ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2022 - Volume 12 - Número 2

Sarampo e novas perspectivas: aspectos clínicos, epidemiológicos e sociais

Measles and new perspectives: clinical, epidemiological and social aspects

RESUMO

OBJETIVO: Reunir dados sobre o sarampo apresentando desde o quadro clínico até instruções concernentes à sua vacina, e trazer um panorama tanto nacional, quanto mundial, a respeito de diversos aspectos epidemiológicos relacionados à doença.
MÉTODOS: Revisão não sistemática da literatura nacional e internacional, relacionando artigos científicos encontrados através dos seguintes descritores de busca: sarampo; vacina; pneumonia; diarreia; recomendações.
RESULTADOS: Houve aumento no número de registros de sarampo nos últimos anos, provavelmente pelo surgimento de um possível facilitador que foi o movimento antivacina, apesar de a imunização ser obrigatória na faixa etária pediátrica. A suspeição clínica e a confirmação laboratorial, sempre que disponível, são importantes para a prevenção das complicações inerentes à doença. Além disso, frente à pandemia atualmente enfrentada pelo novo coronavírus, a prevenção da infecção pelo vírus do sarampo não pode ser esquecida, havendo um papel relevante das autoridades no enfrentamento das duas doenças.

Palavras-chave: sarampo, pneumonia, diarreia, vacinação.

ABSTRACT

OBJECTIVE: Bring together data about measles presenting since the clinical conditions provoked by the disease until instructions related to its vaccine, and bring a both national and international panorama about several aspects related to measles.
METHODS: Non-systematic national and international literature review, relating scientific articles found through the following search descriptors: measles; vaccine; pneumonia; diarrhea; recommendations.
RESULTS: There was an increase in the number of records of this virus evolved over the last years probably by the emergence of a possible facilitator, which was the anti-vaccine movement, although immunization is mandatory in the pediatric age group. Clinical suspicion and laboratory confirmation, whenever available, are important for the prevention of complications inherent of the disease. In addition, in view of the pandemic currently faced by the new coronavirus, the prevention of infection by the measles virus can’t be overlooked, with the authorities playing an important role in tackling the two diseases.

Keywords: measles, pneumonia, diarrhea, vaccination.


INTRODUÇÃO

Em 2019, o Brasil perdeu o certificado de eliminação concedido pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), após registrar mais de 10.000 casos no ano anterior, concentrados principalmente nos estados de Roraima e Amazonas1. Ainda em 2019, até novembro, foram computados 13.489 casos da doença, entre os quais 15 óbitos, concentrados no estado de São Paulo, segundo dados do Ministério da Saúde2. Antes disso, os últimos surtos de sarampo haviam sido registrados nos anos de 2013 e 2014, em Pernambuco e no Ceará, respectivamente.

Em relação ao panorama mundial, nos cinco continentes, as cidades com menores índices de vacinação foram as que mais sofreram. O modo mais eficiente para prevenção do sarampo é a vacina, disponibilizada gratuitamente nos postos de saúde públicos no Brasil. Só em 2018, foram registradas 142 mil mortes por sarampo no mundo inteiro3, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)4 (Figura 1).


Figura 1. Situação global do sarampo, 2018. Fonte: Carvalho et al. (2018)4.



A importância do sarampo como um dos indicadores de redução da mortalidade infantil, de acordo com a Cúpula do Milênio, realizada em 2000, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) foi marcante. O indicador 15 do objetivo 4, dos “Objetivos do Milênio”, visava ampliar a cobertura vacinal contra o sarampo em crianças de 1 ano de idade. Como resultado dessa estratégia, houve uma atenuação de 78% nas mortes por sarampo no mundo inteiro, considerado um dos principais avanços dentre todos os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio5.

A doença

O sarampo é doença causada por vírus pertencente ao grupo Morbillivirus, altamente contagiosa e que acomete o mundo inteiro. O principal grupo envolvido são as crianças menores de 5 anos de idade. A transmissão ocorre por via aérea, através de aerossóis, dissipados por tosse, espirro, fala ou mesmo respiração próxima a pessoas sãs6. Aproximadamente 90% dos indivíduos susceptíveis próximos podem ser contagiados. Seu quadro clínico envolve diversos tipos de manifestações em diferentes momentos. Durante o quadro agudo, o doente pode vir a apresentar os seguintes sintomas4:


• Febre alta, maior ou igual a 38,5ºC;
• Exantema maculopapular generalizado;
• Tosse;
• Coriza;
• Conjuntivite;
• Mal-estar intenso;
• Manchas de Koplik - costumam anteceder o exantema e são caracterizadas por pequenos pontos azul-esbranquiçados na mucosa bucal, no revestimento interno das bochechas, mais comumente na região oposta aos dentes molares7 (Figura 2).



Figura 2. Sinais de Koplik. Fonte: Captura de tela – Fetal Med. Disponível em: https://www.fetalmed.net/surto-de-sarampo-que-as-gestantes-e-tentantes-precisam-saber/manchas-de-koplik/7



O exantema geralmente ocorre 14 dias após a exposição ao vírus, e o contágio tende a acontecer 4 ou 5 dias antes até 4 dias depois do aparecimento das lesões cutâneas. O período de incubação dura de 6 a 21 dias, em média 13 dias. As manifestações podem ser divididas em 3 períodos específicos8:

a) Período de infecção: com duração média de 3 dias, inicia o período prodrômico caracterizado por febre, acompanhada de tosse produtiva, coriza, anorexia, conjuntivite com fotofobia e lacrimejamento (podendo ser observada, ocasionalmente, na conjuntiva palpebral inferior, uma linha marginal transversal – linha de Stimson). Ao final desse período, podem ser visualizadas as manchas de Koplik, que desaparecem de 24 a 48 horas após o início do exantema. Já no 4º dia surge o exantema cutâneo maculopapular de coloração vermelha, iniciando na região retroauricular, de caráter descendente (projeção craniocaudal), que, em 3 dias, atinge todo o corpo em distribuição centrípeta sem poupar região palmo-plantar, concomitantemente à piora do quadro de prostração.

b) Período toxêmico: a ocorrência de superinfecção viral ou bacteriana é facilitada pelo comprometimento da resistência do hospedeiro à doença. Frequentes são as complicações, principalmente nas crianças até os 2 anos de idade, especialmente as desnutridas, e os adultos jovens.

c) Período de remissão: diminuição dos sintomas com declínio da febre. O exantema torna-se escurecido, castanho-acinzentado, podendo surgir descamação furfurácea, com aspecto semelhante à farinha. A temperatura diminui caso não haja infecção secundária e a erupção desaparece. A tosse pode persistir por 1 a 2 semanas.

Após o adoecimento, a imunidade contra o sarampo parece se estabelecer para a vida toda, embora existam relatos de reinfecção.

As complicações4,8 possivelmente decorrentes do sarampo em crianças são:


• Pneumonia (1/20 crianças pode desenvolver, sendo a causa mais comum de morte por sarampo em crianças pequenas – 6% dos casos);
• Otite média aguda (é a complicação mais frequente e pode resultar em perda auditiva permanente);
• Encefalite aguda (1/1.000 podem desenvolver e 10% podem vir a óbito – pode ocorrer mesmo após o 20º dia da doença);
• Óbito (1 a 3 por cada 1.000 crianças doentes podem morrer em decorrência de complicações da doença);
• Infecções respiratórias como laringotraqueobronquite;
• Gastroenterite;
• Diarreia, presente em 8% dos casos;
• Panencefalite esclerosante subaguda (PESS) - (doença neurodegenerativa fatal, rara e que pode desenvolver 7 a 10 anos após a infecção por sarampo, caracterizada por deterioração intelectual, cognitiva e comportamental, convulsões, mioclonias e evolui para descerebração espástica e morte – o risco é de cerca de 4 a 11 por cada 100.000 casos de sarampo).


Diagnóstico laboratorial

O diagnóstico laboratorial contribui para a confirmação do sarampo4. Consiste na detecção de imunoglobulinas da classe IgM no sangue na fase aguda da doença, desde o primeiro dia até 1 mês após o exantema. Em regiões de alta prevalência do vírus, com baixa cobertura vacinal, a OMS estabelece como padrão de diagnóstico a concentração sérica dos anticorpos dessa classe. Os anticorpos da classe IgG podem, ocasionalmente, aparecer nesta mesma fase e permanecem detectáveis ao longo de toda a vida (Figura 3). Podem ser utilizadas as seguintes técnicas:


• Ensaio imunoenzimático (ELISA): dosagem de IgM e IgG – este é utilizado pela rede laboratorial pública brasileira;
• Inibição de hemaglutinação (IH): dosagem de imunoglobulinas totais;
• Imunofluorescência (IF): dosagem de ambas as classes;
• Neutralização em placas: detecta anticorpos específicos;
• RT-PCR: identificação do vírus em qualquer material orgânico.



Figura 3. Diagnóstico laboratorial. Fonte: Carvalho et al. (2018)4.



Todos esses testes possuem sensibilidade e especificidade entre 85 e 98%. As amostras coletadas nos primeiros 28 dias após o exantema são consideradas oportunas. O teste de IgM com resultado reagente ou inconclusivo deve sempre ser notificado imediatamente para a continuidade da investigação e coleta da segunda amostra de sangue, que é obrigatória para a classificação final dos casos. A segunda coleta deve ser realizada entre 20 e 25 dias após a primeira. Para a vigilância epidemiológica completa, faz-se necessária a coleta de espécimes clínicos para a identificação viral por genotipagem, diferenciando um caso autóctone de um caso importado ou ainda relacionado ao vírus vacinal. Este pode ser identificado na urina, nas secreções nasofaríngeas, no sangue, no líquor ou em tecidos pela técnica de PCR. Essas amostras devem ser coletadas até o 5º dia após o exantema, de preferência nos primeiros 3. A análise molecular é importante a fim de mapear as vias de transmissão do vírus que, possivelmente, ajudam a vincular ou não os casos e pode sugerir uma fonte para casos importados. Além disso, é a única maneira de distinção entre a infecção causada pelo próprio vírus do tipo selvagem e uma erupção motivada por uma vacinação recente do sarampo4.

Vacinação

A melhor e mais eficiente forma de se prevenir contra o sarampo é por meio da vacinação. Os critérios para indicação da vacina9 são periodicamente revisados pelo Ministério da Saúde que considera características clínicas, idade, o fato de já ter tido sarampo anteriormente, ocorrência de surtos, entre outros. Atualmente, são recomendadas 2 doses da vacina. A primeira dose é aplicada aos 12 meses de vida e a segunda aos 15 meses de idade, como consta no calendário oficial de vacinação (Figura 4). Quando utilizadas as duas doses preconizadas, a eficácia de proteção contra o sarampo ultrapassa os 99%10. Há discussões científicas sobre a recomendação de doses extras para certos grupos de pessoas, tais como bebês de 6 meses a 1 ano que viajem para áreas de risco ou jovens de 15 a 29 anos em razão do recente surto. Existem 3 tipos de vacina que combatem o vírus do sarampo, são elas: dupla viral (proteção contra sarampo e rubéola); tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola); tetra viral (sarampo, caxumba, rubéola e varicela).


Figura 4. Calendário de vacinação. Fonte: Ministério da Saúde (2019)9.



São considerados regularmente vacinados os que tiverem registro da vacinação, caso contrário, recomenda-se a aplicação de uma ou duas doses a depender da situação conferida, espaçadas por um período mínimo de um mês. Pessoas com histórico confirmado da doença não precisam se vacinar. Em virtude da não homogeneidade da cobertura vacinal entre as crianças menores de 5 anos de idade, grupo com mais casos notificados, a campanha pública de vacinação assume prioridade para esse público.

Os possíveis efeitos adversos4,8 que envolvem a vacina são:


• Reações locais (ardência, vermelhidão, dor e formação de nódulo podem estar presentes em menos de 0,1% dos vacinados);
• Febre alta (maior que 39,5ºC, surge de 5 a 12 dias após a vacina se apresentando em 5 a 15% dos vacinados);
• Convulsão febril sem consequências graves;
• Dor de cabeça, irritabilidade, febre baixa, lacrimejamento, vermelhidão dos olhos e coriza acometem 0,5 a 4% dos vacinados;
• Manchas vermelhas no corpo por 2 dias em torno de 5% dos vacinados;
• Linfadenopatia em menos de 1% dos vacinados após 1 a 3 semanas da vacinação;
• Meningite geralmente benigna;
• Encefalite (1 a cada 1 milhão a 2,5 milhões de vacinados com a primeira dose);
• Manifestações hemorrágicas – púrpura trombocitopênica;
• Dor articular ou artrite;
• Inflamação das glândulas parótidas;
• Anafilaxia;
Rash.


A chance de uma possível reação adversa à vacina é substancialmente menor que a possibilidade de evolução para um quadro de pneumonia ou encefalite por sarampo, por exemplo.

Vale salientar que os indivíduos que apresentarem febre e rash não são considerados contagiosos. Ademais, a chance de efeitos adversos na segunda dose é significativamente menor que na primeira.

As contraindicações4,8 da vacina envolvem casos suspeitos de sarampo, gestantes, lactentes com menos de 6 meses de idade, pacientes imunossuprimidos, pessoas com histórico anterior de reação anafilática. Crianças expostas ou infectadas pelo HIV, nas categorias N, A e B com CD4 ≥15% podem tomar a vacina de acordo com as orientações de seu médico. Aquelas que tiverem sintomatologia grave e/ou imunossupressão grave (CD4 <15% para menores de 5 anos e CD4 <200cel/mm³ para maiores de 5 anos) não devem ser vacinadas. Adultos que vivam com HIV/AIDS com CD4 entre 200 e 350 devem receber o aconselhamento de seu médico, enquanto aqueles que possuírem CD4 inferior a 200 não devem tomar a vacina. Pessoas em quimioterapia antineoplásica só devem se vacinar 3 meses após a suspensão do tratamento. Os medicados com drogas imunossupressoras precisam receber orientações de seu médico que avaliará o risco de interrupção do tratamento e proporá um intervalo mínimo. Os que receberem transplante de medula óssea somente podem ser vacinados de 12 a 24 meses após o procedimento. Devem ser adiadas as vacinas por 3 a 11 meses em pacientes que receberam preparados com anticorpos ou produtos derivados de sangue, em consequência da potencial interferência destes produtos na resposta à vacina. Também devem ser adiadas por 6 meses após o tratamento em pacientes que realizam terapia com biológicos, tais como as imunoglobulinas anti-células B.

Tratamento

Não há nenhum tratamento específico para o sarampo. Embora a ribavirina tenha demonstrado atividade in vitro contra o vírus do sarampo, não há estudos controlados para demonstrar o benefício de seu uso em seres humanos11. Alguns profissionais de saúde defendem seu uso em: crianças menores de 6 meses com pneumonia por sarampo, pacientes com mais de 12 meses com pneumonia quando necessário suporte por ventilação pulmonar, e pacientes extremamente imunossuprimidos11. Nesses casos, a dose de ribavirina varia de 15 a 20mg/kg por dia por via oral em 2 doses divididas por 5 ou 7 dias. Outro fator amplamente discutido é a relação da vitamina A com a doença. A deficiência desse composto contribui para um retardo na recuperação e favorece um alto índice de complicações. O uso de retinol em crianças está associado a um decréscimo da morbimortalidade. Deve ser administrado 1 vez por dia em 2 dias consecutivos, nas seguintes dosagens11:


• Em lactentes com menos de 6 meses de idade, 50.000UI por via oral;
• Para lactentes de 6 a 11 meses de idade, 100.000UI por via oral;
• Para crianças com 12 meses ou mais de idade, 200.000UI por via oral.
• Em alguns casos, deve ser administrada uma terceira dose de 4 a 6 semanas depois para crianças com deficiência de retinol.


Notificação

A notificação é essencial no sentido de manter a eliminação do sarampo por meio de vigilância epidemiológica sensível, ativa e oportuna, garantindo medidas de controle pertinentes. O sarampo é doença de notificação obrigatória, a qual deve ser feita seguindo dois critérios que variam segundo a situação clínica, são eles:


• Caso suspeito: qualquer paciente, independentemente da idade e da situação vacinal, que apresentar febre e exantema maculopapular acompanhados de um ou mais dos sintomas como tosse e/ou coriza e/ou conjuntivite, ou todo o indivíduo com viagem recente para áreas de risco nos últimos 30 dias, ou de contato com pessoas que viajaram nesse mesmo período.
• Caso confirmado: qualquer caso suspeito comprovado como caso de sarampo seguindo, pelo menos, um dos critérios a seguir:
• Critério laboratorial: casos suspeitos cujo exame laboratorial teve resultado reagente ou soropositivo para IgM e a análise clínica epidemiológica indicativa de confirmação.
• Vínculo epidemiológico: casos suspeitos que tenham tido contato com um ou mais casos de sarampo confirmados por laboratório, e que apresentaram os primeiros sinais da doença entre 7 e 18 dias da exposição.


Os casos suspeitos de sarampo devem ser notificados à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) nas primeiras 24h, sendo seguidos da coleta de sangue para sorologia e de material para isolamento e identificação viral e da investigação, que precisa ocorrer em até 48h para que assim a vacinação de bloqueio possa ocorrer em até 72h.

Os indivíduos contactantes de um caso de sarampo, sendo imunossuprimidos, grávidas susceptíveis e lactentes menores de seis meses, devem receber imunoglobulina por via intramuscular (IGIM) ou endovenosa (IGEV), nos primeiros seis dias após o contato.

A hospitalização4 é indicada nos casos de crianças menores de seis meses, gestantes, desnutridos graves, pacientes imunodeficientes ou pessoas que apresentem pelo menos um dos sinais clínicos a seguir:


• Desidratação;
• Vômitos persistentes;
• Diarreia significativa;
• Incapacidade para ingerir líquidos e alimentos;
• Presença de grande quantidade de úlceras na cavidade oral;
• Desconforto respiratório;
• Estridor;
• Pneumonia;
• Convulsão;
• Déficit motor;
• Alteração sensorial.


O sarampo na atualidade

Alguns temas são pouco discutidos quando se referem ao sarampo e merecem atenção a fim de promover possíveis medidas de prevenção contra a doença ou esclarecer e estabelecer conexões entre diversas outras enfermidades.

A pneumonia e a diarreia surgem tanto como complicações quanto como infecções secundárias a partir do sarampo, aparecendo em 10 a 40% dos casos12.

Foi publicado estudo na Nigéria, Paquistão, Índia, Etiópia e República Democrática do Congo, em 2017, sobre o efeito da vacina contra o sarampo sobre as infecções respiratórias agudas (IRA) e a diarreia em crianças de 12 a 59 meses. Crianças vacinadas foram menos propensas a IRA que os não vacinados na Índia e no Paquistão. Nos demais países, com exceção da Etiópia, as crianças vacinadas possuíam menor risco de contraírem diarreia, em comparação com as não imunizadas. Assim, houve redução de 15 a 30% dos casos de IRA na Índia e no Paquistão e de 12 a 22% dos casos de diarreia em crianças que receberam a vacina contra o sarampo. Como resultado desse estudo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e UNICEF introduziram a vacina contra o sarampo como medida preventiva no Global Action Plan for Pneumonia and Diarrhea (GAPPD).

Dados do Ministério da Saúde de 2019 mostram que a cobertura vacinal contra o sarampo em crianças de até 1 ano foi de 99,4%14. Apenas 8 estados além do Distrito Federal ficaram abaixo da meta de imunização prevista de 95%. Até setembro de 2019, somente 57,19% das crianças de até 1 ano, grupo altamente acometido e de elevado risco, haviam recebido a vacina.

Retrospectivamente, é possível perceber um padrão de descuido da população em relação ao calendário preconizado pelo PNI. Como era pequena a atenção dada ao sarampo em 2013, a população pareceu diminuir sua preocupação e abriu espaço para o ressurgimento da doença15. Diante da ocorrência de novo surto entre 2013 e 2014, a população voltou a se proteger e o índice de cobertura aumentou significativamente, mesmo que ainda continuasse abaixo do esperado como demonstra a Figura 5.


Figura 5. Coberturas vacinais (CV) por tipo de vacinas em crianças menores de 1 ano e 1 ano de idade, Brasil, 2012 a 2016. Fonte: Cruz (2017)15.



Nos últimos anos, a disseminação das famosas fake news foi outro fator que colaborou para o impedimento no progresso contra a erradicação dos diversos vírus, não só do sarampo15,16. O movimento antivacina ficou conhecido recentemente e tem ganhado cada vez mais simpatizantes. No entanto, apesar das evidências científicas que sustentam com clareza a necessidade de conscientização a respeito da vacinação, atacar aqueles que fazem parte do movimento contrário pode ter o efeito indesejável de dividir cada vez mais os dois lados.

A vacina, de acordo com a escritora americana Tara Haelle17, assume dois papéis importantíssimos: dentro do organismo e fora dele. No primeiro, o corpo cria anticorpos que combatem o vírus caso ele chegue antes mesmo de provocar uma infecção. O segundo se refere à redução da habilidade de dispersão e circulação do vírus, o que depende da solidariedade e compaixão sociais. Esse movimento é conhecido como imunidade de grupo, do inglês “herd immunity” (Figura 6). Esse conceito é mais do que relevante, já que no caso do sarampo, uma pessoa chega a infectar de 12 a 18 outras pessoas. Além disso, pensar em solidariedade é essencial quando lembramos daqueles que não podem se vacinar, ainda que desejem, a exemplo de crianças menores de 6 meses, pessoas imunossuprimidas, gestantes e pacientes oncológicos.


Figura 6. Imunidade de grupo. Fonte: Captura de tela. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/niaid/514933997619



O vírus do sarampo merece preocupação redobrada diante do atual cenário mundial de enfrentamento do novo coronavírus (COVID-19)18. Com a atenção direcionada exclusivamente ao COVID-19, a campanha de vacinação contra o sarampo perdeu fôlego, porém não deve ser jamais desprezada já que seu contágio e letalidade são significativos e, por isso, deve receber assistência paralela à atual pandemia.


CONCLUSÃO

No presente artigo, analisou-se a evolução da doença ao longo dos últimos anos em uma perspectiva tanto nacional quanto internacional. Foram apontados locais em que a doença se comporta de forma endêmica, além dos principais grupos de risco que merecem maior atenção por parte dos profissionais de saúde. Além disso, esta revisão demonstrou o aspecto social atrelado à vacinação, tal como a dificuldade no enfrentamento ao movimento antivacina. Ressalta-se ainda o impacto da vacinação sobre os casos de pneumonia e diarreia, manifestações comuns da enfermidade com grande contribuição para o número de mortes associadas à essa virose. A cobertura vacinal contra o sarampo vem diminuindo e precisa retornar aos 95% estabelecidos como ideais, em busca de conter o ritmo de infecção acelerado dos últimos anos, principalmente em tempos de pandemia pelo COVID-19.


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1. UFRJ, Faculdade de Medicina - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. UFRJ, IPPMG - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:

Guilherme Homem de Carvalho Zonis
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Av. Carlos Chagas Filho, nº 373, Rio de Janeiro - RJ. Brasil
CEP: 21941-590
E-mail: guilhermezonis@gmail.com

Data de Submissão: 08/06/2020
Data de Aprovação: 04/08/2020