ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Rastreio de heterotopia nodular periventricular com ultrassom transfontanelar em paciente assintomático com fator de risco: relato de caso

Screening of periventricular nodular heterotopia with transfontanellarultrasound in asymptomatic patient with risk factor: Case report

RESUMO

A heterotopia nodular periventricular (HP) é resultado da anormalidade na migração neuronal durante a gênese do sistema nervoso central, especialmente no período fetal. Apresenta-se assintomática no período neonatal, porém caracteriza-se, muitas vezes, como foco epileptiforme de difícil controle no decorrer da vida, causando impacto no desenvolvimento neuropsicomotor e na qualidade de vida da criança e de seu cuidador. Pelo fato de estar relacionada à anormalidade genética, muitas vezes derivada de padrão hereditário, pode-se predizer que pais acometidos poderão gerar prole com tal condição clínica. Nesse contexto, entretanto, o uso da ultrassonografia transfontanelar (USTF) no período neonatal como rastreio de HP em pacientes que possuem história familiar positiva ainda não é consenso na literatura atual. Assim, buscamos relatar o caso de HP diagnosticada ao acaso, em neonato assintomático, mas com genitora epiléptica portadora da mesma condição, não conhecida durante o pré-natal. A criança apresentou sinais sugestivos de ectopia neuronal em USTF solicitada devido a risco de hemorragia periventricular, sendo, posteriormente, confirmada com ressonância magnética de encéfalo.

Palavras-chave: Heterotopia nodular periventricular, Malformações do desenvolvimento cortical, Malformações do desenvolvimento cortical do grupo II, Ultrassonografia

ABSTRACT

Periventricular nodular heterotopia (PH) results from abnormal neuronal migration during the genesis of the central nervous system, especially in the fetal period. It is asymptomatic in the neonatal period, however, is often characterized as epileptiform focus that is difficult to control throughout life, impacting the neuropsychomotor development and the quality of life of the child and his caregiver. Because it is related to genetic abnormality, often derived from a hereditary pattern, it can be predicted that affected parents may generate offspring with such a clinical condition. In this context, however, the use of transfontanellar ultrasonography (USTF) in the neonatal period, to screen PH in patients who have a positive family history for the clinical condition, is not yet consensus in the current literature. Thereby, we sought to report the case of PH diagnosed at random, in asymptomatic neonate, but with epileptic parent with the same condition, not known during prenatal care. The child showed signs suggestive of neuronal ectopy in requested USTF due to the risk of periventricular hemorrhage, which was later confirmed with brain magnetic resonance.

Keywords: Periventricular nodular heterotopia, Malformations of cortical development, Malformations of cortical develpment, group II, Ultrasonography.


INTRODUÇÃO

As deficiências na migração neuronal, principalmente relacionadas à motilidade celular, estão relacionadas às várias malformações genéticas do tecido cerebral, entre elas a heterotopia nodular periventricular (HP). Definida pela presença de formações neuronais em nódulos adjacentes ou anexadas à parede dos ventrículos laterais, assumem configurações diversas, únicas ou múltiplas, uni ou bilaterais, limitando-se à região periventricular1.

No desenvolvimento do cérebro fetal, o tecido germinativo, que se encontra em região periventricular, dá origem a neurônios que migram em sentido cortical, de forma centrífuga, para formarem o córtex cerebral. Na heterotopia periventricular, há falha nesse processo migracional, na qual neurônios que assumiriam posições corticais permanecem acumulados em topografia ectópica2.

Tal anormalidade de migração celular está relacionada, na maioria das vezes, com padrões hereditários de mutações genéticas, podendo ser recessivos ou dominantes. Os genes acometidos estão relacionados ao citoesqueleto, transporte intracelular de vesículas e adesão celular, gerando alteração de desenvolvimento neurológico fetal3.

Os portadores dessa condição apresentam-se, geralmente, assintomáticos durante o período neonatal e infância. Hipoatividade, pouca reatividade, sucção débil e reflexos primitivos reduzidos ou exacerbados, movimentos atípicos esporádicos, apresentam-se como os principais sinais em neonatos. Atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor podem estar associados4.

Contudo, entre a 1ª e 2ª década de vida, passam a apresentar crises epilépticas de difícil controle, geralmente refratárias ao tratamento farmacológico, sendo esta apresentação típica da HP. Representa a 2ª causa mais frequente de epilepsia em crianças, apenas atrás das displasias cerebrais corticais, e raramente possuem associação com déficits neurológicos ou atrasos no desenvolvimento global5.

O diagnóstico definitivo é feito através da ressonância nuclear magnética (RNM) de crânio, mediante a suspeita clínica, ocorrendo, na maioria das vezes, de forma tardia devido à pouca sintomatologia apresentada nos primeiros anos de vida6.

Diante disso, a ultrassonografia transfontanelar (USTF) realizada em neonatos é importante no rastreio da HP. Devido à sua disponibilidade à beira-leito, segurança, não invasivo e alta eficácia, é o método de escolha para o estudo imagiológico inicial do cérebro neonatal. Caracteriza-se por ser um exame que permite analisar estruturas encefálicas em um período específico na vida, possibilitando abordagem e seguimento adequado, principalmente em recém-nascidos que possuem fatores de risco para anormalidades em sistema nervoso central7.

Assim, pelo fato de ser uma condição que apresenta impacto direto na qualidade de vida do paciente, faz-se necessária uma abordagem diagnóstica ampla e fundamentalmente precoce. Por possivelmente gerar atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, além de incidência elevada de resistência ao manejo farmacológico, o rastreio ultrassonográfico em portadores de fator de risco deve ser ponderado.


RELATO DE CASO

Genitora primigesta, 29 anos, com história de epilepsia não especificada previamente diagnosticada em outro serviço, fazia uso de carbamazepina até o diagnóstico da gestação, com 12 semanas de idade gestacional (IG), sendo então interrompido e não introduzido outro anticonvulsivante. Com 24 semanas de IG, apresentou crise convulsiva tônico-clônica generalizada, sendo encaminhada ao nosso serviço e introduzida lamotrigina.

Durante gestação, apresentou mais dois episódios de crises convulsivas, com características tônico-clônicas generalizadas, nistagmo e estado pós-ictal importante. Negou síndromes febris, exantemáticas e colestáticas durante o curso gestacional, apresentando imunidade sorológica para rubéola, ausência de soroconversão para toxoplasmose, sífilis, hepatites virais e HIV. Negou tabagismo ativo ou passivo, uso de drogas ilícitas e álcool.

Devido a desejo materno, neonato do sexo feminino nasceu de parto cesárea, pequeno para idade gestacional de 37 semanas, com peso de nascimento de 2.172 gramas (entre percentil 5 e 3 de acordo com projeto INTERGROWTH-21st) e perímetro cefálico de 33cm (entre percentil 50 e 90 do INTERGROWTH-21st)8. Foi reanimado em sala de parto com ventilação por pressão positiva devido à ausência de drive respiratório, com melhora dos parâmetros, recebendo APGAR 5/9, sendo encaminhada, posteriormente, ao Alojamento Conjunto com a mãe.

Nos primeiros dias de vida, apresentou hipoatividade importante com dificuldade em manter sucção adequada no aleitamento materno exclusivo, havendo 12% de perda de peso em relação ao nascimento, além de glicemias capilares limítrofes. Não apresentou apneia, desconforto respiratório, alteração de frequência cardíaca e temperatura, movimentos involuntários, perda de reflexos profundos e primitivos, ou qualquer outro sintoma. Com isso, foi transferido para unidade de cuidados intermediários neonatal (UCI) devido a tais critérios clínicos.

Durante internação, foi realizado USTF devido ao peso de nascimento, quando correlacionado à idade gestacional, estar menor que percentil 5 de acordo com o projeto INTERGROWTH-21st8. Tal rotina de rastreio se deve ao fato de que alterações em sistema nervoso central (SNC) podem causar restrição de crescimento intrauterino9. Na realização do exame, evidenciou-se proeminência de ventrículos laterais, associado à irregularidade em contornos periventriculares, com ecogenicidade semelhante ao córtex cerebral (Figura 1).


Figura 1. Ultrassom transfontanelar (USTF). Irregularidade periventricular evidenciada tanto no corte sagital (fotos superiores) quanto no corte coronal (fotos inferiores).



Tal achado ultrassonográfico, associado à história materna de epilepsia e clínica de hipoatividade de neonato, levantou-se a hipótese de heterotopia nodular periventricular (HP). Assim, foi solicitada ressonância nuclear magnética (RNM) de crânio, exame de escolha para visualização de parênquima cerebral, além de solicitar à genitora exames previamente realizados.

Foi possível identificar na RNM crânio do neonato, imagens nodulares caracterizadas por intensidade intermediária em T1 e hipointensidade em T2, distribuídos difusamente pelas superfícies subependimárias dos ventrículos laterais, não havendo nenhuma outra anormalidade, sugerindo ectopia de tecido cortical (Figuras 2A, 2B, 2C e 2D). Tais alterações são semelhantes às encontradas na RNM crânio materna (Figuras 2E e 2F), realizada previamente à gestação, corroborando hipótese diagnóstica.


Figura 2. A, B, C e D: representam RNM do neonato. Imagens nodulares caracterizadas por hipointensidade em T2 (A, B e C) e intensidade intermediária em T1 (D), na região periventricular. Nota-se a semelhança com RNM materna (E e F), havendo também tecido cortical em região periventricular.



Mãe foi devidamente orientada sobre características e prognósticos da patologia. Mediante a estabilidade clínica do recém-nascido, ganho de peso adequado, boa evolução de aleitamento materno exclusivo e ausência de hipoatividade apresentada previamente, recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial com equipe da neurologia pediátrica.


CONCLUSÃO

O diagnóstico de HP é feito através de exames de imagem, em específico a RNM de crânio, apresentando limitações à sua realização no período neonatal, principalmente relacionadas à necessidade de sedação contínua durante exame. Além disso, tal exame só deve ser solicitado mediante a suspeita clínica de alteração em sistema nervoso central6.

Porém, como já dito, tal condição clínica gera sinais e sintomas explícitos de forma tardia, sendo assintomática no período neonatal. Consequentemente, a ausência de rastreio perante a história familiar de HP gera diagnóstico tardio, causando impacto direto sobre o paciente e de seus cuidadores10.

Devido à disponibilidade para realização à beira-leito, não invasivo e baixo custo, associado à presença de fontanelas nos recém-nascidos, a USTF assume papel fundamental, principalmente no rastreio da HP, apresentando elevada sensibilidade para anormalidades cerebrais, principalmente com história familiar positiva7.

A evidência de padrão hereditário da condição clínica em questão associada às características intrínsecas do exame supracitado, permite que este seja utilizado como rastreio em neonatos com fatores de risco. O reconhecimento precoce de ectopia de tecido neuronal, que pode gerar alteração no desenvolvimento psicomotor e futuramente evoluir com crises epilépticas recorrentes, é de fundamental importância para a prevenção e promoção de saúde do indivíduo.


REFERÊNCIAS

1. Guerrini R, Parrini E. Neuronal migration disorders. Neurobiol Dis. 2010;38(2):154-66.

2. Valiente M, Marín O. Neuronal migration mechanisms in development and disease. Curr Opin Neurobiol. 2010;20(1):68-78.

3. Verrotti A, Spalice A, Ursitti F, Papetti L, Mariani R, Castronovo A, et al. New trends in neuronal migration disorders. Eur J Paediatr Neurol. 2010 Jan;14(1):1-12. 

4. Janszky J, Kovacs N, Gyimesi C, Fogarasi A, Doczi T, Wiebe S. Epilepsy surgery, antiepileptic drug trials, and the role of evidence. Epilepsia. 2010;51(6):1004-9. 

5. Guerrini R. Epilepsy in children. Lancet. 2006;367(9509):499-524.

6. Spalice A, Parisi P, Nicita F, Pizzardi G, Del Balzo F, Iannetti P. Neuronal migration disorders: clinical, neuroradiologic and genetics aspects. Acta Paediatr. 2009 Mar; 98(3):421-33.

7. Cohen HL, Blitman NM, Sanchez J. Neurosonography of the infant: the normal examination. In: Timor-Trisch I, Monteagudo A. Ultrasonography of the Prenatal and Neonatal Brain. 2th ed. New York: Ed. McGraw-Hill; 2001. p. 403-22.

8. Villar J, Cheikh I, Victora C, Ohuma E, Bertino E, Altman DG, et al. International fetal and newborn growth consortium for the 21st century (INTERGROWTH-21st) International standards for newborn weight, length, and head circumference by gestational age and sex: the newborn cross-sectional study of the INTERGROWTH-21st Project. Lancet. 2014;384:857-68.

9. Bashir RA, Vayalthrikkovil S, Espinoza L, et al. Prevalence and Characteristics of Intracranial Hemorrhages in Neonates with Hypoxic Ischemic Encephalopathy. Am J Perinatol. 2018; 35:676.

10. Emiliano S, Giampaolo V, Daniela M, Nicola P, Alfonso C, Raffaele R, et al. Cerebro-cerebellar functional connectivity profile of an epilepsy patient with periventricular nodular heterotopia. Epilepsy Res. 2012;101(3):280-3.










1. Hospital da Criança e Maternidade/Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Pediatria - São José do Rio Preto - São Paulo - Brasil
2. Hospital da Criança e Maternidade/Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Neonatologia - São José do Rio Preto - São Paulo - Brasil
3. Hospital da Criança e Maternidade/Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Neurocirurgia Pediátrica - São José do Rio Preto - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Bruno Antunes Contrucci
Hospital da Criança e Maternidade
Av. Jamil Feres Kfouri, 60, Jardim Panorama
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E-mail: bruno_acontrucci@hotmail.com

Data de Submissão: 05/01/2021
Data de Aprovação: 18/01/2021