ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 2

Relato de caso: macroamilasemia em uma adolescente de 13 anos

Case report: macroamylasemia in a 13-year-old adolescent

RESUMO

A macroamilasemia é uma anormalidade bioquímica ocasionada pela ligação da amilase salivar ou pancreática com outro componente sérico, geralmente imunoglobulinas. Este agregado grande e pesado em geral não é excretado pelos rins, ocasionando hiperamilasemia sérica. A macroamilasemia é uma condição frequentemente benigna, mas pode atuar como fator de confusão diagnóstica em crianças com hiperamilasemia sérica, o que pode acarretar em uma investigação e terapêutica desnecessária. Relatamos o caso de uma adolescente de 13 anos com história de dor abdominal crônica e níveis séricos de amilase persistentemente elevados, porém com níveis de lipase sérica normais, que após investigação, teve como diagnóstico final macroamilasemia e migrânea abdominal.

Palavras-chave: dor abdominal, hiperamilassemia, pediatria.

ABSTRACT

Macroamylasemia is a biochemical abnormality caused by pancreatic or salivary amylase linked to another serum component, more usually immunoglobulins. Generally, this heavily aggregated component will not be excreted by the kidney causing hyperamylasemia. Macroamylasemia has been reported as a benign condition but could be a confusion factor in children presenting hyperamylasemia, leading to unnecessary investigation and treatment. This paper aimed to report the case of a 13-year-old adolescent presenting chronic abdominal pain and hyperamylasemia but serum lipase between the normal range and after diagnostic approach concluded as abdominal migraine and macroamylasemia.

Keywords: abdominal pain, Hyperamylasemia, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

O trato gastrointestinal tem por função primordial a digestão e absorção de nutrientes provenientes da dieta. Para que o processo digestivo ocorra, diferentes secreções são produzidas e lançadas no trato gastrointestinal. A amilase é uma enzima secretada pelo pâncreas e glândulas salivares que participa na digestão do amido da dieta. A determinação dos níveis séricos da amilase pode ter utilidade no diagnóstico diferencial da dor abdominal aguda e crônica1. O aumento dos níveis de amilase sérica (hiperamilasemia) é encontrado em diversas doenças do pâncreas e de outros órgãos, tais como doenças virais crônicas do fígado, doença inflamatória intestinal, lesões inflamatórias das glândulas salivares e na cetoacidose diabética1,2.

Dentre as causas de hiperamilasemia, encontra-se a macroamilasemia; anormalidade bioquímica que acomete até 1% da população geral, mas com raras publicações científicas em crianças3,4. A macroamilasemia é caracterizada por elevação sérica da amilase, resultante da ligação da amilase sérica normal (comumente a isoenzima salivar) com outro componente sérico normal, geralmente imunoglobulinas (IgG e IgA) produzindo um complexo heterogêneo molecular grande e pesado de difícil excreção, resultando assim em hiperamilasemia sérica3,5.

Apesar da macroamilasemia ser uma anormalidade bioquímica, que geralmente tem evolução benigna, pode ser confundida com pancreatite aguda ou outras causas de hiperamilasemia, acarretando investigação diagnóstica excessiva ou mesmo em tratamentos desnecessários1,6,7.


RELATO DE CASO

Adolescente de 13 anos de idade, branca, com história de dor abdominal há dois anos. Apresentava queixa de dor abdominal a cada 2 ou 3 meses, com duração de 1-3 dias necessitando procurar atendimento médico em pronto-socorro nas crises. A dor ocorria em todo o abdome, em crise, associada a náuseas, vômitos e palidez cutânea; melhorava apenas após analgesia intravenosa. Negava fatores de piora, despertar noturno e febre durante as crises de dor abdominal. Também negava perda ponderal ou alteração do hábito intestinal no período. Antecedentes pessoais e familiares: menarca aos 11 anos de idade, uso contínuo de metilfenidato e imipramina para tratamento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Pai com diagnóstico de migrânea. Ao exame físico apresentava-se em bom estado geral, sem alterações evidentes no exame físico abdominal e demais segmentos.

Foi realizada investigação diagnóstica revelando elevação persistente dos níveis séricos de amilase em diferentes ocasiões (Tabela 1). Não apresentava aumento dos níveis séricos de lipase e não apresentava alterações ao ultrassom. Foi encaminhada ao serviço de gastroenterologia pediátrica para investigação de hiperamilasemia. Além da dosagem de amilase também foram solicitados outros exames laboratoriais (Tabela 1) e exames de imagem.




Também foi realizada investigação laboratorial de seus familiares, com dosagem sérica de amilase e lipase dos pais e irmãos. Os familiares pesquisados eram assintomáticos e mantiveram resultados laboratoriais dentro da normalidade (Tabela 2).




A paciente permanece em seguimento ambulatorial com acompanhamento dos níveis séricos de amilase, que permaneceram elevados (305 U/L e 264 U/L nas últimas aferições), porém não apresentou novos episódios de crise de dor abdominal no último ano.


DISCUSSÃO

A investigação da macroamilasemia é importante em pacientes com hiperamilasemia persistente3,6,8. O principal interesse clínico está na necessidade de distinguir a macroamilasemia de outras situações que envolvem o aumento da amilase sérica e necessitam de tratamento específico tais como doenças do pâncreas, doenças da parótida, doenças autoimunes, neoplasias, má absorção, alcoolismo, doença hepáticas e doença celíaca1,4,9,10.

Clinicamente não há um sinal ou sintoma típico da macroamilasemia, devendo ser suspeitada em pacientes com hiperamilasemia sérica, com amilasúria normal ou baixa e função renal normal7,11.

O diagnóstico de macroamilasemia é feito por meio da verificação da existência do complexo amilase com outro componente sérico, através de diferentes métodos, tais como eletroforese e cromatografia por filtração, bem como as técnicas de ultracentrifugação ou enfoque isoelétrico3,5.

A cromatografia pode ser feita por meio da separação de imunocomplexos com a com adição de polietilenoglicol (PEG), em proporção igual, ao soro congelado do paciente. Esse procedimento faz com que os complexos enzima-imunoglobulinas precipitem, restando sobrenadante as moléculas de amilase não complexadas com as imunoglobulinas, avaliando-se o seu valor percentual. Atualmente, considera-se que valores abaixo de 27% do sobrenadante final indica macroamilasemia, significando que a maior parte da amilase da amostra tenha precipitado com imunoglobulinas. Esse exame é um método simples e que foi usado no diagnóstico do caso descrito, tendo boa sensibilidade e especificidade e podendo ser utilizado como exame de triagem, visto ser mínima a ocorrência de falsos negativos5.

Outra técnica utilizada para o diagnóstico é por meio da medida da depuração renal de amilase/creatinina. No caso de macroamilasemia observa-se aumento importante de amilase sérica e baixo valor da amilase urinária devido ao tamanho do complexo formado, com depuração menor que 1%. O paciente deve ter função renal normal para que a técnica seja confiável3.

As publicações científicas sobre macroamilasemia são raras em pediatria4,6-13, não se sabendo ao certo sua real prevalência. Em adultos estima-se que a macroamilasemia acometa 1 a 2% da população geral3.

D’Avanzo et al. (1992)13 descreveram o caso de uma menina de 5 anos de idade que apresentava quadro recorrente de dor abdominal, vômitos e febre. Foi investigada e diagnosticada inicialmente com pancreatite crônica pois apresentava hiperamilasemia sérica (150U/L). Por apresentar persistência da queixa de dor abdominal foi internada e melhor investigada chegando ao diagnóstico de macroamilasemia. Após o diagnóstico, durante o seguimento, a paciente não mais apresentou dor abdominal, mas manteve hiperamilasemia sérica.

Ko e Lee (2009)7 relataram o caso de uma criança de 4 anos com história de dor abdominal subaguda e febre baixa. A paciente foi internada e investigada, sendo identificada hiperamilasemia (687U/L), mas com lipase sérica normal (31U/L). A paciente foi colocada em jejum e iniciada nutrição parenteral total. No segundo dia de internação estava assintomática (queixava apenas de fome), mas mantinha os níveis séricos de amilase elevados (700U/L). Foi realizado ultrassonografia e tomografia do abdome que resultaram normais. Assim, foi suspeitada a possibilidade de macroamilasemia e realizado clearance amilase/clearance creatinina com taxa de 0.48%, sugerindo macroamilasemia. Como no caso descrito anteriormente a criança permaneceu assintomática no seguimento mantendo níveis elevados de amilase sérica.

Apesar da associação entre macroamilasemia e dor abdominal provavelmente ser circunstancial, já que crianças com dor abdominal são mais submetidas à investigação de amilasemia sérica e a macroamilasemia geralmente persiste apesar da resolução da dor abdominal4,7,12,13, algumas condições autoimunes tem sido associadas à macroamilasemia na infância, tais como a doença celíaca4 e a doença de Crohn10.

Outra condição a ser pesquisada é a hiperamilasemia familiar, onde pelo menos três gerações de familiares do paciente cursam com aumento dos níveis séricos de amilase2. Já a síndrome de Gullo também é uma hiperenzinemia pancreática benigna, mas envolve o aumento de outras enzimas pancreáticas, como a lipase, e não está associada à formação de macrocomplexos14.

De maneira semelhante aos relatos existentes, descrevemos o caso de uma adolescente encaminhada ao ambulatório de gastroenterologia pediátrica com quadro de dor abdominal recorrente e hiperamilasemia sérica. Foi realizada investigação, com o diagnóstico de macroamilasemia através do método de precipitação com PEG. Apesar do caráter benigno dessa condição, em virtude da possível associação com condições patológicas, foram efetuados exames complementares e investigação familiar. No caso descrito, não foram encontradas patologias associadas, sendo a dor abdominal crônica classificada segundo os critérios de Roma IV15 como crises de migrânea abdominal; e a despeito de não ter havido tratamento específico, a paciente apresentou melhora das crises de dor abdominal mantendo hiperamilasemia persistente.

Divulgar e discutir a macroamilasemia no contexto da dor abdominal crônica da infância é importante, a fim de propiciar melhor abordagem diagnóstica e terapêutica para crianças que apresentem hiperamilasemia sérica.


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1. Universidade Federal da Grande Dourados, Pediatria - Dourados - Mato Grosso do Sul - Brasil
2. Universidade Federal da Grande Dourados, Medicina - Dourados - Mato Grosso do Sul - Brasil

Endereço para correspondência:

Juliana Cristina Taguchi
Universidade Federal da Grande Dourados
R. João Rosa Góes, 1761 - Vila Progresso
Dourados - MS, Brasil. CEP: 79825-070
E-mail: juliana_taguchi@hotmail.com

Data de Submissão: 21/04/2020
Data de Aprovação: 26/05/2020