ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 3

Úlcera genital aguda em adolescente: caso clínico

Acute genital ulceration in an adolescent

RESUMO

Úlcera genital aguda, também conhecida como úlcera de Lipschütz, é uma condição incomum, não sexualmente transmissível, caracterizada pelo aparecimento de uma úlcera necrótica de rápida evolução, dolorosa, na região vulvar. Ocorre nas adolescentes e nas jovens, com ou sem atividade sexual. Pode ser precedida de sintomas influenza-like ou mononucleose-like. A úlcera genital aguda tem sido associada com infecção pelo vírus Epstein-Barr (VEB) ou outra infecção viral ou bacteriana. No entanto, na maioria dos casos, a causa não é determinada. Relata-se o caso clínico de uma adolescente de 11 anos, sem ulcerações vaginais ou orais prévias, sem contato sexual, que recorreu ao hospital com o aparecimento há seis dias, de úlcera vulvar de rápida progressão, precedida de febre baixa episódica. A exclusão de causas infecciosas, a cicatrização espontânea da lesão e a sorologia indeterminada para Epstein-Barr levou ao diagnóstico de úlcera de Lipschütz.

Palavras-chave: Úlcera, Adolescente, Genitália.

ABSTRACT

Acute genital ulcer, also known as Lipschütz ulcer, is an uncommon, non-sexually transmitted condition characterized by the rapid onset of a necrotic and painful ulcer in the vulvar region. It occurs in adolescents and young women, with or without sexual activity. It may be preceded by influenza-like or mononucleosis-like symptoms. Acute genital ulcers have been associated with Epstein-Barr virus (EBV) infection or other viral or bacterial infections. However, in most cases, the cause is not determined. We report the clinical case of an 11-year-old girl without previous vaginal or oral ulceration without sexual contact who sought medical assistance with a rapidly progressive vulvar ulcer wich had started six days before, preceded by episodic low fever. The exclusion of infectious causes, the spontaneous healing of the lesion and the indeterminate serology for Epstein-Barr led to the diagnosis of ulcer of Lipschütz.

Keywords: Ulcer, Adolescent, Genital System.


INTRODUÇÃO

O diagnóstico de úlceras genitais é um desafio clínico, principalmente na idade pediátrica, em que a maioria das úlceras genitais não se deve a infecções sexualmente transmissíveis (IST). O aparecimento de úlceras genitais pode causar considerável ansiedade no adolescente e família, ao levantar questões sobre atividade sexual, IST e até suspeita de abuso sexual.

CASO CLÍNICO

Adolescente de 11 anos, sem antecedentes pessoais ou familiares relevantes, nomeadamente de úlceras genitais ou orais recorrentes, lesões cutâneas ou exantemas, artralgias, infecção de vias aéreas superiores, inflamação ocular ou contatos sexuais conhecidos, recorreu ao serviço hospitalar da Santa Casa de Montes Claros com quadro de lesões em mucosa vulvar. Inicialmente a lesão era única e encontrava-se à esquerda da vulva e, no quarto dia de evolução, surgiu nova lesão à direita, em posição simétrica (Figura 1). As lesões tinham caráter ulcerativo, com bordas violáceas, bem definidas, dolorosas, acometendo o períneo bilateralmente. Apresentaram uma rápida progressão e, no sexto dia, as lesões eram profundas e continham necrose extensa, associada à fibrina em sua superfície. A partir do décimo dia as lesões apresentaram involução, com resolução completa no décimo nono dia de doença. Relatou febre baixa, episódica, 5 dias antes do surgimento das lesões. Apresentava bom estado geral e sem outros sinais e sintomas.


Figura 1. Evolução da úlcera. Evolução cronológica da úlcera da esquerda para a direita.



Foram realizados exames: Epstein Barr: IgG reagente (78,74) e IgM indeterminado (0,97) – próximo do valor reagente (0,99); VDRL: negativo; HIV 1 e 2: negativos; FAN: não reator; toxoplasmose IgM e IgG: negativos; citomegalovírus: IgG positivo e IgM negativo; HBsAg: negativo; herpes vírus simples 1 e 2: IgG e IgM negativo; hemocultura: ausência de crescimento bacteriano; hemograma: sem alterações; PCR: 24mg/L; fator reumatoide: negativo; antiestreptolisina O: <200U/ml; urina rotina: sem alterações; gram de gota: ausência de bactérias; urocultura: ausência de crescimento bacteriano; swab da lesão: ausência de crescimento bacteriano; ultrassom de abdome e pelve e tomografia computadorizada pélvica: evidenciaram hepatomegalia leve e ausência de extensão da lesão para planos profundos. Não foi realizada biópsia da lesão.

O tratamento instituído, durante a sua internação, foi debridamento da lesão, higiene com soro fisiológico, colocação de sonda vesical de demora para alívio da dor às micções e analgesia. Foram utilizados antibióticos de largo espectro, até o esclarecimento da etiologia. A paciente evoluiu com melhora espontânea das lesões, progressiva cicatrização com tecido de granulação e expressiva redução da lesão em 15 dias.


DISCUSSÃO

Úlcera genital aguda, também conhecida como úlcera de Lipschütz, é uma condição incomum, não sexualmente transmissível, caracterizada pelo rápido aparecimento de uma úlcera necrótica e dolorosa na região vulvar. As ulcerações são usualmente largas (maiores de 1cm) e profundas, com borda violácea e bem definida e base necrótica coberta por exsudato acinzentado. Mais usualmente, localizam-se nos lábios menores, mas podem se estender para os lábios maiores, períneo, vestíbulo e introito vaginal. Uma aparência parcialmente simétrica em “padrão de beijo” (“kissing lesions”) é característica. Sinais associados incluem edema dos lábios e adenopatia inguinal1-3.

A úlcera genital aguda tem progressão autolimitada e a sua cicatrização é espontânea e completa entre 2 a 6 semanas após seu aparecimento. Normalmente não apresenta cicatrização sequelar ou distorção (exceto naquelas com grandes dimensões). Na maioria das vezes a doença não recorre13.

Ocorre tipicamente em adolescentes e jovens, não relacionada à atividade sexual. Pode ser precedido de sintomas influenza ou mononucleose-like, como febre, mal-estar, tonsilite, odinofagia, adenopatia, mialgias, cefaleias, e aumento das transaminases hepáticas1,4,7. A úlcera genital aguda tem sido associada com infecção aguda pelo vírus Epstein-Barr (VEB) ou outra infecção viral ou bacteriana, como citomegalovírus (CMV), Mycoplasma pneumoniae, influenza A, entre outros4,8-10. No entanto, na maioria dos casos, não é identificado nenhum agente e a causa não é determinada5,6.

A patogênese exata da ulceração genital aguda não é clara. Uma hipótese sugere que a úlcera é a manifestação clínica de uma reação de hipersensibilidade a uma infecção viral ou bacteriana, com depósito de imunocomplexos nos vasos dérmicos, ativação do complemento, microtrombose e subsequente necrose tecidual9,11.

O diagnóstico é clínico e de exclusão, baseado na história detalhada e completa somado ao exame físico. Atenção particular deve ser dada para doenças sistêmicas e sintomas oculares, neurológicos, gastrointestinais e genitourinários. Especial ênfase na atividade sexual deve ser obtida em privacidade. Os critérios clínicos propostos estão descritos na Tabela 1.




Os exames laboratoriais que devem ser solicitados: cultura viral, PCR e imunofluorescência direta para o vírus da herpes simples (swab da úlcera), pois é a causa mais comum de ulceração genital. Testes microbiológicos e sorológicos de outras IST são realizados em caso de suspeita clínica. Sorologia para VEB também é indicada8-10.

O exame histológico da biópsia normalmente não ajuda no diagnóstico da úlcera genital aguda, apresentando resultados muito inespecíficos, demonstrando necrose do epitélio e infiltrado polimorfonuclear, sendo indicada caso haja suspeita de alguma doença específica12.

O diagnóstico diferencial inclui infecções sexualmente transmissíveis, doenças não infecciosas, doenças mediadas imunologicamente (principalmente doença de Behçet e doença inflamatória intestinal com manifestações extraintestinais). Como algumas dessas doenças só se manifestam tardiamente, se faz necessário o acompanhamento prolongado de jovens com úlcera de Lipschütz para confirmação diagnóstica13,14.

Uma vez que sua cura é espontânea, o tratamento é sintomático incluindo tranquilização da paciente e família, higiene local e cuidados com a ferida, além do controle da dor13. Medicamentos possíveis incluem: anestésicos tópicos e analgésicos orais. Pacientes com dor severa e retenção urinária secundária podem necessitar internação para analgesia parenteral e colocação da sonda vesical. Antibióticos sistêmicos devem ser administrados naqueles pacientes com suspeita de superinfecção bacteriana ou celulite vulvar. Terapia empírica com antibiótico também pode ser utilizada13-15.

A epidemiologia da adolescente, associada à evolução da úlcera vulvar, principalmente pelo aspecto de “padrão de beijo”, bilateral e simétrica nos levou ao diagnóstico clínico da úlcera de Lipschütz. A identificação de sorologia sugestiva de infecção aguda pelo vírus Epstein-Barr corroborou com a hipótese de ser este o agente que deflagrou a reação de hipersensibilidade.


CONCLUSÃO

A úlcera de Lipschütz é um diagnóstico clínico, de exclusão e, por vezes, esquecido no diagnóstico diferencial de ulceração vaginal em adolescentes e jovens adultas que não sejam sexualmente ativas, gerando atraso no diagnóstico, investigações e tratamentos desnecessários, causando sofrimento físico e psicossocial ao paciente e seus familiares.


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1. Santa Casa de Montes Claros, Pediatria - Montes Claros - Minas Gerais - Brasil
2. Santa Casa de Montes Claros, Ginecologia - Montes Claros - Minas Gerais - Brasil
3. Universidade Federal de Minas Gerais, Pediatria - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência:

Francielle Silva Santana
Santa Casa Montes Claros. Praça Hónorato Alves, nº 22, Centro
Montes Claros - MG. Brasil. CEP: 39400-103
E-mail: franciellesantana5@gmail.com

Data de Submissão: 29/07/2020
Data de Aprovação: 12/10/2020