Relato de Caso
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Ano 2023 -
Volume 13 -
Número
1
Peritonite meconial relacionada à doença hepática materna: relato de caso
Meconium peritonitis and maternal liver disease: a case report
Alana Ferraz Diniz; Juliana Coelho Xavier; Tarciana Mendonça de Souza Almeida
RESUMO
A peritonite meconial tem associação com fibrose cística, infecções congênitas, doenças intestinais e um número cada vez maior de relatos a associam com doença hepática materna. Esse estudo busca relatar um caso de peritonite meconial associada à doença hepática materna e revisar a literatura sobre o tema. Apresentamos recém-nascido pré-termo, masculino, pesando 2595g, admitido na Unidade de Cuidados Intermediários Neonatal com ultrassonografias obstétricas a partir de 31 semanas e 3 dias mostrando calcificações de variados tamanhos em todo o abdome fetal. Genitora portadora de hepatite autoimune e colangite esclerosante. O raio-X de abdome pós-natal mostrou calcificações em fígado e goteira parietocólica direita e ultrassonografia de abdome evidenciou calcificações grosseiras peritoneais nas cápsulas hepática e esplênica e espaço de Morrison, além de calcificações na bolsa escrotal direita.
Palavras-chave:
Peritonite, Colangite Esclerosante, Hepatite.
ABSTRACT
Meconium peritonitis has been associated with cystic fibrosis, congenital infections, and bowel disease. A growing number of reports have also associated it with maternal liver disease. This report describes the case of a preterm newborn with meconium peritonitis born from a woman with liver disease and presents a review of the literature on the subject. A male preterm newborn weighing 2595g was admitted to the Neonatal Intermediate Care Unit due to an obstetric ultrasound scan performed at 31 weeks and 3 days of gestation showing calcifications of various sizes throughout his abdomen. His mother had autoimmune hepatitis and sclerosing cholangitis. Postnatal abdominal x-ray images showed calcifications in the liver and right paracolic gutter and abdomen ultrasound scans showed large peritoneal calcifications in the hepatic and splenic capsules and in the pouch of Morrison, in addition to calcifications in the right scrotum.
Keywords:
Peritonitis, Cholangitis, Sclerosing, Hepatitis.
INTRODUÇÃO
A peritonite meconial surge da perfuração do intestino fetal e da consequente inflamação química asséptica do peritônio devido à presença de mecônio e enzimas digestivas na cavidade peritoneal, resultando em granulomas e calcificações1. Tem frequência estimada de 1 a cada 30.000 nascidos e nos últimos anos, com o avanço do diagnóstico e do manejo precoce, houve um aumento na incidência da doença. Na década de 1950, a taxa de mortalidade encontrava-se acima de 80%, no entanto, com a melhora da assistência neonatal, essa taxa apresentou queda vertiginosa2,3. Existe associação dessa patologia com fibrose cística, com infecções fetais por citomegalovírus, toxoplasmose, herpes simples e parvovírus B e com doenças intestinais subjacentes, tais como atresia intestinal, volvo, hérnia intestinal, intussuscepção, divertículo de Meckel e insuficiência vascular1,3,4.
Um número cada vez maior de relatos na literatura tem associado a peritonite meconial com a presença de doença hepática materna, sendo esta aguda ou crônica, de etiologia autoimune, medicamentosa, congênita ou infecciosa. As primeiras descrições datam da década de 1990 e nos anos seguintes, os relatos se somaram, sendo hoje a hepatopatia materna vista como um fator de risco para tal condição neonatal. Casos de atresia biliar, hepatite A, hepatite autoimune, hepatite B aguda e crônica e hepatite medicamentosa maternos já foram associados com peritonite meconial no neonato5-10.
Devido à raridade da peritonite meconial e, sobretudo, associação com doença hepática materna, esse estudo busca contribuir com a literatura sobre o tema, permitindo o reconhecimento cada vez maior dessa patologia.
RELATO DE CASO
Gestante G2P1A0 (filha anterior saudável), portadora de hepatite autoimune e colangite esclerosante confirmados por biópsia hepática em 2018, em uso de prednisona, azatioprina, colestiramina e ácido ursodesoxicólico, iniciou pré-natal em serviço de referência de Pernambuco. Realizou ultrassonografias obstétricas com 10 semanas e 3 dias e 25 semanas que foram sem alterações. Com 31 semanas e 3 dias de gestação, realizou nova ultrassonografia obstétrica que evidenciou calcificações de variados tamanhos, de até 8mm, em todo o abdome fetal, inclusive no diafragma, abaixo do coração. Genitora negava intercorrências nas semanas anteriores. Feto mantinha boa vitalidade, sendo optado por vigilância e acompanhamento do caso. Os achados persistiram nas ultrassonografias realizadas com 33 semanas e 4 dias de gestação e no dia do parto. Apresentou durante a gestação VDRL não reagente, teste rápido para HIV negativo, sorologias para hepatite B e C não reagentes, toxoplasmose IgG e IgM não reagentes, herpesvírus simples I e II IgG reagente e IgM não reagente. Evoluiu para parto transpelviano com 36 semanas e 2 dias pelo ultrassom do primeiro trimestre, com bolsa rota de 23h. Recebido recém-nascido masculino, pesando 2595g, Apgar 8 e 9 no primeiro e quinto minuto, comprimento, perímetro cefálico e perímetro torácico de 46, 33,7 e 30 centímetros respectivamente. O menor evoluiu com desconforto respiratório precoce na sala de parto, sendo colocado no suporte de oxigênio por HALO e admitido na Unidade de Cuidados Intermediários Neonatal.
Realizou raio-X de abdome precocemente que mostrou calcificações em fígado e goteira parietocólica direita (Figura 1) e ultrassonografia de abdome com 48h de vida que evidenciou calcificações grosseiras peritoneais na cápsula hepática e esplênica e espaço de Morrison, além de calcificações na bolsa escrotal direita. Adicionalmente, realizou ultrassom transfontanela, que mostrou parênquima cerebral com textura preservada, ausência de calcificações, dilatação ventricular ou hemorragia intracraniana. Foi levantada a hipótese de peritonite e periorquite meconial secundárias à doença hepática materna.
Figura 1. Raio-X de abdome evidenciando calcificações.
O menor evoluiu bem, com desmame de oxigênio ainda no primeiro dia de vida, eliminação precoce de mecônio, sem distensão abdominal ou demais sinais de obstrução ou perfuração intestinal. Desde o nascimento permaneceu em venóclise com cota hídrica e eletrólitos basais estabelecidos para a idade, tendo iniciado dieta por sonda orogástrica com 51 horas de vida com boa aceitação e progressão rápida para aleitamento materno exclusivo. Coletado teste do pezinho no quinto dia de vida que foi negativo para doença fibrocística (dosagem de tripsina imunorreativa de 08/05/2019 de 15,7ng/ml). Demais testes de triagem neonatal normais. Recebeu alta no sexto dia de vida para seguimento ambulatorial. Foi submetido à hernioplastia inguinal direita no segundo mês de vida e realizou acompanhamento no ambulatório de puericultura no serviço de referência durante os primeiros oito meses de vida, apresentando bom crescimento e desenvolvimento. Como menor evoluindo bem, sem quaisquer anormalidades, a equipe assistente optou por não repetir os exames de imagem para a vigilância das calcificações durante o seguimento.
DISCUSSÃO
O diagnóstico de peritonite meconial pode ser dado ainda no período de vida intrauterino através de achados ultrassonográficos. Tais achados podem ser múltiplos e variáveis, sendo o mais comum a presença de calcificações intra-abdominais, seguidos de polidrâmnio, ascite fetal e dilatação intestinal1. Se as calcificações forem finamente distribuídas, pode ser de difícil visualização pela ultrassonografia e, nestes casos, a tomografia computadorizada pós-natal e radiografia simples de abdome podem ser necessárias11. No caso apresentado, as calcificações foram identificadas em ultrassonografia pré-natal de 31 semanas e 3 dias, sendo as ultrassonografias anteriores, as quais foram realizados no mesmo serviço, embora com operadores diferentes, sem alterações. Os achados de calcificações foram ainda corroborados por raio-X e ultrassonografia de abdome pós-natais.
As manifestações clínicas são dependentes da idade gestacional e do desfecho da perfuração intestinal: se fechamento espontâneo ou não2. A depender delas e da condição geral do paciente, parto prematuro e estratégias cirúrgicas podem ser necessárias, embora a maior parte dos casos evolua com melhora espontânea1,2. Um fator importante para o manejo desses pacientes é o encaminhamento para serviços de referência em assistência obstétrica e neonatal de alto risco11. No paciente em questão, foi identificado boa vitalidade, com crescimento fetal adequado, sendo optado por vigilância das calcificações.
Existem poucos relatos na literatura de peritonite meconial relacionada à doença hepática materna e o exato mecanismo ainda é desconhecido. A presença crescente de relatos sugere uma possível associação5. Embora não seja amplamente aprovado, existem estudos mostrando a eficácia e a segurança na gravidez do uso do ácido ursodesoxicólico, sobretudo no tratamento da colestase intrahepática gravídica ou da cirrose biliar primária, e da colestiramina, sendo seu efeito adverso mais temido a deficiência de vitamina K e eventos hemorrágicos fetais12-14. O uso de azatioprina na gravidez ainda é objeto de debate uma vez que o feto carece da enzima necessária para transformação da azatioprina em sua forma ativa, exercendo teoricamente um efeito protetor fetal, mas existem relatos de malformações congênitas em estudos com animais. Já o uso de esteroides durante a gravidez, mais amplamente utilizado, devido aos seus efeitos na maturação pulmonar fetal, parece também não estar associado com perfuração intestinal pré-natal10.
A hipótese de peritonite meconial relacionada à doença hepática materna foi assim levantada a partir de sorologias da genitora não reagentes e menor sem demais evidências de infecção congênita, apresentou triagem para fibrose cística negativa, além de ter ocorrido eliminação precoce de mecônio semdesenvolvimento posterior de sintomatologia típica da doença fibrocística, com evolução clínica e exames de imagem não compatíveis com doença intestinal primária e falta de evidência científica de correlação entre perfuração intestinal com o uso de azatioprina, prednisona, ácido ursodesoxicólico ou colestiramina10,12.
A realização de exame contrastado pós-natal é recomendada antes de iniciar alimentação enteral para exclusão de perfurações persistentes. Em alguns serviços, para reduzir o risco de peritonite bacteriana, a dieta oral não é iniciada até que a possibilidade de perfuração intestinal ao nascimento seja excluída por tomografia computadorizada e radiografia, sendo tal fator apontado como determinante para redução da mortalidade11. No paciente do relato, optou-se por manter dieta enteral zero até realização de radiografia e ultrassonografia pós-natal, sendo descartada a possibilidade de perfuração intestinal persistente.
É sabido também que a peritonite meconial pode afetar a região inguinal através do processo vaginal, levando à predisposição à formação de hérnias inguinais. As manifestações inguinoescrotais mais comuns são hidrocele e massa escrotal. A presença de hérnia inguinal é a mais rara forma de apresentação. O mecônio atravessa para a região testicular através do processo vaginal patente, levando a calcificações e granulomas locais15; o fato aconteceu no caso relatado, sendo inclusive um fator de alerta no acompanhamento dessas crianças.
A peritonite meconial, sobretudo, a associada com doença hepática materna, é uma doença rara e os relatos são ainda mais escassos. Um diagnóstico precoce, a correta identificação etiológica e o encaminhamento para serviços de referência são fatores redutores de mortalidade e importantes no enfretamento da doença.
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Hospital das Clínicas - EBSERH - UFPE, Programa de Residência Médica em Pediatria - Recife - Pernambuco - Brasil
Endereço para correspondência:
Juliana Coelho Xavier
Hospital Das Clínicas - EBSERH
Av. Prof. Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária
Recife/PE, 50670-901
juliana_coelho29@hotmail.com
Data de Submissão: 08/10/2020
Data de Aprovação: 14/10/2020