ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Encefalite por leptospirose em paciente pediátrico: relato de caso

Leptospirosis encephalitis in a pediatric patient: case report

RESUMO

Descrição de um caso de encefalite por infecção de leptospirose em paciente pediátrico.

Palavras-chave: “Leptospirose”, “encefalite”, “Pediatria”.

ABSTRACT

Description of a case of encephalitis due to leptospirosis infection in a pediatric patient. Male patient, 11 years old, with a history of high daily fever for 15 days, associated with excessive sleepiness, periods of irritability, headache, myalgia, without respiratory symptoms.

Keywords: Leptospirosis, Encephalitis, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A encefalite caracteriza-se como uma inflamação do parênquima cerebral causada por uma infecção ou autoimunidade e resulta em uma alteração neurológica, sendo considerada uma emergência neurológica1,2. A encefalite reflete em taxas altas de morbidade e sequelas neurológicas definitivas, além de atingir, anualmente, 1/100.000 crianças na faixa etária dos 10-15 anos de idade. Ademais, a etiologia mais comum de encefalite é viral, tendo como agentes mais comuns o herpes vírus I e II, enterovírus não pólio e arbovírus1. A suspeita de encefalite deve acontecer na presença de sinais e sintomas de disfunção do sistema nervoso que se apresentem de forma aguda, associados a manifestações sistêmicas ou história de exposição a fatores de risco conhecidos. Sinais indiretos de inflamação no aspecto clínico e testes de neuroimagem ou análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) são os mais utilizados. Além disso, a eletroencefalografia (EEG) deve ser feita em todos os pacientes para a detecção de atividade epiléptica1,2.

A leptospirose é uma infecção causada pela bactéria do gênero Leptospira, classificada como uma espiroqueta aeróbica móvel. Ressalta-se a L. interrogans como patogênica ao ser humano. É considerada uma das zoonoses mais importantes do mundo devido à sua distribuição global3. Apesar da sua relevância, a leptospirose é uma doença subnotificada e apresenta incidência continental, com predomínio em áreas tropicais. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que há, anualmente, 873.000 casos, dos quais 48.600 vão a óbito. Importante salientar que as bactérias apresentam os roedores como principais hospedeiros definitivos e via de transmissão4.

O quadro clínico da leptospirose consiste em uma doença infecciosa febril de início repentino que varia de quadros leves até formas mais graves. Classifica-se a sintomatologia da doença em duas fases: precoce e tardia. A primeira caracteriza — maior parte dos casos — febre, cefaleia, mialgia, anorexia, vômitos, diarreia, hiperemia conjuntival, artralgia. Todavia uma pequena parcela dos pacientes progride para a fase tardia, que apresenta sintomas mais graves, como síndrome de Weil (icterícia, insuficiência renal e hemorragias). Ela ainda pode gerar miocardite, pancreatite, anemia e distúrbios neurológicos. Dentre esses, ressalta-se a meningite asséptica e encefalite (menos usual). Para seu diagnóstico, utiliza-se a sorologia por meio de técnicas como ELISA-IgM e microaglutinação (MAT)5. O tratamento baseia-se primordialmente em antibioticoterapia associada ao tratamento de suporte6.

Ao se relacionar as duas patologias, encontra-se, na literatura, que é pouco improvável que o primeiro sintoma dos pacientes com leptospirose envolva sintomas neurológicos. Porém manifestações do sistema nervoso estão presentes em 10 a 15% dos casos e são facilmente não identificadas. Estudos sugerem que a bactéria penetra o líquido cefalorraquidiano (LCR) em até 48 horas após sua inoculação7. Segundo Mathew et al. (2006)10, dentre os sintomas neurológicos, alteração sensorial é o predominante, seguido por convulsões, sendo a encefalite presente em 26% dos casos de alterações do sistema nervoso. Há relatos que os distúrbios sensoriais estão associados a um aumento da mortalidade nos casos de leptospirose com acometimento nervoso8.

Objetivou-se relatar um caso de encefalite por leptospirose em paciente pediátrico, analisando as duas condições e, posteriormente, relacioná-las com o quadro clínico presente do relato.


RELATO DE CASO

Paciente masculino, 11 anos, com história de febre alta e diária há 15 dias, associada à sonolência excessiva, períodos de irritabilidade, cefaleia, mialgia, sem sintomatologia respiratória. Foi internado, no hospital da cidade de procedência, com progressão da sintomatologia com vômitos e diarreia, sem sangue ou muco. Após a realização de exames, constatou-se proteína C-reativa de 12mg/l (referência: 0.9mg/l), hemograma sem alterações, exame de liquor com resultado normal, presença de linfonodomegalia junto ao hilo hepático em ultrassonografia e sorologias negativas para dengue, coronavírus e citomegalovírus. Foi realizada sorologia de leptospirose, mas sem resultado disponível. Paciente fez uso durante a internação na origem para quadro de faringoamigdalite associada à adenite cervical diagnosticada no serviço, porém sem melhora do quadro febril, sendo transferido para hospital pediátrico terciário de Londrina/PR. Paciente deu entrada em regular estado geral, sonolento, escala de Glasgow 12, confuso, com alguns períodos de agitação psicomotora, taquipneico (28irm), abdômen pouco doloroso à palpação e região cervical com linfonodos de característica benigna. No segundo dia de internação, equipe médica recebeu resultado positivo (IgM = 59.7 U/mL) para sorologia de leptospirose realizada na cidade de origem. Ao ser avaliado pela infectologia, paciente apresentava períodos de sonolência, febre, baixa aceitação alimentar, vômitos e diarreia. Durante anamnese, família relatou que a criança brincou em local abandonado com presença de ratos há aproximadamente um mês do início dos sintomas. Foi iniciado tratamento com penicilina G cristalina, ondansetrona, zinco, soroterapia de manutenção e sonda nasoenteral para dieta devido à sonolência excessiva. Novamente, foi realizada sorologia de leptospirose (enviada ao Laboratório Central do Estado - LACEM) e outros exames, dentre eles, houve um leve aumento de enzimas hepáticas (TGO = 58U/L e TGP = 100U/L). No sétimo dia de internação, paciente persistiu febril e sonolento. Assim, foi realizada uma tomografia computadorizada (TC) de crânio de controle com alterações inespecíficas, sugerindo edema localizado. Além disso, apresentou eletroencefalograma com atividade irritativa difusa e coleta de liquor com presença de hemácias (213/ mm3), leucocitose (54/mm3) com predomínio linfocítico (sen-do 94% linfócitos e 6% neutrófilos) e proteínas discretamente aumentadas (61.4 mg/dl). Foi optado por ampliar o esquema terapêutico, iniciado ceftriaxone, aciclovir e dexametasona devido à persistência da febre, alterações neurológicas mantidas e a possibilidade da coinfecção bacteriana ou viral na infecção do sistema nervoso central (SNC). Com isso, houve melhora clínica e, no 13º dia de internação, paciente estava mais ativo e afebril, capaz de sentar-se ao leito e ficar de pé com auxílio. Todavia, no 15º dia de internação, houve recrudescência da febre e presença de monilíase oral. Foram colhidos novos exames laboratoriais, nos quais foi encontrada discreta plaquetopenia. Foi optado por ampliar esquema antimicrobiano com vancomicina, meropenem e fluconazol, o qual trouxe boa resposta clínica e laboratorial. No 20º dia de internação, foi realizada coleta de liquor de controle com presença de hemácias, leucócitos levemente aumentados, sem presença de organismo coráveis em Gram e cultura negativa. No dia seguinte, efetuou-se ressonância magnética (RM) de encéfalo que mostrou discreta redução volumétrica dos hipocampos, com sinais de má rotação hipocampal à esquerda. Nesse mesmo dia, o resultado da segunda coleta de sorologia para leptospirose foi recebido pela equipe, com a presença de IgM para a doença. Após 37 dias de internação, paciente recebeu alta, ainda com sequelas cognitivas e motoras. Retornou em serviço ambulatorial para acompanhamento com terapia para recuperação dos movimentos e fala, ainda com limitações advindas do quadro clínico.


DISCUSSÃO

A incidência anual de encefalite é de 5-10 casos/100.000 habitantes, ocorrendo mais em crianças e idosos9. Além disso, é conhecido que esse número é alto até os 10 anos de idade e diminui com o passar dos anos7. Sabe-se, também, que a etiologia mais comum da doença é pelos Enterovirus e Herpes vírus simples tipo 1. Dessa forma, nota-se que o paciente M.A.R.B se enquadra dentro dos dados epidemiológicos e faz parte do grupo em que a encefalite é mais predominante. No entanto, quanto ao agente etiológico, o caso relatado mostra a infrequência da encefalite por leptospirose. Não se encontram dados estatísticos sobre a encefalite por leptospirose na literatura devido à sua raridade, ressaltando a importância do caso acima.

Os quadros de leptospirose podem ser leves e autolimitados ou graves e potencialmente fatais. Por via de regra, inicia-se com quadros de febre, mialgia e cefaleia, vistos no paciente do caso. Outros sintomas, como sufusão conjuntival, tosse não produtiva, artralgias, dores ósseas, abdominais e de garganta também podem estar presentes, porém, apesar da dor abdominal associada à diarreia, os outros sintomas não foram relatados nesse paciente. Notou-se um predomínio de sintomas do sistema nervoso em relação a outros, o que não é comum em quadros iniciais de leptospirose4,7.

A sintomatologia neurológica da leptospirose é vista em uma menor quantidade de pacientes e está mais frequentemente associada a casos de meningite asséptica e, mais raramente, à encefalite. Devido a isso, há poucos relatos de encefalite por Leptospira spp., o que torna o caso relatado de grande relevância. Além disso, relata-se que as formas neurológicas estão associadas a quadros graves de leptospirose5,8. Apesar disso, o paciente em questão não apresentava outras manifestações de gravidade, como síndrome de Weil, como também, exibiu sinais de acometimento nervoso desde o início do quadro. Panicker et al. relatou que a presença de convulsões e alteração no quadro de consciência estão associadas a pior prognóstico, além de serem sintomas indicativos de encefalite. Todavia, o paciente não apresentou quadros de convulsões, apesar da sonolência excessiva e quadros de irritabilidade.

Ao se fazer avaliação de pacientes com leptospirose, os exames laboratoriais são de grande relevância. O hemograma é fundamental, pois permite diferenciar se a etiologia é semelhante a quadro viral ou bacteriano, além de, geralmente, mostrar quadros de plaquetopenia e anemia. O paciente relatado apresentou, inicialmente, um predomínio de linfócitos, que sugere infecção viral. Porém, após duas semanas, notou-se o predomínio de leucócitos segmentados (neutrófilos), associando-se ao quadro bacteriano6. Estudos relatam que infecções por leptospiroses estão associadas a aumento de bilirrubinas totais (predomínio da fração direta), todavia, tal alteração não é vista no paciente. Ressalta-se ainda que aumento de enzimas hepáticas pode ser encontrado, com predomínio de TGO (AST), rotineiramente, de até cinco vezes o valor de referência. Apesar de haver aumento das enzimas hepáticas do paciente, o predomínio foi de TGP (ALT). Ademais, alterações de função renal podem estar presentes, apesar de não terem ocorrido no paciente5.

A avaliação complementar, através de análise de líquido cefalorraquidiano (LCR), na neuroleptospirose, é de grande valia. Mathew et al. (2006)10, em estudo de leptospirose com acometimento nervoso, relatou aumento de células na maioria dos pacientes com a doença. Desse montante, houve o predomínio de células linfocitária em relação a outras (72% dos pacientes), enquanto 18% apresentaram predomínio neutrofílico. De forma semelhante a isso, a análise do LCR da criança apresentou aumento de celularidade com predomínio linfocitário10. Ademais, a TC de crânio pode auxiliar na avaliação da lesão. Estudos indicam que há presença de edema cerebral difuso na imagem. Porém, no caso relatado, observou-se edema localizado (região frontoparietal), haja vista a presença de hipodensidade e obliteração de sulcos.

A conduta terapêutica na fase tardia da leptospirose é realizada com penicilina G cristalina intravenosa por, pelo menos, sete dias concomitante às medidas de suporte, como hidratação, ventilação e monitorização renal5. Segundo Edmond et al., o uso de ampicilina, manitol e corticoesteroides foram efetivos no tratamento do seu paciente com encefalite por leptospirose. Inicialmente, o paciente acima citado foi tratado com penicilina cristalina, no entanto, optou-se por ampliar a terapia com ceftriaxone, aciclovir e dexametasona por persistência da febre e dos sintomas neurológicos. Após utilizou o esquema vancomicina, meropenem e fluconazol devido à presença de flebite extensa em local de acesso venoso e monilíase oral sem resposta ao tratamento tópico com nistatina. Com isso, obteve-se sucesso terapêutico com melhora clínica e laboratorial. Devido à pouca literatura e subnotificações de caso, não há consenso de tratamento na encefalite por leptospirose.

Assim, infere-se que, apesar de a leptospirose ser uma zoonose comum em países tropicais, como Brasil, a manifestação de encefalite por Leptospira spp. é pouco relatada. Ao longo da revisão de literatura, notou-se uma carência significativa de artigos que abordassem o assunto, o que está associado à sua raridade. Todavia urge o desenvolvimento de novas pesquisas acerca de encefalite por leptospirose, haja vista a gravidade dos casos, o prognóstico incerto dos poucos casos descritos no mundo e a falta de fontes sobre terapêutica desse quadro.


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Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Medicina - Londrina - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Camila Arfelli Cabrera
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E-mail: caarfelli@hotmail.com

Data de Submissão: 11/02/2021
Data de Aprovação: 20/08/2021