Caso Clínico - Ano 2015 - Volume 5 - Número 1
Endocardite bacteriana em recém-nascido
Bacterial endocarditis in newborn
Endocardite bacteriana en recém-nascido
Endocardite infecciosa é uma doença em que patógenos invadem as superfícies endocárdicas, produzindo inflamação e danos. Decorre de uma infecção causada por bactérias, vírus, fungos, micobactérias ou rickettsias. Na maioria das vezes, ocorre em pessoas com anormalidades pré-existentes do sistema cardiovascular1,2. A prevalência de endocardite infecciosa na população geral foi estimada entre 14 e 38 casos por milhão de habitantes, compreendendo cerca de 0,2% a 0,5% de todas as internações pediátricas no mundo1-3. No período neonatal, a endocardite é rara e pode estar associada à elevada mortalidade. O diagnóstico, muitas vezes, é um achado de necropsia.
RELATO DE CASO
Recém-nascido de 34 semanas, sexo feminino; mãe fez acompanhamento pré-natal irregular, com quatro consultas; gestação gemelar. Realizou sorologia do Iped/Apae para erros inatos do metabolismo (http://www.ipedapae.org.br/noticia/iped-conta-com-alta-tecnologia-em-triagem-neonatal-4) de primeiro trimestre, todas não reagentes. Sorologias de terceiro trimestre não realizadas. Negava infecções durante gestação. Paciente nasceu de parto cesáreo, em boas condições de nascimento, Índice de Apgar 8/9 ao nascimento. Não estava fazendo uso de medicações e não possuía acesso central.
Com 10 dias de vida, realizado ecocardiograma de rotina : evidenciada imagem pedunculada, pouco móvel na junção da veia cava com átrio direito, medindo aproximadamente 3x3 mm. A paciente apresentava-se assintomática, porém, o hemograma mostrava anemia (hemoglobina = 8,7 mg/dl). Iniciada antibioticoterapia com ampicilina e gentamicina; solicitada hemocultura (HMC), que foi positiva para Staphyilococcus epidermidis resistente à gentamicina. Após discussão com a Comissão de controle de infecção hospitalar (CCIH), optou-se pela manutenção de ampicilina e gentamicina. Após 7 dias de antibioticoterapia, foi solicitada nova HMC, para controle do tratamento, que persistia positiva para Staphyilococcus epidermidis. Persistia a anemia sem outras alterações. No 14º dia de antibioticoterapia, nova HMC ainda foi positiva para Staphyilococcus epidermidis, resistente à gentamicina e sensível à oxacilina, teicoplamina e vancomicina. Anemia com reticulocitose de 3%. Realizado novo ecocardiograma: persistência da imagem pedunculada em junção da veia cava com átrio direito. Optou-se, então, pela troca de antibioticoterapia por teicoplamina e tazocin.
Com 7 dias de início da antibioticoterapia com teicoplamina e tazocin, foi realizada nova hemocultura, que foi negativa; hemograma com anemia e reticulocitose de 22%. Mantida a antibioticoterapia. HMC de controle novamente negativa; hemograma com Hb - 11,8 mgdl, reticulócitos de 11%. Novo ecocardiograma foi normal. Progressivamente, houve melhora da anemia (Hb = 9 mgdl e reticulócitos = 1%). Mantida terapia antibiótica por 28 dias conforme protocolo, totalizando seis semanas de antibioticoterapia. Houve boa evolução.
DISCUSSÃO
A endocardite infecciosa (EI) no período neonatal é uma doença rara. Até a década de 1980, o diagnóstico da doença em neonatos era extremamente difícil, realizado quase sempre através de necropsia; a letalidade era de 100%. A presença de cardiopatia congênita é considerada um importante fator de risco, sendo observada em 8% dos neonatos com endocardite. Em crianças sem malformação cardíaca, com cateter venoso central, a formação de trombo e colonização bacteriana ou fúngica representam a forma mais comum de infecção do endocárdio2-4.
A cultura positiva é um dos achados mais relevantes para o diagnóstico. Os principais agentes da EI são: Streptococcus do grupo viridans (S. milleri, S. mitior, S. salivarius, S. mutans e S. sanguis), em especial nos pacientes com cardiopatia congênita; Staphylococcus aureus, geralmente está associado ao uso de cateter venoso central e de drogas injetáveis; Staphylococcus epidermidis acomete geralmente pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca e recém-nascidos e prematuros que fazem uso de cateter venoso central.
No recém-nascido, a apresentação é inespecífica. São frequentes as embolias sépticas com localizações exteriores ao coração, como: ossos, meninge ou pulmão. Os critérios para diagnóstico da endocardite mais aceitos atualmente são os critérios de Duke, que incluem os parâmetros do exame ecocardiográfico.
Critérios maiores3,4
Hemocultura positiva para EI; Micro-organismo típico para EI de duas hemoculturas isoladas (Streptococcus viridans, Streptococcus bovis, grupo HACEK ou Staphylococcus aureus); Hemoculturas persistentemente positivas; Evidência de envolvimento endocárdico, ecocardiograma positivo para EI; Novo sopro regurgitante;
Critérios menores
Predisposição: lesão cardíaca prévia; Febre maior que 38 ºC; Fenômenos vasculares (ex.: lesões de Janeway); Fenômenos imunológicos (ex.: nódulos de Osler); Evidência microbiológica: hemocultura positiva, mas sem critério maior; Ecocardiograma: consistente com endocardite, mas sem critério maior;
No nosso paciente, após o surgimento da endocardite bacteriana, houve o desenvolvimento de anemia, com níveis aumentados de reticulócitos, provavelmente devido ao processo infeccioso. Na doença crônica, atuam pelo menos três mecanismos: alterações na eritropoese, diminuição da sobrevida das hemácias e resposta inadequada da medula à hemólise. Após a invasão bacteriana, ocorre a resposta inflamatória com a liberação de alguns mediadores, como as citocinas: interleucina-1 (IL-1), interleucina-6 (IL-6), fator de necrose tumoral alfa (FNTα) e interferon gama (INFγ). Tais mediadores atuam inibindo a eritropoese, diminuindo a disponibilidade do ferro para as bactérias, aumentando a síntese de ferritina, suprimindo a assimilação do ferro intestinal, aumentando a retenção de ferro pelos macrófagos, induzindo a retirada de ferro dos locais de invasão bacteriana pela apolactoferrina e provocando a síntese de anticorpos contra o sistema de captação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A endocardite é uma doença de diagnóstico difícil, principalmente no período neonatal, que requer uma investigação detalhada. Deve ser considerada em todo recém-nascido sob cuidados intensivos por período prolongado e com culturas positivas. Este caso raro de endocardite infecciosa no período neonatal reforça a importância do conhecimento dos fatores de risco e dos sinais sugestivos deste diagnóstico, de forma a instituir medidas diagnósticas e terapêuticas adequadas.
REFERÊNCIAS
1. Costa MAC, Wollmann Jr DR, Campos ACL, Cunha CLP, Carvalho RG, Andrade DF, et al. Índice de risco de mortalidade por endocardite infecciosa: um modelo logístico multivariado. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2007;22(2):192-200. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-76382007000200007
2. Carceller A. Endocardite infecciosa. An Pediatr (Barc). 2005;63(5):383-9.
3. Barbosa MM. Endocardite infecciosa: perfil clínico em evolução. Arq Bras Cardiol. 2004;83(3):189-90. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0066-782X2004001500002
4. Pereira CAZ, Rocio SCGP, Ceolin MFR, Lima APNB, Borlot F, Pereira RST, et al. Achados clínico-laboratoriais de uma série de casos com endocardite infecciosa. J Pediatr (Rio J.). 2003;79(5):423-8.
Medico residente em pediatria
Endereço para correspondência:
Emerson Wacholz Garcia
Hospital Regional Rosa Pedrossian
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Campo Grande - MS, Brasil