ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Necrose gordurosa subcutânea do recém-nascido: relato de caso e revisão de literatura

Subcutaneous fat necrosis of the newborn: case report and literature review

RESUMO

INTRODUÇÃO: O objetivo do nosso artigo é descrever um caso de necrose adiposa do subcutâneo associada a expulsivo prolongado e hipotermia terapêutica e revisão na literatura de outros casos relatados.
RESULTADOS: A necrose gordurosa do subcutâneo é uma inflamação incomum que aparece em recém-nascidos nas primeiras semanas de vida. A patogênese ainda é desconhecida, mas pode estar relacionada à hipóxia tecidual que gera inflamação e necrose do tecido adiposo. As lesões se caracterizam por áreas de edema e eritema que progridem para placas ou nódulos subcutâneos endurecidos e indolores. Os fatores de risco para essa paniculite são a hipóxia e o estresse perinatal, como o parto traumático ou prolongado e mais recentemente a hipotermia terapêutica. O diagnóstico é clínico, com confirmação histopatológica, a evolução é autolimitada e geralmente benigna e não requer tratamento específico, porém deve-se monitorizar o nível de cálcio sérico, pois pode ocorrer hipercalcemia, levando a sintomas graves. Os principais diagnósticos diferenciais são escleredema neonatal e paniculite por frio.
CONCLUSÃO: Apesar de pouco frequente, o reconhecimento precoce dessa condição especialmente em recém-nascidos com fatores de risco é importante, e pode guiar o seguimento clínico incluindo a monitorização do cálcio, controle da dor e a não utilização de antibióticos.

Palavras-chave: Necrose gordurosa, Doenças do recém-nascido, Hipotermia induzida, Paniculite.

ABSTRACT

INTRODUCTION: incomplete.
RESULTS: Fatty necrosis of the subcutaneous tissue is an uncommon inflammation, with a still unknown pathogenesis, which appears in newborns in the first weeks of life. The lesions are characterized by areas of edema and erythema that progress to hardened and painless subcutaneous plaques or nodules. The risk factors for this panniculitis are hypoxia and perinatal stress, such as traumatic or prolonged delivery and, more recently, therapeutic hypothermia. The diagnosis is clinical, the evolution is self-limited and benign, but the level of serum calcium should be monitored, as hypercalcemia can occur, leading to severe symptoms. In our report, we describe a case of subcutaneous adipose necrosis associated with prolonged expulsive and therapeutic hypothermia.
CONCLUSION: Although infrequent, early recognition of this condition, especially in newborns with risk factors, is important, and can guide clinical follow-up including monitoring calcium, pain control and not using antibiotics.

Keywords: Fat necrosis, Infant, Newborn, Diseases, Hypothermia, Induced, Skin diseases.


INTRODUÇÃO

A necrose gordurosa do subcutâneo é uma paniculite rara, autolimitada, que surge em recém-nascidos (RN) termo ou pós-termo, nas primeiras semanas de vida1. Caracteriza-se por áreas de edema e eritema que progridem para placas ou nódulos subcutâneos, eritematosos, endurecidos e indolores2. Ocorre mais frequentemente em pacientes nascidos de parto traumático ou prolongado e mais recentemente naqueles submetidos à hipotermia terapêutica3. O diagnóstico é clínico, a evolução é benigna, mas o nível de cálcio sérico deve ser monitorizado, pois a hipercalcemia é frequente e pode levar a sintomas graves4.

Descrevemos um caso de necrose gordurosa de subcutâneo associada a período expulsivo prolongado e hipotermia terapêutica.


RELATO DE CASO

Trata-se de um recém-nascido (RN) a termo, feminino, peso de nascimento 3.980 g, parto vaginal, com circular de cordão, período expulsivo prolongado e escore de Apgar de 0 – 4 – 4. Necessitou de reanimação neonatal (intubação traqueal e massagem cardíaca), e após estabilização foi encaminhado à Unidade de Terapia IntensivaI Neonatal (UTIN). A obtenção de acesso vascular foi difícil, sendo necessária a dissecção venosa central (jugular direita) por insucesso na passagem do cateter umbilical e do cateter percutâneo. Com 2 horas de vida, apresentou crises convulsivas de difícil controle, necessitando de fenobarbital, fenitoína e midazolam contínuo. A hipotermia terapêutica corporal foi indicada e iniciada com 4 horas de vida, com temperatura central mantida em torno de 33,5°C. Ainda nas primeiras 24 horas de vida, evoluiu com choque cardiogênico (diagnóstico clínico e ecocardiográfico) que respondeu à administração de dobutamina, choque esse atribuído à asfixia perinatal. O ultrassom de crânio realizado com 48 horas de vida evidenciou alterações difusas do parênquima cerebral, edema e imagem de infarto isquêmico parassagital esquerdo. Ficou em hipotermia por 72 horas, com reaquecimento posterior sem intercorrências. Iniciada dieta enteral trófica com leite materno após reaquecimento, com dificuldade de progressão, necessitando de nutrição parenteral. No final da segunda semana de vida, foi retirada a dissecção venosa e extubado. No 13º dia de vida, apresentou sinais flogísticos e saída de secreção purulenta no local de inserção da dissecção, associada à área endurecida em membro superior direito. Inicialmente o diagnóstico foi de abscesso e antibióticos foram prescritos. Na hemocultura houve crescimento de Enterobacter cloacae. Com uma semana de tratamento (19 dias de vida), apesar do uso de antibióticos adequado para o agente, houve progressão do edema, de caráter endurecido e eritema, para região de dorso. Solicitado ultrassom de partes moles que evidenciou pele e tecido celular subcutâneo com espessamento difuso em região dorsal associado a borramento da gordura do subcutâneo. A hipótese foi de necrose gordurosa de subcutâneo. Com 25 dias, mantinha placas eritemato-hipercrômicas endurecidas, de difícil delimitação, na região do ombro direito, ombro esquerdo e dorso à esquerda (Figura 1), mas com hemoculturas negativas, sem outras alterações clínicas e laboratoriais de infecção. A dosagem de cálcio sérico foi normal até a terceira semana de vida, mas com 1 mês elevou-se, atingindo níveis entre 10,9 e 11,7mg/dl. Nesse período foi utilizado diurético de alça com normalização dos níveis séricos de cálcio. Foi realizada biopsia de pele que confirmou o diagnóstico de necrose gordurosa de subcutâneo.


Figura 1. A e B: Edema endurecido em região de ombro direito. (imagens autorizadas pelo responsável pela criança).



A criança recebeu alta com 41 dias de vida, pesando 4.255g com quadro de hipotonia generalizada, convulsões controladas, em uso de fenobarbital e em seguimento com a neuropediatria, neonatologia, dermatologia, além de equipe multiprofissional. Com 2 meses apresentava-se ainda hipotônica, com pequenos nódulos no tecido subcutâneo sem sinais flogísticos e o nível sérico de cálcio dentro da normalidade.


DISCUSSÃO

Necrose gordurosa do subcutâneo ou necrose adiposa do recém-nascido foi descrita pela primeira vez por Harrison e McNee, em 19265,6, e sua patogênese permanece desconhecida. Acredita-se estar relacionada à hipóxia tecidual que gera inflamação e necrose no tecido adiposo subcutâneo7. É uma condição incomum, com incidência desconhecida. Estudo retrospectivo, realizado em centro terciário em Toronto, Canadá, durante 20 anos, identificou 30 crianças diagnosticadas com a doença, sem diferenças quanto ao sexo8.

Dentre os fatores considerados de risco para o desenvolvimento da doença encontram-se a hipóxia e o estresse perinatal, comuns em parto prolongado, aspiração meconial, placenta prévia, descolamento de placenta, diabetes materno, entre outras condições7,9. Nesses casos, a hipoperfusão do tecido celular subcutâneo do RN, cujo sistema enzimático responsável pela dessaturação dos ácidos graxos é imaturo, agrava a deposição de ácidos graxos saturados (ácido esteárico e ácido palmítico), levando à solidificação e necrose do tecido adiposo10; também a pressão local decorrente do trauma associado ao parto potencializa a necrose gordurosa. A hipotermia terapêutica é um fator de risco adicional, uma vez que o resfriamento dos tecidos induz a cristalização dos adipócitos, resultando também em necrose1.

O quadro clínico caracteriza-se por áreas de edema e eritema que progridem para placas ou nódulos subcutâneos, eritematosos, endurecidos, indolores, bem delimitados, localizados principalmente em áreas submetidas a trauma durante o parto, como dorso, braços, coxas e nádegas, por vezes associados à alteração da coloração da pele suprajacente (eritematosa ou violácea)4,6. As lesões podem, eventualmente, ulcerar. Para além das lesões cutâneas, os recém-nascidos se apresentam geralmente bem e sem outras alterações ao exame físico. A dor pode ocorrer e requer analgesia1.

O diagnóstico é clínico, baseado na história e exame físico. Os exames de imagem são, geralmente, desnecessários para o diagnóstico, embora possam ter um papel importante na exclusão de diagnósticos diferenciais. A confirmação histopatológica faz-se pela presença de áreas de necrose adiposa, deposição de cristais em forma de agulhas, rodeada por uma reação granulomatosa, constituída por linfócitos, histiócitos, polimorfonucleares e células gigantes multinucleadas associadas a focos de calcificação1,4,11.

Em todos os casos, os níveis de cálcio total e/ou ionizado devem ser monitorizados, assim como os sinais clínicos de hipercalcemia, como irritabilidade, hipoatividade, vômitos, recusa alimentar12. A hipercalcemia se desenvolve como uma complicação potencialmente fatal em alguns casos. A etiologia específica para esse fenômeno é desconhecida. Uma das teorias mais aceitas é a produção extrarrenal da 1,25-dihidrovitamina D pelos macrófagos do infiltrado granulomatoso, promovendo a mobilização do cálcio do osso e aumentando a absorção intestinal de cálcio, resultando em hipercalcemia secundária5,10. As células inflamatórias granulomatosas expressam altos níveis de 1-alfa-hidroxilase, a enzima que converte 25-hidroxivitamina D3 em sua forma ativa de 1,25-di-hidroxivitamina D313,14. Possíveis ligações entre hipercalcemia e aumento da prostaglandina E, que aumentam a reabsorção de cálcio do osso, ou os níveis de hormônio da paratireoide foram estudados; no entanto, estes são frequentemente normais1.

O diagnóstico diferencial faz-se com o escleredema neonatal, que surge, na sua maioria, em recém-nascidos prematuros com patologias graves como sepse, insuficiência respiratória, cardíaca ou obstrução intestinal2. Caracteriza-se por edema e endurecimento cutâneo generalizado. As palmas, plantas e genitais são poupados1,14. O prognóstico é reservado e associado à alta mortalidade. Outro diferencial é a paniculite por frio que geralmente se manifesta com placas eritematosas, endurecidas e bem delimitadas nos locais onde a pele esteve em contato direto com objetos frios3. Geralmente, aparece dentro de horas a dias após a exposição ao frio e resolve rapidamente. Histopatologicamente, a ausência das fendas em forma de agulha na gordura a distingue da necrose gordurosa1. Outros diferenciais incluem: dermo-hipodermites bacterianas agudas (DHAB) (erisipela, celulite), abscessos, infecção por citomegalovírus, hemangiomas profundos, lipogranulomatose (doença de Farber) e os sarcomas5,7.

Na maioria das vezes, a evolução é benigna e a lesão resolve-se após alguns meses, sem necessidade de tratamento e sem deixar sequelas7. O tratamento específico está indicado quando ocorrerem complicações como a hipercalcemia, que, em casos graves e não monitorizados, pode levar à morte. Como o início da hipercalcemia pode ser tardio, os níveis séricos de cálcio devem ser monitorados vários meses após o diagnóstico. A hipercalcemia é tratada com restrição de cálcio suplementar e vitamina D, hiper-hidratação com fluidos intravenosos e diuréticos de alça (furosemida)6,12. Em casos mais graves, corticosteroides sistêmicos e bifosfonatos podem ser necessários1.

No caso descrito, o paciente apresentava vários fatores considerados de risco para a necrose gordurosa: termo, período expulsivo prolongado, nascido em más condições de vitalidade, submetido à hipotermia terapêutica em função da encefalopatia hipóxico-isquêmica (EIH), choque cardiogênico pela asfixia, situações essas que levam à hipóxia tecidual e de tecido celular subcutâneo. Um fator de confusão foi a infecção por Gram-negativo no local da inserção do cateter de dissecção venosa, que levou a equipe médica a pensar no diagnóstico diferencial de abscesso. Nessa situação, o exame de imagem foi útil para exclusão. A manutenção do quadro de pele a despeito da melhora clínica, da normalização dos exames laboratoriais e da negativação de hemoculturas e o surgimento da hipercalcemia assintomática no final do primeiro mês de vida colaboram com o diagnóstico que foi confirmado pelo anatomopatológico.

Embora pouco frequente, o reconhecimento precoce dessa morbidade especialmente em recém-nascidos com fatores de risco, incluindo a hipotermia terapêutica, é importante, e pode nortear o seguimento clínico incluindo a monitorização do cálcio, controle da dor e a não utilização de antibióticos.


REFERÊNCIAS

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1. Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP, Residente De Pediatria - Botucatu - São Paulo - Brasil
2. Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP, Residente De Dermatologia - Botucatu - São Paulo - Brasil
3. Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP, Professor(a) Associado(a) do Departamento de Pediatria - Botucatu - São Paulo - Brasil
4. Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP, Professor Titular do Departamento de Dermatologia - Botucatu - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Júlia Belcavelo Contin Silva
UNESP. Av. Prof. Mário Rubens Guimarães Montenegro, s/n - UNESP - Campus de Botucatu
Botucatu/SP, Brasil. CEP: 18618687
E-mail: juliacontin@hotmail.com

Data de Submissão: 22/11/2020
Data de Aprovação: 09/02/2021