drogas ou outras substâncias ou asfixia intencional18;
b) Não seguir as recomendações médicas quanto ao tratamento (modificar ou suspender a administração);
c) Inventar sintomas subjetivos como dor, poliúria, vômitos e crises epilépticas;
d) Exagerar os sintomas;
e) Falsificar resultados de testes ou adulterar material biológico levando a análises laboratoriais incorretas;
f) Obtenção de tratamentos ou equipamentos especializados para crianças que não sejam necessários;
g) Afirmar que a criança tem uma doença mental.
Diagnóstico
A complexidade da doença torna o diagnóstico muito difícil, nem sempre possível de ser determinado. Muitos sinais e sintomas estão presentes em outras doenças, da mesma forma, alguns meios aplicados pelo agressor também podem mimetizar outras condições, como intoxicações, hematúria, vômitos, etc.
Como em qualquer outro tipo de violência, o diagnóstico de FII depende mais das circunstâncias do que das evidências, pois raramente é presenciado diretamente o ato de fabricar, induzir ou exagerar a doença. Portanto, o diagnóstico consiste em aspectos relacionados às manifestações clínicas da criança e uma análise de todas as situações que envolvem a criança e sua família, principalmente no que diz respeito às condições médicas da família. Alguns critérios são sugeridos e, entre eles, estão os descritos por Rosenberg (2003) como forma de possibilitar a identificação da síndrome FII a partir de outras morbidades23. O diagnóstico de inclusão é aquele que é sustentado por achados objetivos e o diagnóstico de exclusão é aquele que que permanece, após uma investigação exaustiva. O autor cita como critérios de inclusão, as seguintes condições em associação: raramente é possível a prova indiscutível da ação do autor, seja por testemunha confiável ou por filmagem; casos em que a criança tem histórico médico de múltiplas consultas de diferentes profissionais; evidência de adulteração de resultados de exames ou documentos médicos; resultados de exames complementares com baixa ou nenhuma credibilidade; inconsistência dos resultados dos exames complementares quanto às informações clínicas ou condições clínicas; os achados clínicos não têm outra explicação senão a falsificação da doença.
Nos casos envolvendo crianças mais velhas, a vítima também pode estar envolvida em conluio de falsificação para ser aceito pela mãe24.
Sinais e sintomas de alerta
O reconhecimento de sinais e sintomas de alerta para SMPP não é apenas uma questão da equipe de saúde, mas de toda a sociedade. A discrepância entre a história fornecida pelo acompanhante, em geral, a mãe, e os achados do exame físico, o conjunto de sintomas sem explicação biológica, os sinais e sintomas que se manifestam apenas na presença do cuidador, a inconsistência e inexplicável resposta ao tratamento preconizado, os novos sintomas relatados repetidamente, a busca por inúmeras consultas por diferentes profissionais para manter a investigação apesar do diagnóstico ter sido concluído e o uso excessivo de recursos para a vida diária da criança apesar de não ter sido indicado pelo médico (cadeirante , sondas, etc.) deve ser considerado como provável da síndrome12.
A invenção de crises epilépticas ocorre em 42% dos casos de FII25, e não é incomum o uso de insulina para causar hipoglicemia e consequentes crises epilépticas. O teste do peptídeo C é um método para identificar a administração de insulina exógena. A intoxicação por alimemazina, varfarina, mercúrio, sal, hidróxido de sódio e outros também é frequente26.
Greiner et al. (2013), revisaram prontuários hospitalares de crianças atendidas no serviço de proteção à criança com vômitos, diarreia, apneia e epilepsia. Os resultados foram comparados com crianças com as mesmas manifestações sem histórico de maus-tratos (controle). A partir da revisão de prontuários, os autores desenvolveram um instrumento com alta sensibilidade e especificidade de triagem que é composto por 15 questões. Uma pontuação maior ou igual a 4 deve ser considerada um possível FII27.
Quanto ao cuidador, é uma pessoa com características da síndrome de Munchausen (múltiplos diagnósticos, cirurgias e internações sem diagnóstico específico), doença mental, história de abuso infantil anterior e insiste em deixar o hospital ou manifesta desejo de transferir o filho. Em relação à vítima, é comum história de cianose, com múltiplas visitas hospitalares nos últimos seis meses, consultas frequentes com vários especialistas, apresentando remissão dos sintomas quando o cuidador está ausente, história frequente de apneia após alta do berçário, sintomas de diarreia com ou sem vômito por vários dias e sem diagnóstico definitivo, ou exames que demonstrem nível tóxico da medicação em mais de uma ocasião27.
Flaherty e MacMillan (2013) descreveram os principais sintomas de alerta para FII de acordo com os diferentes sistemas: musculoesquelético (claudicação; fraqueza muscular; ou fraturas ósseas); nervoso (dor de cabeça e epilepsia); respiratório (apneia do sono; dificuldade respiratória, asma ou hipóxia); endócrino (diabetes); digestivo (diarréia; vômito; perda de peso; dor abdominal; necessidade de nutrição parenteral); urinária (infecção) e cutânea (erupção cutânea; contusões; ou escoriações)22.
Metade das vítimas apresenta manifestações neurológicas como sedação, coma, distúrbio da marcha e epilepsia19, embora muitas crises epilépticas sejam refratárias ao tratamento convencional, pois são causadas pelo agressor, além de sedação que pode ser induzida pelo uso de pela substância psicoativa ou mesmo pela insulina e asfixia28. Os distúrbios gástricos podem ser fabricados pelo uso de laxantes ou eméticos e os distúrbios respiratórios podem ser fabricados por um mecanismo obstrutivo (asfixia) ou pelo uso de substâncias constritoras brônquicas. Não são incomuns as queixas hematológicas caracterizadas por sangramento nasal (epistaxe), hematúria, hemoptise ou hematoquezia que podem ser fabricadas pela adição do próprio sangue do agressor ou pela administração de anticoagulantes. Substâncias cáusticas podem causar erupções cutâneas ou as lesões podem ser falsificadas pelo uso de corantes. Também é descrito que o cuidador pode infundir fezes, urina ou outros elementos infecciosos na veia de crianças para causar sepse29.
Resumidamente, podemos citar alguns aspectos que devem ser entendidos como alerta para o diagnóstico de FII: história clínica inconsistente; a sintomatologia é atípica; os sintomas não se correlacionam com os achados médicos; o cuidador nunca fica satisfeito com o tratamento; a resposta ao tratamento é insatisfatória ou ausente, apesar de bem indicada; sintomas manifestam-se na presença do cuidador; o cuidador não expressa alívio com a melhora dos sintomas ou condições da vítima, e o cuidador requer publicamente simpatia ou doação22,30.
Perfil do perpetrador
A maioria dos agressores é do sexo feminino (97,6%), casado (75,8%), com idade média (no momento do diagnóstico da criança) de 27,6 anos, com alta frequência de ter profissão relacionada à saúde (45,6%), com história de complicações obstétricas em 23,5%, ou com história de abuso infantil em 30%. A mãe é a agressora em 95,6% dos casos, e é uma pessoa com transtorno psiquiátrico, sendo o transtorno factício imposto a ela o mais prevalente (30,9%), mas também pode apresentar transtorno de personalidade (18,6%) e depressão ( 14,2%).30 Esses distúrbios não a impedem de desenvolver um bom relacionamento com a equipe médica e raramente se distancia da vítima durante as internações17.
O DSM-5 aplica o termo transtorno factício imposto a outrem para caracterizar o FII e o define como a caracterização falsificada de sinais ou sintomas físicos ou psicológicos, ou a indução de lesão ou doença a outra pessoa, neste caso, a criança, que é apresentada a terceiros como doente, inválida ou ferida. Esse comportamento anormal persiste mesmo sem recompensas externas evidentes e não pode ser explicado por outro transtorno mental, como transtorno delirante ou outro transtorno psicótico14. O transtorno factual imposto a outro não deve ser considerado para a vítima, mas para o agressor.
Transtorno factício
Perpetrador é uma pessoa com transtorno factício, ou seja, é uma condição simulada produzida intencionalmente (síndromes de dissimulação) sem incentivos externos14.
O transtorno factício está relacionado à intencionalidade do comportamento e da motivação. Assim, das doenças simuladas, os sintomas produzidos inconscientemente são considerados transtornos somatoformes, sendo divididos entre aqueles que apresentam principalmente queixas neurológicas (transtorno de conversão) e aqueles que apresentam queixas de vários sistemas e órgãos (transtorno de somatização); e os sintomas produzidos intencionalmente são considerados dissimulação de doenças, e destes, aqueles que são motivados por estímulos externos são chamados de simulação e aqueles que não são motivados por estímulos externos são chamados de transtornos factícios2, procuração ou síndrome de Munchausen por procuração4,5.
A maioria dos agressores são as mães que demonstram muito carinho pela criança, são cuidadosas e insistem em ficar com a criança durante a internação, fatos que podem confundir os médicos. Em geral, induz a equipe a realizar diagnósticos e tratamentos sofisticados e nem sempre isentos de riscos. Demonstra preocupação desproporcional com a gravidade do resultado. Mesmo quando confrontada, ela nega a fabricação de sinais ou sintomas5,7.
Perfil do pai
A maioria dos estudos se concentra na figura do agressor, que na grande maioria é a mãe. Em geral, o pai tende a ficar longe da criança, não costuma se envolver emocional ou fisicamente com a vítima tanto quanto com o ambiente familiar, por isso assume uma atitude passiva e ausente24,31.
Prognóstico
O prognóstico depende do método aplicado pelo agressor, do tempo de exposição e do estado da criança. Estima-se que a taxa de mortalidade seja de 9%7, mas esse percentual certamente é subestimado, pois muitos diagnósticos não são feitos. Lesões físicas (tanto pela ação do agressor quanto por meio de investigação e tratamento) e psicológicas (dependência da mãe e da própria doença, ansiedade, agressividade, comportamento hiperativo e depressivo, distúrbios de aprendizagem, dificuldade de interação social) são frequentemente observadas5.
Lesões psiquiátricas podem ocorrer sem a presença de lesões físicas mais graves e estão relacionadas à quebra de confiança na relação mãe-filho13.
Pouco se discute na literatura médica sobre as consequências dessa violência ao longo da vida adulta das vítimas. Em artigo publicado em 1995, o autor obteve informações de adultos que foram vítimas de FII na infância, e o resultado mostrou que os principais impactos vivenciados por essas vítimas na vida adulta foram dificuldade em manter relacionamentos, insegurança e dificuldade em separar a fantasia da realidade em relação à doença32. Este estudo apresenta várias limitações, incluindo a pequena amostra e a forma como o FII foi identificado (declarado pelos entrevistados).
Shapiro, 201133, descreveu a sequela psicológica desta doença em um adolescente que, mesmo longe do contato da mãe (autor) e distante das “fabricações de manifestações clínicas”, persistia com vários sintomas de doenças inexistentes, do ponto de vista físico, denotando dano psicológico à vítima com dano significativo à realidade, também chamado de “folie à deux”, assim pode ser comparado à síndrome de Estocolmo34.
Conduta médica não medicamentosa: aspectos forenses no Brasil
Lei nº. 6.259, de 30 de outubro de 1975, estabelece as regras relativas às notificações compulsórias, em seu artigo 8º, estabelece que todos os médicos e demais profissionais de saúde são obrigados a notificar casos suspeitos ou confirmados de doenças que façam parte da lista elaborada pelo Ministério da Saúde, a ser atualizado periodicamente35.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 13, estabelece que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente devem ser obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar local, a quem compete analisar o caso e, se necessário, acionar o Ministério Público, a autoridade policial e/ou Justiça, portanto, mesmo sem diagnóstico certo de síndrome de Munchausen causada por terceiros36.
Portaria nº. 204, de 17 de fevereiro de 2016, define a lista de doenças, agravos e eventos de saúde que devem ser notificados, inclusive violência, ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)37.
Portanto, o médico diante de um caso suspeito ou confirmado deve informar o conselho e realizar a notificação compulsória sob pena de infração ética (artigo 73) da Resolução CFM nº. 2217/201838 (Código de Ética Médica) e penal (Art. 269 - “Deixar o médico denunciar ao poder público doença cuja notificação é obrigatória: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa”39.
Em 2002, a American Professional Society on the Abuse of Children (APSAC) ratificou a importância do novo nome para síndrome de Munchausen por procuração e analisou o FII sob dois aspectos: a identificação da vitimização infantil e sugeriu o termo “falsificação da condição pediátrica”, e a identificação da motivação do agressor13.
A informação que deve ser prestada ao tribunal para que o julgamento do caso seja realizado de forma imparcial e com elementos médicos objetivos é fundamental para a proteção da criança. Portanto, a busca por evidências médicas que comprovem o abuso é de grande importância.
A investigação das histórias médicas da criança (desde o nascimento), dos irmãos (especialmente no que se refere à ocorrência de óbito) e da mãe, bem como dados sobre a dinâmica familiar, revelam-se fundamentais. Nesse ponto, destaca-se que a internação e o atendimento médico prévio da criança, em sua grande maioria, foram em locais distintos, com frequente adulteração de resultados de exames ou da documentação médica. Os prontuários devem ser analisados minuciosamente e verificados se a equipe médica em alguma circunstância presenciou as queixas descritas pela mãe.
Um dado de grande importância para o estabelecimento da SMPP é a descrição das manifestações clínicas pela mãe40.
Considerações finais
A SMPP é um tipo de maus-tratos imposto a crianças, de ambos os sexos, nos primeiros cinco anos de vida, predominantemente, cujo perpetrador, em geral, é a mãe que possui diagnóstico psiquiátrico de transtorno factício. Diferentes mecanismos de fabricação de doença ou agravamento de condições mórbidas anteriores podem ser utilizados pelo agressor. O não diagnóstico por parte do médico pode representar sérios danos à saúde física e mental da criança, inclusive a morte. Alguns critérios diagnósticos são sugeridos e devem ser conhecidos pelos médicos, mas isso não significa que seja um diagnóstico fácil, mas podem ajudar. Diante da suspeita ou confirmação, o médico deve adotar medidas médicas e legais que visem proteger a criança de novas agressões.
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Universidade Nove de Julho. Ética Médica - São Paulo - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Carmen Silvia Molleis Galego Miziara
Nove de Julho University
Av. Professor Luiz Ignacio Anhaia Mello, nº 1363, Vila Prudente
São Paulo - SP. Brasil. CEP: 03155-000
E-mail: carmen.miziara@hc.fm.usp.br
Data de Submissão: 07/01/2020
Data de Aprovação: 05/24/2022