ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 1

Evento tromboembólico em neonato de mãe com COVID-19

A thromboembolic event in an infant born from a mother with COVID-19

RESUMO

INTRODUÇÃO: O nascimento prematuro é uma das principais complicações perinatais da infecção materna por SARS-CoV-2.
RELATO DE CASO: Recém-nascida prematura, filha de mãe com quadro grave de COVID-19, que apresentou evento tromboembólico no primeiro dia de vida e evoluiu com encefalopatia hipóxico-isquêmica.
DISCUSSÃO: Realizada investigação acerca da causa do quadro, manejo com enoxaparina e curativo com colagenase, ainda assim não sendo possível evitar a perda da região auricular. Foi encontrada evidência imuno-histoquímica da proteína Spike-19 na parte fetal placentária. Os testes RT-PCR para SARS-CoV-2 no swab orofaríngeo foram negativos. A infecção materna por coronavírus deve ser incluída no diagnóstico diferencial como causa de evento tromboembólico no período neonatal. 

Palavras-chave: idades de Terapia Intensiva Neonatal, Recém-Nascido, COVID-19, Necrose

ABSTRACT

INTRODUCTION: Premature birth is one of the main perinatal complications of maternal SARS-CoV-2 infection.
CASE REPORT: Premature newborn, the daughter of a mother with a severe condition of COVID-19, who presented a thromboembolic event on the first day of life and evolved with hypoxic-ischemic encephalopathy.
DISCUSSION: Investigation was carried out on the cause of the framework, management with enoxaparin and curative with collagenase, even though it was not possible to avoid the loss of the auricular region. Immunohistochemical evidence of Spike-19 protein was found in the fetal placental part. RT-PCR tests for SARS-CoV-2 without oropharyngeal swab were negative. A maternal coronavirus infection should be included in any differential diagnosis as a cause of a thromboembolic event in the neonatal period.

Keywords: Intensive Care Units, Neonatal, Infant, Newborn, COVID-19, Necrosis


INTRODUÇÃO

A pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) tornou-se um grave problema de saúde pública mundial, com sérios impactos em todas as áreas da Medicina, dentre elas, a Neonatologia. O conhecimento das repercussões maternas e neonatais da doença causada pelo SARS-CoV-2 na gestação ainda é limitado1. A possibilidade de transmissão vertical tem sido uma preocupação significativa em mulheres grávidas sintomáticas com alto nível de viremia após o início dos sintomas2.

Uma das preocupações mais relevantes está relacionada à hipercoagulabilidade e suas complicações tromboembólicas3,4. Sabe-se que no período neonatal os eventos tromboembólicos podem ser multifatoriais e surgem com mais frequência devido à exposição do recém-nascido a inúmeros fatores de risco como a prematuridade, asfixia perinatal, sepse, doenças cardíacas, diabetes materno e presença de cateter vascular5,6.

Com isso, é importante a investigação para determinar se os fetos filhos de mães com COVID-19 podem estar em risco para eventos tromboembólicos e suas complicações. É relatado o caso de um recém-nascido, filho de mãe com COVID-19, com quadro grave de encefalopatia hipóxica-isquêmica e com presença de área de necrose em região auricular no primeiro dia de vida. O presente relato foi aprovado no Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o parecer número 5.019.518.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, nascida de parto cesariana com 35 semanas + 5 dias de idade gestacional, pesando 2.620g. Mãe diabética, obesa, sem história de coagulopatias ou outras intercorrências no pré-natal, com quadro clínico grave necessitando de cuidados intensivos devido infecção pelo coronavírus. Nasceu bradicárdica, em apneia com hipotonia generalizada e cianose central. Foi necessária reanimação, com ventilação sob pressão positiva, intubação orotraqueal, massagem cardíaca, cateterismo umbilical e adrenalina endovenosa, sendo levada imediatamente para a UTI Neonatal. O Apgar foi de 1, 3 e 3, no primeiro, terceiro e quinto minuto de vida, respectivamente, estabelecendo o diagnóstico de anóxia perinatal. Não houve tocotrauma.

Com duas horas de vida, apresentou equimose e abaulamento na orelha esquerda (Figura 1A), na região parietal e em mão direita. O tempo de atividade da protrombina (TAP) e da tromboplastina parcial ativada (KPTT) estavam alargados, sendo tratados com plasma e vitamina K. Iniciada antibioticoterapia com ampicilina e gentamicina devido aumento da proteína C reativa e leucocitose no hemograma e, como as hemoculturas foram negativas, os antibióticos foram suspensos com 72 horas de vida. Necessidade do uso de dopamina com 24 horas de vida devido hipotensão e piora importante da perfusão, sendo mantida por sete dias. Ecocardiograma realizado com três dias de vida evidenciando hipertrofia septal importante associada provavelmente ao diabetes materno.


Figura 1. Evolução progressiva da lesão auricular esquerda. (A) Duas horas de vida. (B) 48 horas de vida. (C) 20 dias de vida.



Com 48 horas de vida, a lesão auricular evidenciava área necrótica (Figura 1B), sendo realizados exames de controle de coagulação. O D-dímero de 12.059 no segundo dia de vida demonstrava a tendência trombótica. Após discussão do caso com a Hematologia Pediátrica, foi iniciado o uso profilático de enoxaparina (1,5mg/kg/dia). Os swabs nasofaríngeo RT-PCR COVID foram coletados com 24 e 48 horas de vida e o resultado foi negativo, bem como as sorologias IgM e IgG, coletadas com 7 dias de vida. Foi repetido o teste de anticorpo IgG no bebê contra SARS-CoV-2 no 14º dia de vida, mantendo-se negativo.

A análise anatomopatológica descreveu uma placenta medindo 14x12cm, com espessura máxima de 5,2cm e pesando 436g, apresentando dimensões compatíveis com as de terceiro trimestre com áreas de necrose coagulativa nas vilosidades coriônicas e sinais de corioamnionite. A pesquisa realizada para proteína Spike-19 por imuno-histoquímica em endoteliócitos e células trofoblásticas foi positiva, com expressão forte e focal (Figura 2).


Figura 2. Presença da proteína Spike-19 positiva por imuno-histoquímica em exame anatomopatológico de placenta - parte fetal. (A) Vilosidades coriônicas. (B) Endoteliócitos.



Com 72 horas de vida, iniciou movimentos compatíveis com crise convulsiva, sendo realizada dose de ataque de fenobarbital endovenoso e mantida com dose de manutenção. Realizada ultrassonografia de crânio com Doppler, com evidência de edema cerebral difuso.

A paciente foi extubada com sucesso no décimo dia de vida. Realizou ressonância nuclear magnética de crânio com 12 dias que mostrou lesões nos gânglios da base e tálamo, confirmando a presença de hipóxia grave com prognóstico reservado. Apesar do uso da enoxaparina, a orelha esquerda evoluiu com necrose e perda da porção superior (Figura 1C). Recebeu alta da UTI com 25 dias de idade cronológica. Permaneceu aos cuidados da equipe da Pediatria por mais 1 mês, recebendo alta hospitalar, com necessidade de sonda nasogástrica e fisioterapia motora semanal, para cuidados multidisciplinares em domicílio.


DISCUSSÃO

O relato de evento tromboembólico em um recém-nascido de mãe COVID-19 não foi totalmente esclarecido, apesar da evidência imuno-histoquímica da proteína Spike-19 na parte fetal placentária. A história familiar foi negativa para coagulopatias.

O tromboembolismo neonatal é uma condição rara, multifatorial, podendo ser associada a causas pré-natais como trombofilia e diabetes mellitus materna, ruptura precoce de membranas, pré-eclâmpsia, trombose da parte fetal placentária e causas pós-natais como prematuridade, muito baixo peso ao nascer, restrição severa do crescimento, asfixia perinatal, aspiração de mecônio, septicemia, mal posicionamento do acesso venoso central. As proteínas de coagulação maternas não atravessam a placenta, havendo a concentração no recém-nascido de várias proteínas pró-coagulantes, particularmente as dependentes de vitamina K reduzidas7. O manejo do tromboembolismo e o uso de anticoagulantes ainda não é claramente definido. O uso de anticoagulantes pode variar sobre o risco/benefício. A heparina de baixo peso molecular é a opção de escolha8.

Durante a pandemia de COVID-19, foi relatado um aumento no número de casos de recém-nascidos com diagnóstico de prematuridade, encefalopatia hipóxico-isquêmica, e nascidos pequenos para a idade gestacional (PIG). Este aumento foi atribuído à diminuição das consultas pré-natais devido às medidas de restrição e o medo de contágio pelas gestantes9.

De acordo com a revisão sistemática de 202110, a infecção materna por COVID-19 no terceiro trimestre parece estar associada a baixas taxas de transmissão vertical (aproximadamente 3,2%), embora possa ser possível devido à presença de RNA viral COVID-19 em várias fontes fetais ou neonatais3. Exames histológicos da placenta mostraram má perfusão vascular fetal e trombos vasculares, sendo que um relato de caso estadunidense mostrou clara invasão do SARS-CoV-2 na placenta, sugerindo a relação entre COVID-19 e coagulopatia, com possível impacto transplacentário no feto11-13.

Já foram descritos dois casos de gangrena neonatal relacionada à coagulopatia causada pela COVID-1914,15. O primeiro caso foi de gangrena em membro inferior devido a trombose aórtica espontânea no contexto de uma síndrome da resposta inflamatória fetal (FIRS) pós-infecção intrauterina por COVID-19, sendo o resultado de SARS-CoV-2 RT-PCR negativo, mas os anticorpos totais (IgG e IgM) foram positivos. O recém-nascido foi tratado com corticosteroide, infusão de heparina e ativador do plasminogênio tecidual recombinante, sendo necessária embolectomia cirúrgica seguida de amputação do membro direito. O outro caso foi de um recém-nascido prematuro que nasceu com lesão gangrenosa congênita em membro superior associada a história de infecção materna por coronavírus em 2019. A etiologia de sua lesão foi de difícil esclarecimento, apesar da extensa investigação de hipercoagulabilidade e biópsia da lesão, sendo necessária a amputação da região.


CONCLUSÃO

A relação de eventos tromboembólicos intrauterinos em filhos de mães infectadas pelo coronavírus ainda não está clara, mas sabe-se que a infecção intrauterina pode desencadear uma resposta inflamatória sistêmica em alguns fetos, gerando um quadro de tromboinflamação. A infecção materna por coronavírus-19 deve entrar no diagnóstico diferencial como causa de evento tromboembólico no período neonatal.


AGRADECIMENTO

Agradecimento a Dra Lee I-Ching, patologista do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, pela disponibilidade das lâminas da imuno-histoquímica.


REFERÊNCIAS

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1. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Pediatra da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
2. Universidade Federal de Santa Catarina, Professora adjunto do Departamento de Pediatria - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
3. Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, Neonatologista da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
4. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Neonatologista da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil

Endereço para correspondência:

Mariana Gaspar Mendonça
Hospital Infantil Joana de Gusmão
Rua Rui Barbosa, 152 - Agronômica
Florianópolis - SC, Brasil. CEP: 88025-301
E-mail: marig_mendonca@hotmail.com

Data de Submissão: 06/01/2022
Data de Aprovação: 01/11/2022