ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 4

Síndrome torácica aguda em paciente escolar com doença falciforme: um relato de caso

Acute chest syndrome in a school-aged patient with sickle cell disease: A case report

RESUMO

OBJETIVO: Relatar o caso de um paciente pediátrico do sexo masculino com síndrome torácica aguda (STA) secundária à anemia falciforme, relacionando-o com a literatura.
DESCRIÇÃO DO CASO: Paciente masculino, 9 anos, iniciou com quadro de forte crise álgica associada a cefaleia e priapismo, sendo admitido no pronto-atendimento de um hospital terciário. Houve melhora do priapismo após hidratação e analgesia com morfina. Evoluiu com STA grave, pneumonia e derrame pleural. Iniciou uso de cefotaxima, clindamicina e claritromicina. Necessitou de ventilação mecânica, sendo encaminhado à unidade de terapia intensiva. No décimo dia apresentou sepse, sendo suspensas a cefotaxima e a clindamicina e iniciado esquema piperacilina + tazobactam + linezolina. Manteve claritromicina. No décimo segundo dia fez profilaxia para tromboembolismo pulmonar (TEP) com enoxaparina devido ao D-dímero aumentado. Foi confirmado um segundo TEP após alguns dias. Passou por três transfusões durante o internamento. Progressivamente, foi melhorando. No 36º dia recebeu alta, mantendo profilaxia para tromboembolismo até retorno e novos exames.
COMENTÁRIOS: Paciente teve a infecção e o TEP como possíveis causas para o desencadeamento da síndrome torácica. Assim como observado na literatura, a crise álgica antecipou a STA. Foram observadas alterações nos exames de imagem e laboratoriais compatíveis com quadros descritos por outros autores. A boa evolução foi reflexo do diagnóstico e do tratamento adequados.

Palavras-chave: Anemia Falciforme, Priapismo, Embolia Pulmonar, Síndrome Torácica Aguda, Criança.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report the case of a male pediatric patient with acute chest syndrome (ACS) secondary to sickle cell anemia and compare it to other cases reported in medical literature.
CASE REPORT: A nine-year-old male child with severe pain associated with headache and priapism was admitted to the emergency department of a tertiary hospital. Priapism improved after hydration and analgesia with morphine. The patient developed severe ACS, pneumonia, and pleural effusion. He was started on cefotaxime, clindamycin, and clarithromycin. The patient required mechanical ventilation and was referred to intensive care. On the tenth day he developed sepsis. Therapy with cefotaxime and clindamycin was discontinued and the patient was prescribed piperacillin/tazobactam and linezolid. He was kept on clarithromycin. On the twelfth day, prophylaxis for pulmonary thromboembolism (PTE) with enoxaparin was introduced due to increased D-dimer. A second PTE was confirmed a few days later. The patient underwent three blood transfusions during hospitalization and improved gradually. He was discharged 36 days after admission and was kept on prophylactic care for thromboembolism until the next follow-up appointment and new tests were ordered.
COMMENTS: Infection and PTE were possibly involved in the development of acute chest syndrome. As observed in the literature, pain episodes occurred prior to ACS. The alterations observed in imaging and laboratory tests were consistent with conditions described by other authors. Good diagnosis and treatment led to patient recovery.

Keywords: Anemia, Sickle Cell, Priapism, Pulmonary Embolism Acute Chest Syndrome Children.


INTRODUÇÃO

A anemia falciforme (AF) está entre as anomalias monogênicas mais comuns no mundo1. No Brasil apresenta cerca de 30.000 casos e é uma das hemoglobinopatias triadas no teste de pezinho1.

Há homozigosidade no gene da β-globina2 e diante da desoxigenação da hemoglobina (Hb) a hemácia assume uma forma “falcizada”3. Periodicamente, o fluxo sanguíneo medular ósseo diminui, originando crise vaso-oclusiva com necrose e infarto da medula e ocasionando complicações na micro e macrocirculação, como acidente vascular cerebral e tromboembolismo4. Êmbolos podem se deslocar e danificar os pulmões, gerando síndrome torácica aguda (STA) em 40% dos casos3-5 com sintomas de febre, dor, tosse, hipóxia, sibilância, taquidispneia e infiltrado alveolar na radiografia de tórax5.

O objetivo deste trabalho é relatar o caso de um paciente pediátrico com STA secundária à AF. Pretende-se avaliar as particularidades diagnósticas, evolução e tratamento e relacionar com a literatura, agregando conhecimento na resolução de casos semelhantes.


DESCRIÇÃO DO CASO

Masculino, 9 anos, natural de Curitiba-PR, história prévia de anemia falciforme diagnosticada pelo teste do pezinho. Deu entrada no pronto-atendimento do hospital terciário com quadro de crise álgica associada à febre de 38,6 ºC, dispneia, cefaleia, tosse e priapismo. Em uso contínuo de hidroxiureia, desferasirox e ácido acetil salicílico (AAS). Imunizações em dia.

Desde os 3 anos em acompanhamento com o serviço de hematologia. Apresentou quatro episódios de crises álgicas desde o diagnóstico. Um ano antes do quadro atual, realizou esplenectomia, evoluindo com pneumonia e sepse no pós-operatório.

Na admissão encontrava-se em regular estado geral, choroso, ativo, reativo, pálido ++/4+, hidratado, dispneico, acianótico, lúcido e orientado em tempo e espaço, 15 pontos na escala de coma de Glasgow. Apresentava dor torácica, dor em coluna lombar, dispneia, tosse, observado priapismo indolor em genitália. Hipótese diagnóstica de crise álgica falcêmica.

No internamento, apresentou melhora da dor e do priapismo após analgesia com morfina intravenosa. Suspensas as medicações de uso contínuo. Admitido na unidade de terapia intensiva (UTI) devido queda dos níveis de hemoglobina de 8,8g/dL para 6,7g/dL e presença de infiltrado difuso na radiografia de tórax (Fig. 1), fortalecendo a suspeita de STA e tromboembolismo pulmonar (TEP). Iniciou-se então terapia com cefotaxima, clindamicina, claritromicina. Evoluiu com sepse, havendo a necessidade de substituição de cefotaxima e clindamicina por piperacilina + tazobactam (pipe-tazo) + linezolina. Realizada transfusão com concentrado de hemácias e intubação orotraqueal.


Figura 1. Radiografia de tórax realizada em 28 de agosto de 2019. Infiltrado pulmonar difuso, redução do volume do pulmão direito, cardiomegalia.



Devido ao D-dímero aumentado no valor de 35.493 iniciou-se profilaxia para TEP com enoxaparina. Houve melhora do padrão respiratório, assim, a ventilação mecânica foi reduzida. Apresentou edema de extremidades 1+/4+, estável hemodinamicamente. A gasometria mostrava alcalose respiratória. Sorologias virais negativas.

Após melhora, foi extubado, inserido cateter nasal, gasometria normal, ainda que com a presença de taquipneia leve. Melhora radiológica, ainda com opacidades bilaterais. Retirada da sonda vesical de demora, iniciou furosemida. No 16° dia de internamento apresentou forte dor torácica em região pré-esternal com enzimas cardíacas normais. Suspeitou-se de novo quadro de TEP, retornando uso do AAS. Após melhora, iniciado desmame de metadona. Recebeu alta da UTI.

A angiotomografia (Fig. 2) apontou linfonodomegalias em mediastino, sugerindo inflamação, causando compressão no brônquio lobar inferior. Houve presença de TEP e atelectasia no pulmão direito.


Figura 2. Tomografia de tórax em 18 de setembro de 2019. Aparecimento de opacidades reticulares com hipotransparência em vidro fosco; bem como opacidades justapleurais. Impressão diagnóstica no laudo: tromboembolismo pulmonar agudo basal posterior e medial no lobo inferior esquerdo.



Após um mês de internamento, realizou-se correção de hemoglobina de 8,9 para 11,5 com 280 ml de concentrado de hemácias. No trigésimo-sexto dia recebeu alta hospitalar, com prescrição de warfarina e enoxaparina domiciliar.


DISCUSSÃO

O paciente encontra-se dentro de um perfil epidemiológico comum para o quadro apresentado - 9 anos, sexo masculino, diagnosticado na triagem neonatal - e apresentou um caso típico de internamento por dor aguda com eventos vaso-oclusivos e infecções concomitantes. Padrão semelhante foi descrito na pesquisa de em um hospital da Bahia, em que, dentre os hospitalizados com doença falciforme, 47,6% receberam diagnóstico através do teste do pezinho, 57,1% eram do sexo masculino e 45% dos casos tinham entre 6 e 12 anos6. No estudo de Loureiro et al.7 73,5% das hospitalizações de anemia falciforme ocorreram devido a episódios dolorosos, 30,4% por infecções bacterianas e 15,2% com dor e infecção. Platt et al.3 também ressaltaram que a dor aguda é motivo mais comum para a admissão hospitalar nestas situações.

A síndrome torácica aguda pode ser precedida por crises vaso-oclusivas em 80% dos casos8, assim como por reduções dos níveis de hemoglobina3 e de plaquetas, fatores de risco para necessidade de ventilação mecânica e complicações neurológicas5. No caso relatado, observou-se redução do índice de hemoglobina antecedendo a STA seguida de necessidade de ventilação mecânica, conforme a literatura.

O diagnóstico da STA normalmente é confirmado com os achados em exames de imagem, principalmente da radiografia de tórax em 90% dos casos9, assim como se procedeu com o paciente em questão. Na literatura, o achado mais frequente foi a consolidação do parênquima pulmonar, sendo o lobo médio pulmonar direito o mais acometido em crianças e o derrame pleural em todas as idades10. Contudo, o escolar teve afetado o lobo inferior esquerdo e o derrame pleural ocorreu à direita.

Houve duas possíveis causas de STA nesse paciente: infecção e tromboembolismo pulmonar. As três principais etiologias descritas por outros autores11 são embolia pulmonar gordurosa da medula óssea necrótica, infarto pulmonar e infecções pulmonares com, respectivamente, 30, 16 e 9% dos casos. Vichinsky et al.12 analisaram episódios da STA com quadros infecciosos em 538 crianças. Dos 27 patógenos diferentes identificados, C. pneumoniae foi o mais frequente, seguido por M. pneumoniae e vírus sincicial respiratório.

Todos os enfermos com STA devem começar antibioticoterapia empírica para infecção pneumocócica, geralmente com cefalosporinas de terceira geração13, como a cefotaxima utilizada no escolar. A vancomicina deve ser adicionada nos casos graves com possibilidade de infecção por S. aureus resistente à meticilina. O tratamento para infecção por bactérias atípicas com macrolídeo ou outros antibióticos também é indicado13, portanto, foram utilizadas claritromicina e clindamicina com escalonamento para pipe-tazo. Utilizou-se linezolina na vigência de sepse. Esta cobertura antibiótica foi eficiente para tratar a infecção.

Na síndrome torácica aguda concentrados de hemácias estão indicados se não houver melhora nas primeiras horas, podendo ser necessária a exsanguineotransfusão parcial, visando a redução da Hb S para níveis iguais ou inferiores a 30%14. Apesar do paciente em questão ter recebido concentrado de hemácias posteriormente, isto ocorreu por ocasião de outras complicações vaso-oclusivas. Foram realizadas três transfusões durante o internamento. Correlaciona-se a transfusão à remoção dos eritrócitos falciformes, gatilhos da lesão pulmonar aguda, possibilitando rápida recuperação em jovens3 e resultando no aumento do hematócrito, conforme observado no paciente, bem como a diminuição de hemácias contendo Hb S14.

Médicos assistentes a pacientes com DF devem estar atentos às características clínicas da STA precocemente, para estabelecer boas estratégias de prevenção e gerenciamento. As famílias devem ser educadas sobre a seriedade da complicação e a necessidade de procurar atendimento médico imediato11.

Atualmente, as opções terapêuticas mais eficazes disponíveis para tratamento curativo da doença falciforme são transplante de medula óssea e a hidroxiureia (HU). Melhorias na imunossupressão e fenotipagem prolongada devem aumentar a segurança desses procedimentos12. A eficácia hematológica da HU inclui aumento significativo de nível de hemoglobina, de volume corpuscular médio (VCM) e de HbF, além da diminuição de reticulócitos, bem como de bilirrubina sérica, associada a uma mielotoxicidade aceitável. A dose de HU varia de 10 a 30 mg/kg/dia, e deve ser administrada de uma só vez15. Com o peso atual, o paciente poderia ingerir até 840 mg por dia, mas deve ser considerado o risco de toxicidade e dificuldade de uso em casa conforme a dose.

O caso relatado apresentou um bom desfecho e sucesso na terapêutica utilizada. No acompanhamento ambulatorial pode ser avaliada a utilização das terapêuticas disponíveis, visando a prevenção de crises vaso-oclusivas, redução do número de internamentos e melhora na qualidade e expectativa de vida. No futuro, a terapêutica com medicamentos anti-inflamatórios, antipolimerização e antiadesivos poderá oferecer novas abordagens potenciais para o tratamento da STA11.


CONCLUSÃO

Mesmo com diversas complicações, o paciente apresentou um desfecho favorável e alta após 36 dias. Recebeu analgesia e antibioticoterapia de amplo espectro, com resultado satisfatório. A boa evolução também foi reflexo do diagnóstico precoce e do acompanhamento realizado.

Conhecer o curso natural da doença, complicações e manifestações clínicas é essencial para desenvolver novas terapias que contribuam para a melhora da qualidade e da expectativa de vida para os pacientes com DF.


REFERÊNCIAS

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15. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Hospitalar e de Urgência Doença. falciforme: Hidroxiureia: uso e acesso. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.










1. Universidade Positivo, Acadêmica do sexto ano de Medicina - Curitiba - PR - Brasil
2. Universidade Positivo, Docente e Preceptor do Internato de Pediatria do curso Medicina - Curitiba - PR - Brasil

Endereço para correspondência:

Paulo Ramos David João
Universidade Positivo
Cidade Industrial de Curitiba
Curitiba - PR, Brasil. CEP: 81290-000
E-mail: ppkr@uol.com.br

Data de Submissão: 03/09/2020
Data de Aprovação: 18/11/2020