Relato de Caso
-
Ano 2022 -
Volume 12 -
Número
4
Manifestações neurológicas da infeção por influenza em adolescente
Neurological manifestations of influenza a infection in an adolescent
Catarina Neto Viveiros1; Ana Luisa Correia1; Raquel Rocha2; Ana Paula Aguiar1; Marco Pereira1
RESUMO
OBJETIVO: As complicações neurológicas associadas à infecção pelo vírus influenza são raras. O espectro clínico é variável. Descreve-se o caso de uma adolescente com febre e alterações neurológicas.
DESCRIÇÃO DO CASO: Adolescente de 17 anos com febre, alteração do estado de consciência e convulsões. Os exames de imagem e a análise do líquido cefalorraquidiano não mostraram alterações de relevo. O aspirado da nasofaringe foi positivo para influenza B. Foi assumido o diagnóstico de uma possível encefalite a influenza B.
COMENTÁRIOS: A encefalite associada à infeção por influenza deve ser considerada quando estamos perante um doente com sintomatologia respiratória e alteração do estado de consciência, se o contexto epidemiológico for apropriado. Nesta entidade geralmente não há identificação do vírus no sistema nervoso central e a investigacão imagiológica não demonstra alterações, constituindo-se um desafio diagnóstico.
Palavras-chave:
Adolescente, Influenza, Encefalite, Transtornos da Consciência.
ABSTRACT
OBJECTIVE: Neurological complications connected to influenza are rare. We report a case of a 17-year-old teenager with fever and neurological manifestations.
CASE REPORT: 17-year-old teenager with altered mental status and seizures. Imaging investigation and cerebrospinal fluid analysis did not show relevant alterations. The nasopharyngeal swab was positive for influenza B virus. We assumed a possible case of influenza B encephalitis.
COMMENTS: Encephalitis associated with influenza infection should be considered when respiratory symptoms and altered mental status are present, if the epidemiological context is appropriate. In influenza encephalopathy, viral invasion of the central nervous system is usually not found and imaging investigation is often normal, constituting a diagnostic challenge.
Keywords:
Adolescent, Influenza, Encephalitis, Consciousness Disorders.
INTRODUÇÃO
A infecção por influenza geralmente é autolimitada e causa sintomas respiratórios leves, embora possa estar associada a múltiplas complicações1-5. Complicações neurológicas associadas à influenza foram observadas em uma taxa de 1 a 4 por 1.000.000 pessoas por ano2. É difícil estimar a real incidência dessas complicações, pois não há uniformidade nos critérios diagnósticos e supõe-se que sua incidência esteja provavelmente subestimada2-8.
Embora os vírus influenza A e B possam estar associados a complicações neurológicas, a maioria dos estudos se concentra nas complicações associadas à influenza A3-5.
As manifestações neurológicas apresentam grande variabilidade clínica: desde convulsões febris até quadros neurológicos graves1-7,9,10,11. Na literatura, uma das complicações neurológicas mais frequentemente descritas são as convulsões, seguidas da encefalopatia1,2,6,11.
A causalidade entre complicações neurológicas e infecção por influenza é difícil de estabelecer. A avaliação por imagem, a análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) e a eletroencefalografia são normais na maioria dos casos2,5,7,8,9.
Anormalidades citoquímicas, quando presentes, tendem a limitar-se a leve pleocitose liquórica com predominância de leucócitos mononucleares5. Anormalidades de neuroimagem foram descritas, incluindo anormalidades inespecíficas do sinal T2 no esplênio e outras áreas, edema cerebral focal e generalizado2. Alguns casos graves exibem lesões cerebrais distribuídas simetricamente multifocais da substância branca cerebral do tálamo, tronco cerebral, cerebelo e parênquima11.
RELATO DE CASO
Descrevemos o caso de uma jovem de 17 anos, previamente hígida, sem medicação regular. Foi atendida em serviço de emergência após três breves episódios de convulsões tônicas-clônicas generalizadas. Álcool, substâncias ilícitas ou abuso de medicamentos foram negados, bem como viagens recentes. Referia cefaleia frontal com 4 dias de evolução, associada a dor ocular bilateral, foto e fonofobia. Astenia, tosse seca, rinorreia e odinofagia também foram referidos.
À admissão apresentava-se febril (38,7°C) e hemodinamicamente estável, com oximetria de pulso normal. Apresentava razoável estado geral e palidez cutânea. A ausculta pulmonar era normal. O exame neurológico revelou escala de coma de Glasgow 15, mas ela estava letárgica e bradipsíquica. Verbalizava sem alterações formais da fala e não apresentava anormalidades oculomotoras. Apresentava fenômeno de Bell bilateral, sugerindo diplegia facial, além de fraqueza muscular proximal e distal. Havia reflexos osteotendinosos não responsivos nos membros superiores, mas presentes nos membros inferiores. Sinais meníngeos estavam ausentes. Não apresentava outras alterações relevantes ao exame físico.
Achados complementares incluíram hemograma completo normal, bioquímica (incluindo lactato), gasometria venosa e exame toxicológico de urina negativo. Foi obtido swab nasofaríngeo para pesquisa de vírus (influenza A e B, vírus respiratório sincicial). A radiografia de tórax revelou reforço hilar bilateral. A tomografia axial computadorizada de crânio foi normal. A análise do LCR não revelou pleocitose ou níveis elevados de proteína. O teste de RT-PCR para influenza não foi realizado no LCR.
Devido à piora progressiva dos sintomas neurológicos (redução do estado de consciência), o paciente foi internado em unidade de terapia intensiva (UTI). Os seguintes diagnósticos diferenciais foram considerados: variante de Miller Fisher da síndrome de Guillain-Barré, infecção bacteriana ou viral do sistema nervoso central (SNC). Foram iniciados aciclovir endovenoso (10 mg/kg), ceftriaxona (2g/dia), azitromicina (500 mg/dia) e imunoglobulina (2g/kg).
Durante sua internação na UTI, a paciente apresentou um episódio de retenção urinária com necessidade de cateterismo e um episódio de disfagia líquida. Eletroencefalograma (EEG), ressonância magnética (RM) de crânio e neuro-eixo não revelaram achados anormais.
Aproximadamente 24h depois, houve uma recuperação neurológica progressiva. O vírus Influenza B foi identificado por RT-PCR no swab nasofaríngeo, sem coinfecção com outros vírus.
A medicação anterior foi suspensa e o oseltamivir (75 mg 12/12h) foi tomado por cinco dias. Dada a evolução clínica favorável, teve alta ao final do tratamento, com exame neurológico normal.
DISCUSSÃO
A patogênese das manifestações neurológicas associadas à influenza permanece incerta7,9,11,13. O fato de esses vírus serem raramente identificados no LCR e não apresentarem tropismo aparente pelo sistema nervoso central reforça a hipótese da existência de mais de um mecanismo fisiopatológico levando a um amplo espectro de manifestações neurológicas6. Postula-se que o processo imunológico que precede as manifestações neurológicas pode ser dividido em duas categorias. Na primeira, ocorre uma resposta inflamatória sistêmica que provoca uma desregulação das citocinas inflamatórias, que, juntamente com a imunidade inata, são responsáveis pelas manifestações agudas (convulsões, encefalopatia, alterações agudas do movimento)6,7. A segunda é uma resposta adaptativa da imunidade celular, que está associada a complicações como a síndrome de Guillain-Barré ou mielite transversa6.
Neste relato, assumimos um possível caso de encefalite por influenza B, que pode causar um amplo espectro de manifestações clínicas, desde confusão mental até estado comatoso1,2,9,13. De acordo com a Declaração de Consenso do International Encephalitis Consortium 20133, a encefalite é definida como inflamação do parênquima cerebral associada a disfunção neurológica (tabela 1). Um possível caso de encefalite é definido pela presença de 1 critério maior e 2 critérios menores3,10. Nosso paciente apresentava estado mental alterado há 24h sem outra causa identificada (critério maior). Além disso, apresentava febre e convulsões gerais (critérios menores), além de infecção por influenza B confirmada laboratorialmente. Os achados neurológicos iniciais, o curso clínico e a investigação (identificação de influenza B no swab nasofaríngeo, análise liquórica normal, EEG e ressonância magnética) excluíram outros diagnósticos: variante de Miller Fisher da síndrome de Guillain-Barré, infecção bacteriana ou outra infecção viral do SNC.
Dos poucos casos descritos na literatura de encefalite associada à influenza B, destacamos o caso de uma adolescente de 16 anos com quadro de convulsão, confusão, nistagmo e incoordenação motora, iniciada 5 dias após infecção de vias aéreas superiores. A análise do líquor e a ressonância magnética de CE não mostraram alterações. O EEG revelou atividade lenta generalizada sem atividade epileptiforme. Infecção por influenza B foi confirmada por RT-PCR e encefalopatia associada a influenza B foi diagnosticada10.
Em estudo retrospectivo analisando as complicações neurológicas associadas à influenza em crianças hospitalizadas, constatou-se que a encefalopatia é uma manifestação rara dessa infecção e que a maioria dos pacientes não apresenta alterações no líquor ou nos exames de imagem. De 842 crianças com infecção por influenza, 153 morreram devido a complicações da influenza e 6% dessas mortes foram atribuídas à encefalopatia12.
Quanto ao tratamento, não é consensual se a terapia antiviral previne o aparecimento de complicações neurológicas. Existem estudos que mostram redução da morbimortalidade por influenza em pacientes tratados com inibidores da neuraminidase2,4,5. Portanto, recomenda-se iniciar tratamento imediato com oseltamivir oral ou zanamivir inalatório, em pacientes hospitalizados com infecções por influenza. Apresenta maior eficácia quando administrado nas primeiras 48 horas da doença4. Os inibidores de neuraminidase adamantanos (amantadina e rimantadina) não são recomendados porque todos os vírus influenza sazonais são resistentes a esses agentes4. São também necessárias medidas de apoio6.
Com este caso, pretendemos alertar outros médicos para o facto de que quando um doente apresenta febre e alteração do estado mental ou outras manifestações neurológicas, a infeção por gripe deve ser considerada, se o contexto epidemiológico for adequado.
REFERÊNCIAS
1. Manjunatha N, Math SB, Kulkarni GB, Chaturved SK. The neuropsychiatric aspects of influenza/swine flu: A selective review. Ind Psychiatry J. 2011 Jul;20(2):83-90
2. Ekstrand JJ. Neurologic Complications of Influenza. Semin Pediatr Neurol. 2012 Sep;19(3):96–100.
3. Popescu CP, Florescu SA, Lupulescu E, Zaharia M, Tardei G, Lazar M, et al. Neurologic Complications of Influenza B Virus Infection in Adults, Romania. Emerg Infect Dis. 2017 Apr;23(4):574-581
4. Paules C, Subbarao K. Influenza. Lancet 2017 Aug 12;390 (10095):697–708.
5. Newland JG, Romero JR, Varman M, Drake C, Holst A, Safranek T, et al. Encephalitis Associated with Influenza B Virus Infection in 2 Children and a Review of the Literature. Clin Infect Dis. 2003 Apr 1;36 (7):87-95.
6. Goenka A, Michael BD, Ledger E, Hart IJ, Absoud M, Chow G, et al. Neurological Manifestations of Influenza Infection in Children and Adults : Results of a National British Surveillance Study. Clin Infect Dis. 2014 Mar;58(6):775-84
7. Gallagher J. Case 1: Altered mental status – a state of confusion. Paediatr Child Health. 2010 May;15(5):263–6.
8. Mccullers JA, Facchini S, Chesney PJ, Webster RG. Influenza B Virus Encephalitis. Clin Infect Dis. 1999 Apr;28(4):898–900.
9. Akins PT, Belko J, Uyeki TM, Axelrod Y, Lee kk, Silverthrn. H1N1 Encephalitis with Malignant Edema and Review of Neurologic Complications from Influenza. Neurocrit Care. 2010 Dec; 12(3):396–406
10. Reyes C, Miranda S, Fica A, Navarrete M. Encefalitis por vírus influenza B em um paciente adulto. Reporte de caso. Rev Med Chile 2019 Jul; 147 (7): 922-927
11. Wang GF, Li W, Li K. Acute encephalopathy and encephalitis virus infection. Curr Opin Neurol 2010 Jun, 23(3):305-311
12. Newland JG, Laurich VM, Rosequist AW, Heydon K, Licht DJ, Keren R, Zaoutis TE. Neurologic complications in children Hospitalized with Influenza: Characterististics, Incidence, and Risk Factors. J Pediatr 2007 Mar; 150 (3):306-10
1. Hospital Pedro Hispano, Pediatria - Matosinhos - Porto - Portugal
2. Hospital Pedro Hispano, Neurologia - Matosinhos - Porto - Portugal
Endereço para correspondência:
Catarina Neto Viveiros
Hospital Pedro Hispano
Rua de Dr. Eduardo Torres, 4464-513
Sra. da Hora, Portugal. CEP: 21941-912
E-mail: catarinanetoviveiros@gmail.com
Data de Submissão: 01/11/2020
Data de Aprovação: 07/03/2021