ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2022 - Volume 12 - Número 2

Elegibilidade para cuidados paliativos dos pacientes internados na enfermaria de pediatria de um hospital universitário

Palliative care eligibility for the patients admitted to a pediatrics’ infirmary at a teaching hospital

RESUMO

OBJETIVOS: Quantificar o percentual de pacientes elegíveis para avaliação paliativista dentre os internados na enfermaria pediátrica do Hospital de Clínicas da UNICAMP (HC/UNICAMP) em um período de tempo.
MÉTODOS: Estudo retrospectivo, descritivo com corte transversal da população de pacientes internados na enfermaria pediátrica do HC/UNICAMP, no período de junho a outubro de 2017. Os pacientes foram considerados elegíveis caso apresentassem como doença de base, no momento da internação, uma entre as seguintes: (I) doenças para as quais o tratamento curativo é possível, mas pode falhar; (II) doenças nas quais a morte prematura pode ser esperada, porém o tratamento integrado pode prolongar a vida com qualidade; (III) doença crônica progressiva, cujo tratamento é exclusivamente paliativo e potencialmente prolongado; (IV) deficiências neurológicas não progressivas que induzam a vulnerabilidades que possam levar à morte prematura. Os pacientes considerados elegíveis foram comparados com os não elegíveis no que diz respeito a gênero, idade, caráter de internação (urgência/eletivo) e frequência de reinternações. Níveis descritivos (p) inferiores a 0,05 foram considerados estatisticamente significantes.
RESULTADOS: 30,9% dos pacientes internados na enfermaria pediátrica do HC/UNICAMP foram considerados elegíveis para uma avaliação paliativista. Não houve diferença estatística no perfil demográfico entre os grupos. O número de reinternações e as internações em caráter de urgência dos pacientes elegíveis foram superiores às dos pacientes não elegíveis no mesmo período, com significância estatística.
CONCLUSÃO: O tema é desafiador, no entanto, a discussão se faz cada vez mais necessária para o aprimoramento da atenção ao paciente pediátrico em todas as esferas de cuidado.

Palavras-chave: cuidados paliativos, cuidados paliativos na terminalidade da vida, pediatria

ABSTRACT

OBJECTIVES: To quantify the proportion of pediatric inpatients eligible for palliative care at the teaching hospital of the University of Campinas (HC/UNICAMP).
METHODS: This retrospective descriptive cross-sectional study included pediatric inpatients seen at HC/UNICAMP from June to October 2017. Patients were deemed eligible if they had one of the following underlying conditions at the time of admission: (I) diseases for which curative therapy exists, but may fail; (II) diseases in which premature death is expected, but for which comprehensive care may prolong life with reasonable quality; (III) chronic progressive diseases for which only palliative, potentially prolonged, care is available; (IV) non-progressive neurological disorders that increase the likelihood of premature death. Patients deemed eligible were compared to non-eligible patients based on sex, age, type of admission (emergency/elective), and frequency of readmission. P-values below 0.05 were considered statistically significant.
RESULTS: Almost a third (30.9%) of the pediatric inpatients seen at HC/UNICAMP were deemed eligible for palliative care. The demographic profiles of eligible and non-eligible patients were not significantly different. The number of readmissions and emergency admissions of eligible patients was significantly greater than that of non-eligible patients.
CONCLUSION: Although challenging, this is a subject that requires more discussion to further improve the overall care provided to pediatric patients.

Keywords: palliative care, palliative medicine at the end of life, pediatrics.


INTRODUÇÃO

Define-se como transição epidemiológica o processo de mudança na incidência ou prevalência de doenças e causas de óbito ao longo de um determinado período de tempo. Observa-se que os padrões de morbimortalidade podem ser considerados indicadores relativamente sensíveis a respeito das condições de vida e do modelo de desenvolvimento de uma população, sendo resultado de diversos fatores interdependentes1.

Os avanços científicos e tecnológicos ocorridos nos últimos anos foram fatores determinantes para a alteração no perfil de doença das populações. Diante de uma assistência cada vez mais abrangente e eficaz, o número de pacientes portadores de doenças crônicas aumenta exponencialmente, ampliando a sobrevida e gerando uma população antes desconhecida: a de crianças, adolescentes e adultos portadores de condições clínicas complexas, para as quais não existe cura, no entanto, com uma expectativa de vida progressivamente maior1-6.

Tal tendência, facilmente demonstrável entre a população adulta, também incide sobre os pacientes pediátricos, alterando de forma progressiva o perfil de pacientes internados nas enfermarias pediátricas do país e do mundo: do predomínio de pacientes agudamente enfermos para uma propensão a pacientes cronicamente doentes, internados indefinidamente ou repetidamente para estabilizar intercorrências de suas doenças de base5,6. Dados indicam que, nos EUA, cerca de 55.000 crianças e adolescentes entre 0-19 anos morrem anualmente vítimas de complicações de doenças crônicas não transmissíveis, corroborando a importância da atenção aos pacientes pediátricos portadores de patologias crônico-degenerativas7.

A adaptação dos sistemas de saúde a esta situação ocorre de forma lenta e gradual em todo o mundo1-4. No entanto, parece que o maior desafio imposto por este novo cenário é a acomodação dos pacientes e familiares ao convívio com uma enfermidade crônica, potencialmente estável ao longo de muitos anos, tendo como o óbito prematuro o desfecho mais provável.

A nova realidade do perfil de internações hospitalares no Brasil e no mundo traz consigo, além de dilemas éticos e clínicos, também uma forte questão econômica. A manutenção de pacientes internados por tempo indeterminado, usufruindo de cuidados intensivos ou semi-intensivos em ambiente de CTI ou enfermaria, geram um aumento na demanda de recursos materiais, humanos e financeiros às unidades hospitalares sem precedentes. Nos EUA, 18% do PIB é gasto anualmente com saúde, representando um custo per capita de US$8.000,00 por ano. Destes, ¼ é gasto no último ano de vida, e cerca de 9% durante o último mês. Já em países como Reino Unido, Portugal e aqueles do Oriente Médio, por exemplo, o aumento dos gastos com saúde tem como principal força motriz um aumento significativo no percentual de internações e mortes hospitalares, o que gera aumento dos custos com leitos, equipe e material de forma a tornar praticamente insustentável a manutenção de tais estatísticas6,7.

O tipo de atenção provida ao paciente crônico pode ser compreendido em diferentes níveis de complexidade – desde o controle ambulatorial de sintomas e angústias do doente, seus familiares e cuidadores, até o manejo de complicações decorrentes da patologia a nível hospitalar5-7.

Entende-se como “cuidado paliativo” uma abordagem ou tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a sua continuidade. Para tanto, é necessário avaliar e controlar de forma impecável não somente a dor, mas todos os sintomas de natureza física, social, emocional e espiritual que incidam sobre os pacientes e seus próximos6,8,9. As questões éticas, espirituais e o controle de sintomas físicos são ponto central do cuidado paliativo, e permitem, de forma horizontal, uma abordagem completa do sofrimento do paciente e seus familiares enquanto confrontam o final da vida8-10.

Devido à crescente demanda de atenção ao paciente crônico, a edição de 2014 da “Estratégia de Ação Global para Prevenção e Controle das Doenças Crônicas Não Comunicáveis” da Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou os cuidados paliativos como um dos 12 principais assuntos na agenda de saúde global, ressaltando a importância de definir e financiar intervenções a nível nacional para a promoção de cuidados paliativos8,11.

Observa-se que, apesar dos dados supracitados, quando questionadas, na maioria das culturas, as pessoas preferem padecer e falecer em seu ambiente domiciliar, sem intervenções desnecessárias ou agressivas que prolonguem seu tempo de vida de forma infrutífera. No entanto, entre as barreiras para a implementação de uma rotina terapêutica voltada aos cuidados paliativos, destacam-se a falta de discussões dentro das equipes assistenciais a respeito do tema; a evasão ao confronto com pacientes e familiares, mantendo falsas esperanças, e a falta de mecanismos para uma transição entre o cuidado voltado para uma terapêutica curativa em direção ao cuidado paliativo6,7,10.

A obstinação terapêutica, caracterizada por um excesso de medidas clínicas potencialmente desproporcionais, que impõe sofrimento ou dor ao paciente, sem previsão de alterar o prognóstico do mesmo, é uma realidade nas unidades de cuidado do Brasil e do mundo, devido principalmente aos fatores acima destacados de dificuldade na implementação do cuidado paliativo. A definição de um cuidado obstinado, no entanto, não é fácil: os mesmos recursos terapêuticos podem ser considerados fundamentais em um caso e extraordinários em outro, havendo um limiar extremamente tênue na determinação da futilidade terapêutica, frequentemente não consensual entre as equipes de cuidado e dos familiares. Por tal motivo, cada caso deve ser avaliado de forma individual e minuciosa12-14.

Dentre as maiores barreiras para a definição e aceitação de certos cuidados como distanásia e para a determinação de um tratamento paliativo em vez de curativo, destaca-se a incerteza prognóstica da maior parte das patologias, especialmente entre as populações pediátricas9. Diante de tal, o desconforto dos familiares e cuidadores na determinação de suspensão ou adiamento de um tratamento considerado ineficaz ou fútil pode ser acalentado com a compreensão de que um limite terapêutico foi atingido, não havendo benefício clínico em qualquer progressão na intervenção assistencial. A determinação de tal limite terapêutico deve ser tomada em conjunto e respeitada pela equipe de saúde e familiares, podendo ser modificada conforme a evolução clínica do paciente. Mesmo diante do conhecimento clínico da equipe médica, nenhuma definição a respeito da terapia deve ser unilateral9,13-15.

Inserida neste contexto, encontra-se uma questão ética e moral para a equipe de saúde: o conflito entre o papel de cuidar em vez de necessariamente curar os pacientes, associado a dúvidas a respeito de quanto e que tipo de cuidado faz sentido para um paciente com expectativa de vida limitada pelo prognóstico da patologia que o afeta6. Tal discussão deve ser guiada sempre pelos quatro princípios básicos que regem a profissão médica: respeito à autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. Além disso, é consensual que nenhum profissional de saúde seja obrigado a participar de um cuidado com o qual não concorde ou apresente algum tipo de conflito moral6,10.

Tratando-se especificamente do escopo da pediatria, todas as questões discutidas tornam-se ainda mais complexas. As nuances éticas merecem destaque especial, já que a autonomia do paciente pediátrico encontra-se prejudicada na maioria dos casos, e frequentemente os pais ou responsáveis não são capazes de assumir o papel de procuradores pela saúde do paciente; de toda forma, os princípios éticos básicos de beneficência, não maleficência e justiça aplicam-se a estes pacientes como a todos os demais9. As diferenças entre os pacientes pediátricos e adultos não se restringem às demandas éticas; destacam-se, ainda, as limitações de cognição e maturidade de uma criança ou adolescente, e sua forma peculiar de encarar a doença e a terminalidade; a epidemiologia do adoecimento e óbito em cada faixa etária; a rede de apoio e a tomada de decisão a respeito do cuidado; a forma de determinar a funcionalidade de acordo com a faixa etária; e a influência deste aspecto na decisão terapêutica7,9,10. Acima de todos os impeditivos supracitados, existe ainda o tabu a respeito do padecer e falecer infantil, intensamente estabelecido no subconsciente coletivo mesmo dentro das equipes de saúde habituadas ao manejo de pacientes pediátricos críticos6,16. Observa-se, ainda, dentro deste contexto, que, particularmente entre os pacientes pediátricos, admite-se o uso de medidas invasivas e de suporte à vida mesmo nos momentos finais, sem que isso represente uma falha no cuidado paliativo, desde que tal discussão faça parte do acordo entre a equipe assistencial, a família e o paciente; deve-se sempre destacar o caráter progressivo da instalação do cuidado paliativo em detrimento da terapêutica curativa, não de forma excludente ou substitutiva, mas como uma alternativa quando a condição clínica do paciente demonstra-se irreversível7,9,10,16.

Diante do exposto, propôs-se o seguinte trabalho, que teve como objetivo geral, quantificar o percentual de pacientes elegíveis para avaliação paliativista dentre os internados na enfermaria de pediatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP em um determinado período de tempo; além disso, como objetivos secundários, a identificação do perfil epidemiológico dos pacientes internados (idade e gênero), caráter de internação (urgência ou eletiva) e a frequência de reinternações no período do estudo, comparando os pacientes elegíveis com os não elegíveis.


MÉTODOS

Estudo retrospectivo, descritivo com corte transversal da população de pacientes internados na enfermaria de pediatria de um hospital universitário.

O estudo foi realizado em um hospital de complexidade terciária, em uma enfermaria composta por 36 leitos que acomodam pacientes pediátricos entre 0 e 14 anos de idade; 4 leitos são destinados a pacientes acompanhados pela equipe de nefrologia pediátrica; 3, pela cirurgia pediátrica, e os demais são ocupados por pacientes oriundos da unidade de emergência, UTI ou ambulatórios especializados.

Foram coletados dados qualitativos e quantitativos a respeito de todos os pacientes internados em tal enfermaria em um período de quatro (4) meses do ano de 2017 (julho a outubro), através de dados registrados no sistema de informação hospitalar em uso na instituição. A coleta de dados teve início após a submissão e aprovação do projeto pelo comitê de ética em pesquisa (CEP) da instituição.

Após a coleta, os pacientes internados em tal período foram classificados de acordo com a sua elegibilidade para uma avaliação paliativista, a partir da doença de base que apresentavam no momento da internação. Foram considerados elegíveis para uma avaliação paliativista os pacientes que apresentassem uma ou mais das condições de base descritas abaixo10,16:


1. Doenças para as quais o tratamento curativo é possível, mas pode falhar:

a. Doenças oncológicas progressivas, em estágio avançado ou de prognóstico reservado;
b. Doenças cardíacas congênitas complexas/cardiopatia adquirida.

2. Doenças nas quais a morte prematura pode ser esperada, porém o tratamento clínico integrado pode prolongar a vida com qualidade:

a. Fibrose cística;
b. HIV/SIDA;
c. Doenças crônicas ou malformações do trato gastrointestinal;
d. Epidermólise bolhosa severa;
e. Imunodeficiências;
f. Doença renal crônica não dialítica/sem indicação ou possibilidade de transplante;
g. Insuficiência respiratória crônica agudizada;
h. Distrofia muscular.

3. Doença crônica progressiva cujo tratamento é exclusivamente paliativo e pode prolongar-se por anos:

a. Mucopolissacaridose e outras doenças de depósito;
b. Anomalias cromossômicas;
c. Osteogênese imperfeita.

4. Deficiências neurológicas não progressivas que induzam a vulnerabilidades que possam levar à morte prematura:

a. Paralisia cerebral severa com infecções recorrentes;
b. Sequela neurológica de doença infecciosa;
c. Hipóxia/anóxia com lesão cerebral;
d. Holoprosencefalia/outras malformações.



Para fins de comparação entre os grupos, foram coletados, ainda, os seguintes dados:


• Idade (em anos completos):

• Os pacientes foram classificados em lactentes (crianças com idade até 2 anos incompletos), pré-escolares (crianças de 2 anos até 5 anos incompletos), escolares (crianças de 5 a 11 anos incompletos) e adolescentes (entre 11 e 19 anos), conforme classificação da Sociedade Brasileira de Pediatria17.

• Gênero;
• Reinternações no período do trabalho;
• Caráter da internação (eletiva ou urgência).


Análise estatística

As variáveis numéricas foram expressas por média, desvio padrão (DP) e mediana. A associação destas variáveis com os fatores de interesse foi verificada pelo teste t de Student para amostras com distribuição normal. Nos casos de distribuição não normal, foi utilizado o teste de Mann-Whitney. As variáveis qualitativas foram representadas por frequência absoluta (n) e relativa (%). Para a análise da possível associação dessas variáveis com os fatores de interesse, foi utilizado o teste de qui-quadrado (χ2).

Níveis descritivos (p) inferiores a 0,05 foram considerados estatisticamente significantes. Todos os testes utilizados foram executados pelo programa estatístico SAS, versão 9.4 (SPSS, Cary, NC, EUA)18,19.

Os pesquisadores se comprometeram a manter o sigilo e confidencialidade dos dados dos participantes.


RESULTADOS

Durante o período do estudo, estiveram internados na enfermaria pediátrica 436 pacientes, e um total de 135 pacientes (30,9%) foram considerados elegíveis para uma avaliação paliativista. Dentre o total de pacientes, houve uma prevalência do sexo masculino (58,3%), e de internações em caráter de urgência (59,9%). A média de idade entre os pacientes internados no período foi de 4.5 anos (mediana 3.0).

Dentre aqueles pacientes considerados elegíveis para uma avaliação paliativista, houve um total de 23 reinternações (17%) durante o período do estudo, conforme exposto na Tabela 1. Neste grupo, também houve prevalência de pacientes do sexo masculino (54,8%), e de internações em caráter de urgência (51,9%). Estes pacientes tiveram uma média de idade de 4.9 anos, conforme exposto na Tabela 2.







A faixa etária de lactente foi a mais frequentemente internada na enfermaria durante o período do estudo, com um total de 182 pacientes (41,7%). A média de internações por mês foi de 107, e o mês com o maior número de internações foi julho.

Dentre as patologias implicadas na determinação de elegibilidade para cuidado paliativo dos pacientes internados, destacou-se o quadro neurológico como a mais frequente durante o período de estudo, com 42 pacientes (31,1%), conforme exposto na Tabela 3.




Dentre os parâmetros avaliados, apresentaram valores de p<0,05 e, portanto, foram considerados estatisticamente relevantes, os seguintes, conforme apresentados na Tabela 4.




DISCUSSÃO

O presente estudo representa um enfoque inicial e superficial de um tema amplo e de difícil abordagem dentro dos serviços de saúde, sobretudo no que diz respeito ao cuidado do paciente pediátrico portador de doença crônica ou ameaçadora da vida. Apesar disso, a OMS sustenta que uma abordagem paliativista deve ser prestada a todo paciente pediátrico com alguma condição clínica que limite sua qualidade ou expectativa de vida, de acordo com os recursos e peculiaridades locais8,11.

Há poucos dados de literatura nacional disponíveis para fins de comparação do perfil epidemiológico das internações pediátricas em hospitais universitários do país. Um estudo catarinense realizado em 2001, observou uma tendência à internação mais frequente de lactentes, assim como demonstrado por este estudo20. Tal resultado pode ser parcialmente atribuído à sazonalidade dos vírus respiratórios que ocorre, no estado de São Paulo, entre os meses de março e julho, no entanto implica em casos sintomáticos de desconforto respiratório com necessidade de internação hospitalar em lactentes entre o outono e a primavera, período incluído neste estudo21,22.

Este trabalho demonstrou que um volume considerável de pacientes - cerca de 30% do total de internados na enfermaria - apresentam condições que os tornam elegíveis para uma avaliação paliativista. Parente et al. (2017)23 avaliaram o perfil clínico e epidemiológico dos pacientes internados na enfermaria de pediatria de um hospital universitário no Ceará entre agosto e dezembro de 2015; tal estudo demonstrou um total de 48,1% dos pacientes como portadores de doenças crônicas, e 25,2% dos pacientes com histórico de internações prévias. Um estudo semelhante realizado em 2008, no Rio de Janeiro, incluindo pacientes internados em 4 hospitais do Estado trouxe dados similares – 47,6% de pacientes portadores de doenças crônicas, com um total de 35,3% com antecedente de reinternações24. Tais dados são semelhantes àqueles demonstrados por este estudo no que diz respeito ao perfil clínico de um hospital de alta complexidade, além do grande número de reinternações dos pacientes avaliados, demonstrando uma clara tendência ao seguimento de pacientes cronicamente enfermos por tais serviços, assim como da considerável prevalência de pacientes portadores de doenças crônicas na faixa etária pediátrica23,24.

Neste trabalho, os pacientes elegíveis para cuidados paliativos foram mais frequentemente internados em caráter de urgência, por intercorrências agudas ou descompensações da doença de base, o que implica em piora na qualidade de vida, aumento do sofrimento pessoal e familiar, além de um incremento substancial nos custos de saúde para o Estado. Fica claro, diante do exposto, que o estabelecimento de um cuidado horizontal e linear, que aborde o cuidado ao paciente crônico em ambiente hospitalar e ambulatorial, poderia implicar em maior sucesso na atenção à saúde de tais pacientes6,7,9.

Demonstrou-se, ainda, que os pacientes considerados elegíveis para uma avaliação paliativista internam eletivamente com mais frequência do que aqueles não elegíveis para a realização de procedimentos cirúrgicos ou investigações associadas às doenças de base. Tal dado corrobora com a literatura vigente, no que diz respeito às peculiaridades na assistência do paciente portador de doença crônica, no caráter longitudinal e multidisciplinar do seu cuidado9,10,15,16. Além disso, o predomínio de pacientes acometidos por doenças neurológicas dentre os elegíveis evidencia a tendência no perfil de assistência do serviço de pediatria deste hospital.

Dentre as possíveis limitações deste trabalho, destacam-se o curto tempo de pesquisa; o fato de o hospital em questão tratar-se de unidade de atendimento de alta complexidade, sendo referência para o cuidado de fibrose cística, doença cardíaca congênita, via aérea pediátrica, nefrologia e neurocirurgia, o que torna o perfil de pacientes internados substancialmente diferente da média das enfermarias de pediatria do país; além disso, os pacientes foram avaliados de forma superficial, levando em conta apenas sua condição de base como critério para determinação da elegibilidade. Não foram levados em consideração eventos agudos que potencialmente alterem o prognóstico do paciente na determinação de elegibilidade, como, por exemplo, meningite ou TCE grave, o que pode ter subestimado a quantidade de pacientes potencialmente elegíveis para avaliação paliativista durante o período do estudo.

Para fortalecer e promover um cuidado adequado ao paciente pediátrico portador de doença crônica ameaçadora da vida no Brasil, novos estudos são necessários. O tema é desafiador, no entanto a discussão se faz cada vez mais necessária para o aprimoramento da atenção ao paciente pediátrico em todas as esferas de cuidado, levando em consideração a individualidade de cada paciente em todos os aspectos do seu processo de adoecimento e morte25.


REFERÊNCIAS

1. Prata PR. The epidemiologic transition in Brazil. Cad Saúde Pública. 1992 Jun;8(2):168-75.

2. Brito F. Transição demográfica e desigualdades sociais no Brasil. Rev Bras Estud Popul. 2008 Jun;25(1):5-26.

3. Schramm JMA, Oliveira AF, Leite IC, Valente JG, Gadelha AMJ, Portela AMC, et al. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Ciênc Saúde Colet. 2004 Dez;9(4):897-908.

4. Barreto ML, Carmo E. Mudanças em padrões de morbi-mortalidade: conceitos e métodos. In: Monteiro C, org. Velhos e novos males da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec; 1995. p. 17-30.

5. Goldani MZ, Mosca PRF, Portela AK, Silveira PP, Silva CH. Impacto da transição demográfico-epidemiológica na saúde da criança e do adolescente do Brasil. Rev HCPA. 2012;32(1):49-57.

6. Brito MA, Soares EO, Rocha SS, Figueiredo MLF. Cuidados paliativos em pediatria – um estudo reflexivo. Rev Enferm UFPE. 2015 Mar;9(3):7155-60.

7. Himelstein BP, Hilden JM, Boldt AM, Weissman D. Pediatric palliative care. N Engl J Med. 2004 Abr;350(17):1752-62.

8. Moritz RD, Lago PM, Souza RP, Silva NB, Meneses FA, Othero JCB, et al. Terminalidade e cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2008;20(4):422-8.

9. Collins JJ, Campbell K, Edmonds W, Frost J, Mherekumombe MF, Samy N. Care of children with advanced illness. In: Cherny N, FallonM, Kaasa S, Portenoy RK, Currow DC, eds. Oxford textbook of palliative medicine. Oxford: Oxford University Press; 2015.

10. Hauer J, Poplack DG, Armsby C. Pediatric palliative care [Internet]. Boston: UpToDate; 2022; [acesso em 2018 Set DIA]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/pediatric-palliative-care?search=pediatric%20palliative%20care&source=search_result&selectedTitle=1~19&usage_type=default&display_rank=1

11. World Health Organization (WHO). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2a ed. Geneva: WHO; 2002.

12. Diniz D. Quando a morte é um ato de cuidado: obstinação terapêutica em crianças. Cad Saúde Pública. 2006;22(8):1741-8.

13. Pessini L. Distanásia: até quando investir sem agredir? Rev Bioét. 1996;4(1):31-43.

14. Miller-Smith L, Lantos JD, Pope TM, Arnold RM, Givens J. Palliative care: medically futile and potentially innapropriate therapies of questionable benefit [Internet]. Misouri: UpToDate; 2020; [acesso em 2018 Set DIA]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/palliative-care-medically-futile-and-potentially-inappropriate-therapies-of-questionable-benefit

15. Fraser J, Harris N, Berringer AJ, Prescott H, Finlay F. Advanced planning in children with life-limiting conditions – the Wishes Document. Arch Dis Child. 2010 Fev;95(2):79-82.

16. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Departamento Científico de Medicina da Dor e Cuidados Paliativos. Cuidados paliativos pediátricos: o que são e qual sua importância? Cuidando da criança em todos os momentos. Rio de Janeiro: SBP; 2017.

17. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Pediatria ambulatorial – resgate do pediatra geral. Rio de Janeiro: SBP; 2004.

18. Conover WJ. Practical nonparametric statistics. 3ª ed. New York: John Wiley & Sons Inc.; 1999.

19. Fleiss JL. Statistical methods for rates and proportions. 2a ed. New York: John Wiley & Sons Inc.; 1981.

20. Silva ACO. Perfil nutricional das crianças internadas na enfermaria geral de pediatria do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina [dissertação]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); 2001.

21. Ministério da Saúde (BR). Nota técnica conjunta no 05/2015 CGSCAM/DAPE/SAS/MS, CGAFME/DAF/SCTIE/MS e CGDT/DEVIT/SVS/MS. Sazonalidade do vírus sincicial respiratório no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015.

22. Salomão Junior JB, Gardinassi LGA, Simas PVM, Bittar CO, Souza FP, Rahal P, et al. Vírus respiratório sincicial humano em crianças hospitalizadas por infecções agudas das vias aéreas inferiores. J Pediatr (Rio J). 2011 Jun;87(3):219-24.

23. Parente JSM, Silva FRA. Perfil clínico-epidemiológico dos pacientes internados na clínica pediátrica em um hospital universitário. Rev Med UFC. 2017;57(1):10-4.

24. Duarte JG, Gomes SC, Pinto MT, Gomes MASM. Perfil dos pacientes internados em serviços de pediatria no município do Rio de Janeiro: mudamos? Physis. 2012;22(1):199-214.

25. Lindley LC, Nageswran S. Pediatric primary care involvement in end-of-life care for children. Am J Hosp Palliat Care. 2017 Mar;34(2):135-41.










Universidade Estadual de Campinas, Pediatria - Campinas - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Giulia Cardoso Masotti
Universidade Estadual de Campinas
Cidade Universitária Zeferino Vaz - Barão Geraldo
Campinas - SP. Brasil. CEP: 13083-970
E-mail: giuliamasotti@gmail.com

Data de Submissão: 28/06/2020
Data de Aprovação: 17/07/2020