ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Síndrome de Marfan: importância da história familiar - relato de caso

Marfan Syndrome: Importance of Family History - Case Report

RESUMO

Relatamos um caso de síndrome de Marfan, encaminhado para avaliação por importante história familiar de morte súbita. Já na primeira avaliação apresentava dilatação da raiz da aorta além de outras manifestações clínicas da doença. Nosso objetivo é enfatizar a importância da história familiar como ponto de partida na investigação de síndrome de Marfan, na tentativa de prevenir desfechos desfavoráveis como dissecção aórtica e morte súbita.

Palavras-chave: Síndrome de Marfan, Anamnese, Morte Súbita.

ABSTRACT

We describe a case of Marfan syndrome, referred for evaluation due to an important family history of sudden death. In the first evaluation, he presented dilation of the aortic root in addition to other clinical manifestations of the disease. Our objective is to emphasize the importance of family history as a starting point in Marfan syndrome investigation, in an effort to prevent unfavorable outcomes like aortic dissection and sudden death.

Keywords: Marfan syndrome, Medical history taking, Death Sudden.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Marfan (SM) é uma doença do tecido conjuntivo, de herança autossômica dominante, que exibe penetrância completa, expressividade variável intra e interfamiliar, pleiotropia e não demonstra predileção por gênero, etnia ou distribuição geográfica. A SM afeta especialmente os sistemas musculoesquelético, ocular e cardiovascular e tem uma incidência estimada de 1 em cada 5.000 indivíduos1.

Mutações em heterozigose no gene Fibrilina-1 (FBN1) são responsáveis por mais de 95% dos casos de SM2. Atualmente o diagnóstico da doença é feito com base nos critérios modificados de Ghent (Quadro 1), um conjunto de critérios diagnósticos que faz uma avaliação abrangente, baseada em uma combinação de grandes e pequenas manifestações clínicas e na história familiar do paciente3.




As principais manifestações cardiovasculares da SM são prolapso de valva mitral e dilatação da raiz da aorta, provocadas pela fragilidade do tecido conjuntivo. Devido à dilatação de suas paredes, a dissecção e rotura da aorta é uma das principais causas de morte súbita nesses pacientes4.

Apresentamos um caso de SM com importante história familiar de morte súbita, com acompanhamento clínico de 5 anos e evolução clínica favorável neste período com o tratamento. A realização deste relato de caso foi aprovada pelo Comitê de Ética e foi obtido consentimento informado da responsável pelo paciente.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, nascido em julho de 2011, encaminhado em 2015 para avaliação devido à história familiar de morte súbita. Após consulta no ambulatório de genética médica, foi encaminhado ao serviço de cardiologia com a hipótese diagnóstica de SM. Na história familiar tinha pai falecido aos 26 anos por morte súbita, com relato de doença na aorta e na valva tricúspide. A mãe do paciente relatava não saber detalhes sobre a doença do marido, porém referia que era magro, alto e apresentava deformidade da parede anterior do tórax. Ela afirmava também que ele usava óculos. Ainda na história familiar havia relato de avô e dois tios-avôs paternos também com história de morte súbita ainda jovens, sendo que o avô falecera aos 29 anos. Em comum, havia relato de que o biotipo desses membros da família era muito semelhante, todos altos e magros.

Ao exame físico na primeira avaliação o paciente apresentava bom estado geral, peso no escore-Z entre 0 e -2, altura escore-Z 0 e +2. Foi calculado o escore sistêmico para o paciente utilizando-se o site The Marfan Foundation5 (Tabela 1). Nele existe uma ferramenta baseada nos critérios modificados de Ghent (Quadro 1), que calcula a probabilidade de os pacientes apresentarem SM segundo suas manifestações clínicas. Pacientes que obtêm pontuação ≥7 pontos são considerados como tendo diagnóstico clínico de SM. Nosso paciente obteve 11 pontos, tendo apresentado o sinal do punho, assimetria torácica, deformidade do calcâneo, pés planos, escoliose, características faciais, miopia e prolapso da valva mitral.




O exame cardiovascular mostrou precórdio calmo, ritmo cardíaco regular com bulhas normofonéticas, sem bulhas acessórias, desdobramento fisiológico de B2 e clique mesossistólico, sem sopros. Ao ecocardiograma transtorácico (ETT) apresentava prolapso de valva mitral com regurgitação leve e dilatação de raiz de aorta (2,54cm - escore-Z +4,38), sem regurgitação (Figura 1).


Figura 1. Ecocardiograma. Corte longitudinal do ecocardiograma. Seta mostra o prolapso da valva mitral. Traço mostra dilatação da raiz da aorta. VE - Ventrículo Esquerdo; AO - Aorta; AE - Átrio Esquerdo.



Na radiografia da coluna torácica apresentou discreta cifose dorsal.

Devido à presença da ectasia aórtica, foi iniciado propranolol e o paciente vem sendo acompanhado ao longo dos últimos 5 anos. Nesse período houve mínimo crescimento da aorta, que atualmente mede 3,0cm (escore-Z +3). Há 6 meses foi observada discreta dilatação do tronco da artéria pulmonar (escore-Z +2.2), sendo associado losartana a seu tratamento. O paciente mantém o acompanhamento clínico, não havendo aumento do escore-Z pulmonar até o momento.


DISCUSSÃO

A SM é uma doença do tecido conjuntivo secundária à presença de mutações no gene FBN11. Por sua característica autossômica dominante, a história familiar tem um papel fundamental no diagnóstico da doença. Nos dias atuais, em que as ferramentas tecnológicas encantam a todos, é essencial lembrar que a anamnese e o exame clínico são a base do diagnóstico médico. O paciente em questão apesar de assintomático, tem uma história familiar extremamente rica, que levou ao início da investigação diagnóstica, na tentativa de evitar uma evolução catastrófica semelhante à de outros membros da família. Embora não se possa comprovar que o pai, o avô e os tios-avôs eram portadores da SM, suas evoluções clínicas são muito sugestivas, ainda mais se considerarmos que o paciente tem dilatação da aorta e somou 11 pontos no escore sistêmico do The Marfan Foundation.

Desde 2010 os critérios modificados de Ghent definem as características da SM com base na presença de história familiar, no escore sistêmico, no escore-Z do diâmetro da raiz da aorta, nas alterações do cristalino (ectopia lentis) e nas mutações do gene da fibrilina (FBN1)3. Sendo assim, a presença da história familiar permite que em países como o Brasil o diagnóstico seja facilitado, já que alguns exames genéticos como é o caso do sequenciamento do gene FBN1 não estão disponíveis para boa parte da população.

A morte precoce na SM está intimamente associada à dilatação da raiz da aorta, que pode levar à dissecção, com rotura e até morte súbita2,6,7. A dilatação é progressiva e, na grande maioria das vezes, assintomática, sendo diagnosticada durante a realização de um ecocardiograma. Assim, na presença de história familiar sugestiva, a investigação dos demais membros da família é de fundamental importância7. No caso abordado, a morte súbita do pai, aos 26 anos, levou à investigação da criança e ao início do acompanhamento clínico, com possibilidade de tratamento medicamentoso da dilatação da raiz da aorta, e tornou possível a indicação eletiva, se necessário, de correção cirúrgica profilática. Embora o avô da criança, falecido aos 29 anos, e dois tios-avôs, falecidos ainda jovens e de morte súbita, não tivessem comprovação da doença, é provável que tivessem SM. Se essa história familiar tivesse sido valorizada, talvez o pai do paciente pudesse ter sido diagnosticado, sua doença aórtica tratada/abordada precocemente e seu desfecho poderia, talvez, ter sido diferente.

Atualmente o tratamento medicamentoso baseia-se no uso de betabloqueadores ou inibidores dos receptores de angiotensina, numa tentativa de retardar o processo de dilatação da raiz da aorta. Não há preponderância de uma droga sobre a outra, no entanto um importante artigo recente de acompanhamento a longo prazo de pacientes relatou vantagens no uso conjunto das drogas8. No caso em questão observou-se diminuição da velocidade de crescimento da aorta, ao longo dos anos, porém nos últimos 6 meses houve leve dilatação do tronco da artéria pulmonar, que embora não seja específica de síndrome de Marfan, é relatada na literatura associada à dissecção aórtica e deve ser acompanhada com atenção, assim optamos por manter o uso conjugado de betabloqueador e losartana9.

O paciente permanece em acompanhamento clínico assintomático, com dilatação aórtica e pulmonar, sem regurgitação e sem indicação cirúrgica. Foi aconselhado a evitar atividades físicas intensas, especialmente exercícios isométricos e com risco de trauma no tórax.


REFERÊNCIAS

1. Coelho SG, Almeida AG. Marfan syndrome revisited: from genetics to the clinic. Rev Port Cardiol. 2020 Apr;39(4):215-226. DOI: https://doi.org/10.1016/j.repc.2019.09.008.

2. Dietz HC, Cutting GR, Pyeritz RE, Maslen CL, Sakai LY, Corson GM, et al. Marfan syndrome caused by a recurrent de novo missense mutation in the fibrillin gene. Nature. 1991;352:337-9.

3. Loeys BL, Dietz HC, Braverman AC, Callewaert BL, De Backer J, Devereux RB, et al. The revised Ghent nosology for the Marfan syndrome. J Med Genet. 2010 Jul;47(7):476-85. DOI: https://doi.org/10.1136/jmg.2009.072785.

4. Hofmann Bowman MA, Eagle KA, Milewicz DM. Update on clinical trials of losartan with and without β-blockers to block aneurysm growth in patients with Marfan syndrome: a review. JAMA Cardiol. 2019;4(7):702-7. DOI: https://doi.org/10.1001/jamacardio.2019.1176

5. The Marfan Foundation. Calculation of Systemic Score [Internet]. 2023; [access in 2021 Jan 8]. Disponível em: https://www.marfan.org/dx/score.

6. Pyeritz RE. Recent progress in understanding the natural and clinical histories of the Marfan syndrome. Trends Cardiovasc Med. 2016;26:423-8.

7. Leite M de F, Aoun NB, Borges MS, Magalhães ME, Christiani LA. Marfan’s syndrome: early and severe form in siblings. Arq Bras Cardiol. 2003 Jul;81(1):89-92,85-8. English, Portuguese. DOI: https://doi.org/10.1590/s0066-782x2003000900008

8. Van Andel MM, Indrakusuma R, Jalalzadeh H, Balm R, Timmermans J, Scholte AJ, et al. Long-termclinical outcomes of losartan in patients with Marfan syndrome: follow-up of the multicentre randomized controlled COMPARE trial. Eur Heart J. 2020 Nov;41(43):4181-7. DOI: https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehaa377.

9. Stark VC, Huemmer M, Olfe J, Mueller GC, Kozlik-Feldmann R, Mir TS. The pulmonary artery in pediatric patients with Marfan syndrome: an underestimated aspect of the disease. Pediatr Cardiol. 2018 Aug;39(6):1194-9. DOI: https://doi.org/10.1007/s00246-018-1880-1.










1. Instituto da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, Fernandes Figueira - FIOCRUZ, Setor de Cardiologia Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. UNIGRANRIO, Pós-graduação - Cardiologia - Duque de Caxias - Rio de Janeiro - Brasil
3. Instituto da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, Fernandes Figueira - FIOCRUZ, Serviço de Genética - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:

Maria de Fátima Monteiro Pereira Leite
Instituto da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, Fernandes Figueira - FIOCRUZ, Setor de Cardiologia Pediátrica
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
E-mail: mfatima2@yahoo.com

Data de Submissão: 07/02/2021
Data de Aprovação: 18/02/2021