ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 4

Aspiração de corpo estranho: sempre um diagnóstico diferencial em lactentes

Foreign body aspiration: always an element in the differential diagnosis of infants

RESUMO

OBJETIVO: Descrever a evolução atípica e grave da aspiração de corpo estranho em um paciente pediátrico.
INTRODUÇÃO: A aspiração de corpo estranho constitui uma importante causa de morbimortalidade na faixa etária pediátrica. Sua sintomatologia é variada, podendo evoluir de modo assintomático a insuficiência respiratória aguda. Devido à difícil identificação, na sua suspeita, deve ser altamente investigada.
CASO CLÍNICO: Lactente, 1 ano, sexo masculino, há 48 horas apresentando quadro de dispneia, evoluindo com febre não mensurada. Procurou atendimento médico e, durante a anamnese, levantada a hipótese de aspiração de corpo estranho. Realizada radiografia de tórax, sem achados. Paciente encaminhado ao hospital de referência para melhor investigação. Durante transporte, evoluiu com insuficiência respiratória. Ao chegar, realizadas medidas iniciais de estabilização e repetida radiografia, que evidenciou velamento do hemitórax esquerdo com desvio mediastinal, caracterizando atelectasia no pulmão esquerdo e hiperinsuflação no pulmão direito. Intubado e realizada broncoscopia de urgência que evidenciou corpo estranho (milho) em broncofonte esquerdo. Após a retirada, realizada nova radiografia com resolução completa do quadro. O paciente permaneceu internado para tratamento da pneumonia ocasionada por complicações da presença do corpo estranho.
CONCLUSÃO: Pretendemos com esse relato enfatizar as possíveis complicações após a aspiração e reforçar sua investigação quando suspeita diagnóstica, mesmo quando achados radiológicos não compatíveis, como inicialmente o do caso. Além disso, como medida de saúde pública, buscamos reforçar medidas de prevenção a fim de promover uma redução da casuística citada neste relato.

Palavras-chave: Criança, Aspiração Respiratória, Reação a Corpo Estranho, Insuficiência Respiratória.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To describe the atypical development of a severe case of foreign body aspiration involving a pediatric patient.
INTRODUCTION: Foreign body aspiration is an important cause of morbidity and mortality in the pediatric age group. Cases range from asymptomatic to patients developing acute respiratory failure. Although difficult to identify, cases suspected with foreign body aspiration must be investigated thoroughly.
CASE REPORT: A one-year-old male infant was brought to our service after presenting with dyspnea for 48 hours and unmeasured fever. During the interview, the possibility of foreign body aspiration was considered. A chest X-ray was performed, with no findings. The patient was sent to a referral hospital for further investigation. During transport, the patient developed respiratory failure. Upon arrival, initial stabilization measures were taken, and the patient underwent a second chest X-ray, which showed opacification of the left hemithorax with mediastinal deviation, along with atelectasis of the left lung and hyperinflation of the right lung. The patient was intubated and emergency bronchoscopy was performed, which revealed a foreign body (corn) in the left bronchus. After removal, a new radiograph was taken and the condition resolved completely. The patient remained hospitalized for treatment of pneumonia caused by complications from the presence of the foreign body.
CONCLUSION: This report aims to emphasize the possible complications ensuing from foreign body aspiration and the need to consider it even when radiological findings are not compatible, as was initially the case. Moreover, as a public health measure, we seek to reinforce prevention measures in order to decrease the number of cases such as the one described in this report.

Keywords: Child, Aspiration, Foreign Body Reaction, Respiratory Failure.


INTRODUÇÃO

Os acidentes na infância representam um grave problema para o sistema de saúde em todo o mundo. Dados da Organização Mundial de Saúde demonstram que são responsáveis por aproximadamente 830.000 mortes por ano. No Brasil, dentre os acidentes que resultam em agravos à saúde da criança, destaca-se a aspiração de corpo estranho (ACE) em via aérea, que está associada a elevadas taxas de morbidade. Desse modo, a ACE requer um reconhecimento imediato, assim como um tratamento precoce1,2.

A oferta de alguns tipos de alimentos a crianças pequenas, como amendoim, feijão, pipoca e milho, apresenta risco para a aspiração, pois as crianças vão degluti-los sem mastigar, e qualquer distração, risada, brincadeira ou susto pode precipitar o acidente3,4.

A composição orgânica do corpo estranho é mais prevalente, sendo milho, feijão e amendoim os grãos mais comumente aspirados na faixa etária pediátrica. É importante lembrar, porém, que qualquer material pode se tornar um corpo estranho (CE) no sistema respiratório3,4.

A ACE ocorre predominantemente no sexo masculino, entre 1 e 3 anos de idade, com mais de 50% das aspirações ocorrendo em crianças menores de 4 anos1-5. Até os 3 anos, a criança não controla a mastigação e a deglutição de alimentos, pois não possui os dentes molares, estrutura importante na trituração de alimentos sólidos. Além disso, outros mecanismos aumentam o risco de ACE como a falha no reflexo de fechamento da laringe e a tendência nesta idade de levar objetos à boca1,4,6,7.

Devido ao seu amplo espectro de manifestações, o diagnóstico da ACE representa muitas vezes um desafio, principalmente em crianças pequenas e na ausência de testemunhas, por isso, um grande número de pacientes são tratados por semanas e meses devido a doenças respiratórias recorrentes, antes da suspeita da ACE2,5,6.


RELATO DE CASO

Y.O.P., 1 ano, masculino, natural de Caucaia-CE. Mãe relatou que paciente fez a ingesta de milho de pipoca cru no dia 06/02/2019 e, desde o ocorrido, apresentava quadros recorrentes de dispneia. Dois dias após, paciente evoluiu com quadro de febre não mensurada e persistência da dispneia. Procurou atendimento médico na cidade de origem. Lá, realizada radiografia de tórax, porém sem alterações.

Devido à história clínica, aventada a hipótese de aspiração de corpo estranho e transferido ao hospital de referência para realizar broncoscopia dia 08/02/2020. Na admissão, paciente evoluiu subitamente com piora clínica ao apresentar queda da saturação de oxigênio para 70%, gemência e batimento de asa nasal. Iniciadas medicações broncodilatadoras, corticoterapia venosa, antibioticoterapia com clindamicina e oxigenoterapia. Não apresentou melhora significativa do quadro.

Realizada nova radiografia de tórax, que evidenciou velamento do hemitórax esquerdo com desvio mediastinal, caracterizando atelectasia no pulmão esquerdo e pulmão direito hiperinsuflado. A sintomatologia do paciente e as imagens radiológicas confirmaram a hipótese clínica de ACE e devido à gravidade do quadro, transferido à Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ainda no dia 08/02/2019.

Na UTI, paciente foi intubado e submetido à broncoscopia de urgência, que visualizou corpo estranho em brônquio fonte esquerdo. Realizada a retirada do corpo estranho com sucesso e confirmada a aspiração do milho. Após o procedimento, paciente evoluiu com melhora clínica, realizou nova radiografia, que evidenciou boa expansibilidade torácica e resolução da atelectasia, sendo extubado no dia seguinte.

Permaneceu internado aguardando termino de antibioticoterapia, realizou D7 de clindamicina e D4 de cefalotina. Recebeu alta no dia 15/02/2019, clinicamente estável, sem desconforto respiratório.


DISCUSSÃO

Classicamente, a ACE evolui em três fases. A primeira é a impactação do corpo estranho, resultando em tosse aguda, asfixia, estridor, dificuldade respiratória e potencial cianose. O sintoma inicial do paciente do caso foi a dispneia, como relatado em outros artigos. Os pacientes geralmente progridem para uma fase assintomática, secundária à instalação do CE em um local estacionário na árvore traqueobrônquica e uma redução nos reflexos do trato respiratório ao longo do tempo. A terceira envolve complicações secundárias ao CE crônico, que podem apresentar-se com pneumonia recorrente, tosse crônica, sibilância unilateral ou sintomas que imitem a asma7-9.

Do mesmo modo, o paciente citado no relato evoluiu com sintomas iniciais, não apresentando período assintomático, seguindo diretamente para as complicações clínicas, com provável pneumonia associada à aspiração. O que nos chama atenção no caso é a rápida evolução para insuficiência respiratória e no correto encaminhamento do paciente a um serviço terciário com broncoscópio, o que possibilitou melhor tratamento. Atrasos adicionais no diagnóstico podem resultar em bronquiectasias e danos permanentes no tecido pulmonar10.

O exame físico inclui um exame da cavidade auditiva, oral e do exame pulmonar. Os achados clínicos mais comuns incluem tosse e achados unilaterais no tórax, como chiado no peito, sons respiratórios reduzidos e fase expiratória prolongada da respiração. A alteração dos sinais vitais é rara, mas pode incluir taquipneia e hipoxemia5.

O caso relatado corrobora com o exame físico pulmonar, no qual o paciente possuía diminuição importante à ausculta à esquerda e, apesar de achado incomum, mostrava-se hipoxêmico e com sinais de desconforto respiratório importante por ser um quadro mais grave de aspiração CE. Um exame físico normal em um histórico clínico convincente não deve atrasar o encaminhamento a um serviço de terciário para avaliação especializada, pois é comum que um paciente com ACE tenha achados normais no exame físico5,6.

Além do exame físico, devem ser solicitados exames de imagem para elucidação do caso, porém a taxa de positividade dos mesmos é baixa. Vários estudos mostraram que até 25% das crianças com corpos estranhos comprovados por broncoscopia podem apresentar radiografia de tórax normal. No entanto, a imagem pode ser uma ferramenta útil no diagnóstico de ACE e complicações subsequentes. Hiperinflação unilateral, aprisionamento de ar, atelectasia ou infiltração são classicamente associados a ACE1,7,11.

O paciente citado inicialmente não apresentava alterações radiográficas, porém devido à forte suspensão clínica, foi encaminhado para o serviço terciário e lá, em menos de 12 horas, evoluiu com alteração importante em radiografia, mostrando a significância do diagnóstico precoce e da rápida evolução em alguns casos.

Determinar o ponto da obstrução é importante para definição da abordagem terapêutica e das possíveis complicações. Laringe e traqueia têm a menor prevalência, exceto em crianças menores de 1 ano. Eles estão ligados aos resultados mais perigosos, obstrução completa ou ruptura. Brônquio é o local mais comum, sendo encontrado em 80-90% dos casos de ACE. Anatomicamente, nesta faixa etária, o brônquio principal direito é mais verticalizado e tem maior diâmetro, o que favorece o alojamento do corpo estranho nesta topografia4-6,9. Apesar da anatomia favorável, o paciente do caso evoluiu com broncoaspiração em brônquio fonte esquerdo, porém seguiu o padrão de ser mais encontrado em brônquio.

O diagnóstico desta afecção apresenta algumas dificuldades, pois cada tosse e/ou respiração ajuda a migrar o CE para a periferia do pulmão. À medida que se aprofunda, os sintomas iniciais desaparecem, podendo a radiografia do tórax e a broncoscopia apresentarem resultados negativos. No entanto, após alguns dias, podem surgir a pneumonia por aspiração, fístula broncocutânea, bronquiectasia e outras complicações graves e até fatais5,11.

Em 2001 o Ministério da Saúde implementou a Política Nacional de Redução de Acidentes e Violências, tendo um dos principais objetivos reduzir a morbimortalidade por meio de ações articuladas e sistematizadas relacionadas à promoção e à prevenção desses eventos2.

A prevenção é um elemento chave para a diminuição da morbimortalidade associada a estes casos. É necessário reunir mais esforços para garantir uma prevenção adequada por partes dos cuidadores, o que requer programas educacionais dirigidos aos pais, tanto na prevenção de hábitos que predispõem aos acidentes nesta faixa etária como no ensino de técnicas básicas de desobstrução de via aérea alta1,2,4,12.

A Sociedade Brasileira de Pediatria publicou em 2014 uma cartilha contendo algumas orientações aos pais e familiares sobre prevenção ao engasgo e aspiração em crianças:

Alimentares - incluem não deixar pedaços de alimentos no prato, cuidado com os alimentos de risco e insistir para que as crianças comam à mesa, sentadas. Evitar alimentá-las enquanto correm, andam, brincam, estão rindo e não as deixar deitar com alimento na boca.

Ambientais - incluem manter longe do alcance de crianças menores de 4 anos alguns itens de casa (balões, moedas, bolinha de gude, brinquedos com peças pequenas, botões, baterias esféricas de aparelhos eletrônicos, canetas com tampa removível), evitar comprar brinquedos com partes pequenas e manter objetos pequenos fora do alcance4.


CONCLUSÃO

Com este relato, pretende-se enfatizar a importância da história clínica, sendo este um dos principais elementos para identificação de uma ACE. Como visto na literatura, o quadro clínico pode ser variado, tendo sido relatada uma evolução grave de ACE, porém com bom desfecho clínico devido à rápida identificação e tratamento.

Por fim, reforçamos durante o artigo as medidas preventivas a fim de diminuir a incidência de engasgos e broncoaspirações, que ainda apresentam alta prevalência, principalmente na faixa etária pediátrica.


REFERÊNCIAS

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4. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Aspiração de Corpo Estranho. Documentos Científicos. Rio de Janeiro: SBP; 2014. [acesso 2020 Jun 20]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/aspiracao-de-corpo-estranho/

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7. Bitencourt PFS, Camargos PAM. Aspiração de corpos estranhos. J Pediatr (Rio J). 2002;78(1):9-18.

8. Frega AMA, Reis MC, Zambon MP, Toro IC, Ribeiro JD, Baracat ECE. Aspiração de corpo estranho em crianças: aspectos clínicos, radiológicos e tratamento broncoscópico. J Bras Pneumol. 2008;34(2):74-82.

9. Souza STEV, Ribeiro VS, Menezes Filho JM, Santos AM, Barbieri MA, Figueiredo Neto JA. Aspiração de corpo estranho por menores de 15 anos: experiência de um centro de referência do Brasil. J Bras Pneumol. 2009;35(7):653-9.

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11. Wormley M. Foreign-Body Aspiration: A Pediatric Airway Emergency. EMResident [Internet]; 2015 [acesso 2020 Jun 20]. Disponível em: https://www.emra.org/emresident/article/foreign-body-aspiration-a-pediatric-airway-emergency/

12. Harada MJ, Pedreira MG, Viana DL. Injúrias físicas não intencionais na infância e adolescência. In: Promoção da Saúde: fundamentos e práticas. São Paulo: Yendis; 2012. p. 237-61.










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Data de Submissão: 01/09/2020
Data de Aprovação: 06/12/2020