ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2022 - Volume 12 - Número 3

Sensibilidade ao glúten não celíaca em pacientes pediátricos: uma revisão da literatura

Non-celiac gluten sensitivity in pediatric patients: a literature review

RESUMO

OBJETIVO: Este trabalho possui o objetivo de revisar a bibliografia pertinente acerca do tema sensibilidade ao glúten não celíaca em crianças e de resumir os principais dados de patogênese, sintomatologia e métodos diagnósticos atualmente estabelecidos, úteis para o esclarecimento da classe médica pediátrica a respeito dessa patologia.
MÉTODOS: As bases de dados selecionadas foram: PubMed (National Center for Biotechnology Information), LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Eletronic Library Online). Foram elegidas publicações de 2016-2021, nos idiomas inglês, português ou espanhol, que contribuíssem para a presente revisão, através dos termos criança, pediatria, sensibilidade ao glúten não celíaca e sensibilidade ao glúten.
RESULTADOS: A sensibilidade ao glúten não celíaca ocorre em pacientes em que a doença celíaca e a alergia ao trigo foram descartadas. Manifestações intestinais e extraintestinais ocorrem após a ingestão de alimentos que contém glúten e desaparecem após a retirada do mesmo da dieta. A base fisiopatogênica da sensibilidade ao glúten não celíaca está relacionada à resposta imunológica inata do organismo desencadeada por peptídeos do glúten. O teste de desafio duplo cego controlado com placebo é considerado padrão ouro para investigação diagnóstica, apesar de limitações. Novos métodos estão em testes, a fim de afirmar, corretamente, o diagnóstico de sensibilidade ao glúten não celíaca.
CONCLUSÃO: A determinação diagnóstica da sensibilidade ao glúten não celíaca é fundamental para que o paciente pediátrico não seja submetido, desnecessariamente, a dietas isentas de glúten que podem repercutir negativamente no âmbito de sua nutrição e desenvolvimento.

Palavras-chave: Glútens, Intolerância Alimentar, Dieta Livre de Glúten, Pediatria, Criança.

ABSTRACT

OBJECTIVE: This study aims to review the relevant bibliography about non-celiac gluten sensitivity in children and to summarize the main data of pathogenesis, symptomatology and diagnostic methods currently established, useful for clarifying the pediatric physician regarding this pathology.
METHODS: The databases selected were: PubMed (The National Center for Biotechnology Information), LILACS (Latin American and Caribbean Health Sciences Literature) and SciELO (Scientific Electronic Library Online). Publications that contributed to the present review in the 2016-2021 interval, in English, Portuguese or Spanish, were chosen using the terms child, pediatrics, non-celiac gluten sensitivity and gluten sensitivity.
RESULTS: Non-celiac gluten sensitivity occurs in patients in whom celiac disease and wheat allergy have been ruled out. Intestinal and extra-intestinal manifestations occur after eating gluten-containing foods and disappear after they are removed from the diet. The pathophysiological basis of non-celiac gluten sensitivity is related to the bodys innate immune response triggered by gluten peptides. The placebo-controlled double blind challenge test is considered the gold standard for diagnostic investigation, despite limitations. New methods are being tested in order to correctly affirm the diagnosis of non-celiac gluten sensitivity.
CONCLUSION: The diagnostic determination of non-celiac gluten sensitivity is essential in order that the pediatric patient don’t be subjected, unnecessarily, to gluten-free diets that can have a negative impact on their nutrition and development.

Keywords: Glutens, Food Intolerance, Diet, Gluten-Free, Pediatrics, Child.


INTRODUÇÃO

A sensibilidade ao glúten não celíaca (SGNC) foi interrogada pela primeira vez em 1978 com o relato de caso de uma paciente de 43 anos de idade, cujos sintomas gastrointestinais, caracterizados, principalmente, por dor abdominal referida na região periumbilical e distensão abdominal, entraram em remissão após a instituição de uma dieta livre de glúten1. História clínica semelhante foi novamente abordada em 1980, com um grupo de pacientes, em que o quadro clínico era constituído por diarreia crônica e dor abdominal, com leves anormalidades nas biópsias intestinais e ausência de esteatorreia e de deficiências bioquímicas, presentes na doença celíaca. A retirada de alimentos com glúten desses indivíduos promoveu significativa melhora dos sintomas2.

Desde então, a inclusão da sensibilidade ao glúten não celíaca como possibilidade diagnóstica permitiu classificar os pacientes que até então não preenchiam os critérios nem da doença celíaca nem da alergia ao trigo. Apesar de haver sintomas gastrointestinais semelhantes, faz-se necessário a investigação e exclusão dessas duas últimas. Para isso, na doença celíaca é fundamental a correlação com outros sinais clínicos, por exemplo, emagrecimento e anemia ferropriva, associado a testes sorológicos, como anticorpos antiendomísio (EmA-IgA) e antitransglutaminase tecidual (anti-tTG-IgA) positivos e à biópsia duodenal, na qual se observa atrofia das vilosidades intestinais (‘flat’ villous), em indivíduos geneticamente predispostos – HLA DQ2/DQ83-5. A alergia ao trigo, por sua vez, apresenta, além de acometimento gastrointestinal, repercussão respiratória e cutânea, podendo ser caracterizada como uma resposta imunomediada de rápida evolução. Sua investigação envolve a dosagem de IgE específica para trigo, bem como o teste cutâneo (Prick teste)6.

Alguns estudos consideram não somente o glúten como causador da SGNC, mas também proteínas encontradas no trigo, denominadas de inibidores de α-amilase e de tripsinas (ATI)7. Devido a isso, alguns autores sugerem alteração da designação para sensibilidade ao trigo não celíaca7. FODMAPs (oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis) também já foram identificados como possíveis gatilhos para a SGNC. No entanto, estudos comprovaram que a adoção de uma dieta livre de glúten também reduz a ingestão de FODMAPs (alimentos contendo glúten são ricos em FODMAPs), por isso, a significativa melhora clínica era falsamente relacionada à retirada do glúten, ou seja, o indivíduo não possuía SGNC, mas sim síndrome do intestino irritável7. Para essa revisão, optou-se por utilizar o termo sensibilidade ao glúten não celíaca, por se tratar da nomenclatura mais comumente utilizada nos trabalhos de consenso e recomendações científicas.

Adicionado a essas considerações, não existem marcadores sorológicos e histopatológicos específicos para o diagnóstico da SGNC. As biópsias duodenais em pacientes com SGNC mostram-se incompatíveis com a doença celíaca, sendo classificadas nos tipos Marsh 0-18. A ausência de marcadores corrobora para a existência de dificuldades em estabelecer um diagnóstico assertivo, visto que o teste de desafio duplo cego controlado com placebo, padrão ouro para investigação diagnóstica, ainda apresenta limitações9. Desse modo, percebe-se a importância do conhecimento clínico acerca da patologia, pois a remoção do glúten da dieta das crianças sem comprovação médica pode trazer consequências como o aumento do risco de dislipidemias e até mesmo a permanência dos sintomas preexistentes, caso essa não seja a verdadeira causa10.


MÉTODOS

Foi realizada uma revisão da literatura a respeito da SGNC em crianças. As bases de dados selecionadas foram: PubMed (National Center for Biotechnology Information), LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Eletronic Library Online). Para a busca dos artigos, foram utilizados os seguintes descritores controlados: criança e pediatria e as palavras-chave: sensibilidade ao glúten não celíaca e sensibilidade ao glúten nas suas combinações em português, inglês e espanhol, conjuntamente, com os operadores booleanos AND e OR.

Além disso, delimitou-se artigos que contemplavam a SGNC publicados nos últimos 5 anos (2016-2021), nos idiomas inglês, português e espanhol.

As combinações realizadas evidenciaram mais de 150 resultados. Inicialmente, artigos que abordavam somente a doença celíaca ou que enfatizavam temas secundários à SGNC, como outras desordens associadas a mesma, e aqueles com enfoque nas dietas isentas de glúten foram excluídos. Artigos duplicados também foram descartados. Essa primeira filtragem totalizou 31 artigos.

Dentre esses artigos, nova triagem foi realizada. Devido à escassa literatura abordando sobre o perfil da SGNC em pacientes pediátricos, foram também selecionados artigos que abrangiam a população adulta com SGNC, a fim de elucidar as bases fisiopatológicas da doença, bem como apontar as divergências encontradas entre as faixas etárias. Nesse sentido, deu-se preferência aos artigos de revisão, assim como aos artigos com pontos ainda inéditos, principalmente, no âmbito de diagnóstico e diagnósticos diferenciais. Assim, por meio de uma leitura crítica, optou-se por selecionar 18 artigos para esta presente revisão.

Ressalta-se como exceção aos critérios de inclusão: adição do artigo que descreve o atual método padrão ouro na investigação diagnóstica da doença, publicado em 20153. Decidiu-se também por acrescentar, a título de relevância e histórico da SGNC, os dois primeiros artigos publicados sobre a SGNC, em meados de 1980, uma vez que impulsionaram o avanço no estudo dessa temática1,2. Concluindo, 21 artigos foram utilizados e citados.

Os autores dos artigos citados foram corretamente referenciados, visando respeitar as recomendações éticas e os direitos autorais dos mesmos.


DISCUSSÃO

Definição


A sensibilidade ao glúten não celíaca pode ser definida como uma combinação de sintomas intestinais e extraintestinais, que ocorrem de horas a dias após a ingestão de alimentos que contém glúten e que desaparecem após a retirada desse da dieta de indivíduos nos quais a doença celíaca e alergia ao trigo foram descartadas11.

Epidemiologia

Entre a população mundial, cerca de 4-13% dos indivíduos referem sintomas após a ingesta de glúten ou trigo12. A Sociedade Alemã de Alergia e Imunologia enfatiza que muitas publicações relacionadas a SGNC são desprovidas de critérios diagnósticos validados e biomarcadores apropriados, sendo baseadas em diagnósticos autoafirmados e etiologias não confirmadas de sintomas relatados e, por isso, os estudos de prevalência de SGNC não estão claramente estabelecidos10.

Alguns dados trazem que a SGNC afeta cerca de 6% da população adulta, podendo variar de acordo com a região avaliada, acometendo, principalmente, mulheres6,13. Diferentemente dos adultos, a SGNC na pediatria tem sido mais frequentemente diagnosticada em homens do que em mulheres12. Na Nova Zelândia, cerca de 5% das crianças e adolescentes consomem alimentos isentos de glúten14.

Segundo um estudo duplo cego controlado com placebo realizado em uma população de 1.114 crianças referenciadas devido a sintomas gastrointestinais de ordem funcional, foi calculada uma prevalência de SGNC com variação de 0.36% a 0.98%, porém, os mesmos autores esclarecem que essa estimativa pode ser subestimada, pois existem pacientes que são incapazes de estabelecer uma correlação positiva entre o consumo de glúten e a sintomatologia14. Outro estudo realizado em um centro de atenção terciário especializado em desordens relacionadas ao glúten, avaliou 500 pacientes pediátricos, com idades variando entre 7 meses e 18 anos, evidenciou que 26 deles, entre 2 anos e 18 anos, foram diagnosticados com SGNC, com base nos critérios do consenso de Londres, ou seja, 5,2% do grupo13. Porém, por ser um centro especializado nas patologias acerca do glúten, essa prevalência é maior do que a esperada na rotina clínica do pediatra e centros de gastroenterologia infantil13.

Em um grupo de 555 estudantes do ensino médio no sul da Sicília, Itália, com média de 17 anos de idade, a prevalência de indivíduos autodiagnosticados com sensibilidade ao trigo não celíacos era de 12,2%15. Os adolescentes que, de acordo com um questionário aplicado, reportaram sintomas após a ingestão de trigo por pelo menos uma vez na semana e que apresentavam melhora clínica com a instituição de uma deita isenta de trigo foram considerados como sensíveis ao trigo não celíacos15. Por tratar-se de dados reportados, exclusivamente, pelos pacientes, há limitação reconhecida pelo estudo e, portanto, essa prevalência deve ser analisada com cautela15.

Vale ressaltar que a sobreposição de sintomas entre síndrome do intestino irritável e sensibilidade ao glúten não celíaca, além do incompleto entendimento fisiopatológico de ambas as doenças, também podem gerar conflitos no estabelecimento de dados epidemiológicos4,16.

Patogenia

A fisiopatogenia da sensibilidade ao glúten não celíaca centra-se prioritariamente em uma resposta imunológica inata do organismo, sendo caracterizada pela participação dos receptores toll-like (TLR-1, TLR-2) e também pela alteração de outros componentes dessa imunidade, como interleucina-10 derivada de células mononucleares do sangue periférico total (PBMC ), fator estimulador de colônia de granulócitos (GCSF), fator de transformação de crescimento alfa (TGF-α) e a quimiocina CXCL-108,17

O desencadeador mais discutido acerca dessa patologia é o glúten. A fração proteica do glúten solúvel em álcool é chamada de prolamina, sendo no trigo denominada gliadina e a fração insolúvel nomeada glutenina. Peptídeos advindos da gliadina parecem induzir a resposta imune inata na doença celíaca e acredita-se que também podem estar envolvidos na patogênese da SGNC, o que pode ser relacionado à presença de anticorpos antigliadina em 50% dos pacientes com SGNC4,16.

Alguns estudos incluem também os inibidores de α-amilase e de tripsinas (ATI), proteínas do trigo, como possíveis gatilhos para SGNC, atuando na via de estimulação do receptor toll-like 4 (TLR-4)6

Assim como os inibidores de α-amilase e de tripsinas, os FODMAPs também são interrogados acerca da possível participação na gênese da SGNC. Porém, crianças sensíveis ao glúten não celíacas submetidas a dietas isentas de glúten, mas contendo FODMAPs responderam com a remissão completa dos sintomas, aspecto que, inclusive, foi destacado pelo estudo, com intuito de alertar que a interrupção simultânea da ingestão de glúten e FODMAPs nesses pacientes deve ser contraindicada18. Em contrapartida, outros dados sugerem que uma dieta pobre em FODMAP é benéfica para o paciente com sensibilidade ao glúten não celíaca4. Futuros estudos clínicos devem ser realizados para elucidar e determinar, precisamente, quais alimentos e nutrientes desempenham papel fundamental nessa sensibilidade ao glúten não celíaca6.

Peptídeos não digeridos, gerados pela insuficiente degradação do glúten e, possivelmente, de outras proteínas do trigo através das proteases intestinais, conseguem atravessar a barreira epitelial do intestino, cuja permeabilidade encontra-se aumentada3,4. Em seguida, alcançam a submucosa e ativam as células dendríticas e macrófagos residentes16. Essa ativação ocorre pelo efeito da gliadina via TLR-4, por meio da resposta primária de diferenciação do fator mieloide 88 (MYD88), a qual aumenta a expressão de citocinas pró-inflamatórias, responsáveis pelos efeitos sistêmicos8. Também em consequência dessa cascata de eventos, é possível explicar a leve inflamação crônica do duodeno, caracterizada pela enterite do tipo Marsh 1, identificada em alguns dos resultados de biópsias intestinais desses pacientes18. Vale destacar que, em sua maioria, as biópsias intestinais desses pacientes não apresentam alterações, sendo classificadas como Marsh 018.

Evidências mostram que nos pacientes sensíveis ao glúten não celíacos há uma diminuição da resistência elétrica epitelial, o que justifica aumento da permeabilidade, associado à redução na secreção de IL-10 nas biópsias de duodeno expostos à gliadina18. O aumento da produção de IL-15, bem como acréscimo da apoptose dos enterócitos e anormalidades na contratilidade da musculatura lisa observados em ratos durante estudos parecem ser consequências da exposição aos produtos digeridos do glúten14.

Outros estudos apontam ainda que os pacientes com SGNC têm uma microbiota diferente da população em geral, com menor proporção de Lactobacillus e Bifidobacterium e elevada presença de Bacteroides e Escherichia coli12. Esses pacientes, especialmente aqueles que não respondem à dieta isenta de glúten, podem apresentar um supercrescimento bacteriano no intestino delgado em cerca de 9 a 55% dos casos12functional gastrointestinal disorders (FGIDs. Especula-se que tal disbiose pode ocasionar uma disfunção imunológica do intestino17.

Manifestações clínicas

O quadro clínico presente na SGNC pode ser variado, podendo haver sintomas gastrointestinais isolados ou combinados a manifestações extraintestinais11. A latência entre a ingestão de glúten e o início das manifestações pode ocorrer de horas a dias, fato que auxilia na distinção de outras desordens relacionadas ao glúten, posto que na alergia ao trigo essa latência é de minutos a horas e na doença celíaca corresponde de semanas a meses11.

Os principais sintomas referidos pelos pacientes na SGNC são dor e distensão abdominal, bem como diarreia, dor epigástrica, náuseas e constipação3. Tais alterações gastrointestinais não acompanham perda de peso12. As manifestações extraintestinais, por sua vez, incluem sintomas associados, como cefaleias, além de manifestações musculoesqueléticas e da pele, fadiga crônica e dificuldade de concentração6. Em um estudo multicêntrico em crianças, fadiga foi relatada como sintoma proeminente (85%), seguido de dor abdominal (78%), cefaleia (71%) e dores musculares/articulares (57%)14. Em um outro estudo de coorte, 15 pacientes pediátricos com SGNC foram avaliados e os sintomas gastrointestinais mais comuns incluíram dor abdominal (80%), diarreia crônica (73%), distensão abdominal (26%) e constipação (20%)12.

Outros dados recentes reportam que existem histórias pessoais e familiares de atopias nos pacientes com SGNC13.

Assim como os vários estudos relacionados à doença celíaca, alguns autores também consideram a existência de possíveis manifestações neurológicas e psiquiátricas na SGCN, como ataxia, neuropatia periférica, depressão, ansiedade e, até mesmo, autismo, o que, possivelmente, estaria relacionado à ingestão de glúten. No entanto, tal associação ainda está longe de ser totalmente esclarecida, visto também que não é conhecido o possível tempo de latência entre a ingestão do glúten e o surgimento destes primeiros sinais3.

Cabe ressaltar que os FODMAPs, possíveis desencadeadores da SGNC, não promovem o surgimento de manifestações extraintestinais, comuns na SGNC, por isso a dúvida a respeito de seu verdadeiro envolvimento nessa patogênese16.

Diagnóstico

Como já pontuado, os critérios diagnósticos para a sensibilidade ao glúten não celíaca são mais difíceis de serem estabelecidos, visto que não existe um marcador específico7. Apesar dos anticorpos IgG antigliadina (AGA) estarem presentes em cerca de 50% dos pacientes com SGNC e normalizarem em quase a totalidade dos pacientes cerca de 6 meses após a introdução da dieta isenta de glúten, ainda não há certeza se o monitoramento desses valores acrescenta no valor diagnóstico3. É válido mencionar que o AGA está presente em outras condições, como doenças autoimunes, doenças do tecido conectivo e até mesmo em pacientes saudáveis12. Outro achado inespecífico é a positividade dos haplótipos HLA DQ2-DQ8 em torno de 50% dos pacientes com SGNC, presente na quase totalidade dos pacientes celíacos4. Dados recentes revelam, ainda, alta prevalência de marcadores autoimunes, como anticorpos antinucleares (ANA) e desordens autoimunes, como tireoidite de Hashimoto, entre os pacientes sensíveis ao glúten não celíacos17.

Geralmente, as biópsias duodenais dos pacientes com SGNC, mesmo em uma dieta não isenta de glúten, estão normais, porém em torno de 40% delas pode estar presente uma elevação dos linfócitos intraepiteliais12. Em uma avaliação das biópsias intestinais de 11 pacientes sensíveis ao glúten não celíacos, 10 tiveram suas biópsias classificadas em Marsh 0, sem alterações da mucosa, e apenas um classificado em Marsh 1, caracterizada pela mucosa intestinal com infiltração linfocitária18.

Durante a investigação das manifestações clínicas, além de excluir as possibilidades de doença celíaca e alergia ao trigo e identificar os principais diagnósticos diferenciais da SGNC para melhor certeza diagnóstica, deve-se realizar um processo controlado de retirada e reintrodução do glúten, juntamente com avaliação simultânea do paciente19,20.

O teste desafio do glúten, realizado através de estudo duplo cego controlado com placebo, considerado como padrão ouro para a certeza diagnóstica da SGNC, ficou conhecido através dos critérios dos especialistas de Salerno3. Por meio deste teste, pode ser analisada a resposta individual do organismo frente a retirada do glúten, assim como durante a reintrodução do glúten após um período de restrição. A descrição dos sintomas manifestados pelo paciente é realizada por meio do questionário da escala de avaliação de sintomas gastrointestinais (GSRS) e os mesmos são quantificados pela escala numérica de dor, em que 1 é uma dor leve e 10 intensa3.

Para essa sistematização, inicialmente, devem ser definidos quais pacientes podem ser responsivos ao glúten, ou seja, aqueles que referem surgimento dos sintomas após ingestão de glúten, na ausência de doença celíaca e alergia ao trigo3. Os pacientes selecionados, que serão submetidos ao teste de desafio do glúten, devem estar há, pelo menos, 6 semanas em uma dieta que contém glúten, a fim de reportar qual a atual situação clínica3. Em seguida, tais pacientes são submetidos à dieta livre de glúten por 6 semanas e, mesmo que haja relato de melhora já nas primeiras semanas, deve-se permanecer com a restrição3. Os métodos de avaliação devem ser preenchidos pelos pacientes e aqueles que apresentarem resposta clínica – caracterizada pelo alívio de pelo menos 30% dos sintomas iniciais principais ou de pelo menos um sintoma sem a exacerbação dos outros – devem seguir no desafio, no entanto, os indivíduos, cujos sintomas não tiveram melhora, devem ser remanejados para outra suspeita diagnóstica3.

Para concluir a hipótese de SGNC, a reintrodução do glúten deve ser realizada, podendo ser na forma simples-cego ou duplo-cego, frequentemente, com a duração de 3 semanas. Na primeira e terceira semana, os pacientes recebem glúten (cerca de 8g de glúten e, pelo menos, 0,3g de ATI) ou placebo (isento de glúten), não necessariamente nessa ordem. A segunda semana funciona como intervalo de comparação entre o que foi e o que será administrado. Desta forma, a avaliação dos sintomas, ainda por meio do questionário GSRS e escala numérica da dor, confirma a SGNC, caso tenha ocorrido uma variação de pelo menos 30% dos sintomas entre o experimento com glúten e placebo3.

O primeiro estudo cruzado randomizado duplo-cego controlado por placebo para o diagnóstico de sensibilidade ao glúten não celíaca realizado em crianças mostrou a importância da utilização do teste de desafio do glúten para avaliação do paciente pediátrico com sintomas gastrointestinais correlacionados à ingestão de glúten14. Tal método comprovou a existência da SGNC em crianças, apesar de menos comum que nos adultos, como também descartou esse diagnóstico em cerca de 60% das crianças que restringiam glúten sem indicação médica14. Desse modo, percebe-se que o teste de desafio do glúten é uma ferramenta de grande valia a ser utilizada em crianças, nas quais o diagnóstico permanece incerto.

Em uma metanálise de 11 estudos sobre a reintrodução do glúten após um período isento dele, os principais achados foram que, após a reintrodução do glúten, 36% dos indivíduos tiveram recorrência dos sintomas, comparado a 31% daqueles que ingeriram o placebo19. Tais informações, apesar de possuírem limitações, como diferenças na quantidade de glúten utilizada e duração dos estudos avaliados, destacam o fator emocional e o efeito “Nocebo”19.

Apesar de o teste de desafio do glúten ser reconhecido como a melhor opção para investigação diagnóstica, alguns autores o pontuam como um longo e complexo processo, difícil de ser aplicado na prática clínica, uma vez que depende do total comprometimento do paciente para que não ocorra transgressão aos resultados8,16,21. Além disso, muitos pacientes se recusam a reintroduzir o glúten na dieta, associando-o ao imediato reaparecimento dos sintomas16. Desse modo, o ALCAT 5 surge como uma futura alternativa para o diagnóstico da SGNC, por ser uma forma de fácil execução com obtenção rápida dos resultados9. Trata-se de um teste in vitro que avalia o efeito tóxico do glúten nos neutrófilos do paciente a partir da exposição desses ao glúten. A positividade do teste ocorre na presença de mudanças no volume e forma dos neutrófilos em comparação com o formato original, anterior à exposição ao glúten9.

Os resultados originados pelo ALCAT e pelo teste de desafio do glúten, segundo os critérios de Salerno tiveram concordância de 64%9. Embora a comparação não tenha incluído um grupo controle de pacientes saudáveis para realizar ambos os testes, o ALCAT 5 pode ser utilizado, futuramente, como uma ferramenta de apoio para a quando existe a suspeita de SGNC, indicando os pacientes com maior probabilidade para realizarem o teste de desafio do glúten9.

Outros marcadores, advindos da ativação imunológica e de danos de células intestinais, como proteína de ligação de lipopolissacarídeo, anticorpos antigliadina, proteína 2 de ligação de ácidos graxos, quando combinados, demostram resultados promissores, uma vez que permitem a diferenciação entre SGNC, doença celíaca e grupo controle17.

Tratamento

As recomendações trazem a dieta isenta de glúten como o principal manejo terapêutico, capaz de resolver os sintomas intestinais e extraintestinais, podendo ser tão rigorosa quanto à indicada para pacientes celíacos ou não, posto que alguns pacientes com SGNC conseguem tolerar alimentos contaminados pelo glúten sem qualquer manifestação clínica8,11.

Outros autores, por considerarem outros possíveis gatilhos para a SGNC, como os inibidores de α-amilase e de tripsinas (ATI) e FODMAPs, recomendam a restrição, por exemplo, de alimentos ricos em sorbitol e frutose4,6. Porém, evidências apontam que dietas restritas tanto de alimentos contendo trigo quanto de alimentos ricos em FODMAPs podem, a longo prazo, acarretarem consequências prejudicais no âmbito nutricional e impactarem diretamente na microbiota intestinal, com redução significativa de bifidobactérias16.

Discute-se ainda por quanto tempo deve ser instituída a dieta sem glúten, mas os dados expõem que após alguns meses de adesão, o glúten pode ser reintroduzido em pequenas quantidades com a monitorização da resposta individual6. Ainda é incerto se a SGNC é uma condição permanente ou temporária11.

É importante destacar que a ausência de glúten na alimentação pode contribuir para deficiência de zinco, magnésio, ferro, cálcio e folato, além de aumentar o risco de doença cardiovascular, por isso, a necessidade de acompanhamento e monitoramento dos pacientes com SGNC, principalmente daqueles em estágio pré-puberal4,6,13.


CONCLUSÃO

A SGNC vem adquirindo importância crescente em âmbito mundial. Uma avaliação que combine os achados de história clínica, exames laboratoriais e até mesmo, eventualmente, dados histopatológicos é necessária para o diagnóstico correto dessa entidade.

Embora sejam necessários mais estudos para consolidar o conhecimento a respeito da real fisiopatologia, melhores métodos diagnósticos e adequado prognóstico, é importante que os pediatras se mantenham atualizados e estejam atentos às recomendações e aos critérios diagnósticos tanto os vigentes quanto aos que ainda estão por vir. O conhecimento das semelhanças e diferenças entre as diversas patologias relacionadas ao glúten auxilia na decisão de condutas efetivas e seguras, em especial a orientação para que não sejam prescritas dietas com restrição de glúten desnecessariamente, pois, além de onerosas e de difícil acessibilidade, podem causar prejuízos à saúde da população pediátrica, tanto no âmbito nutricional, quanto psicológico ao considerar uma criança saudável como doente.


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Endereço para correspondência:

Vânia Gameiro de-Carvalho
Centro Universitário Municipal de Franca
Av. Alonso Y Alonso, nº 2400, São José
Franca, SP, Brasil. CEP: 14401-426
E-mail: vania_gameiro@hotmail.com

Data de Submissão: 22/02/2021
Data de Aprovação: 22/03/2021