ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 3

Enterocolite necrosante neonatal: relato de caso e revisão de literatura

Neonatal necrotizing enterocolitis: case report and literature review

RESUMO

A enterocolite necrosante neonatal (ECN) é uma síndrome caracterizada por inflamação e necrose isquêmica do trato gastrointestinal que pode cursar com manifestações clínicas variáveis, como distensão abdominal, vômitos biliosos, hematoquezia, resíduos gástricos frequentes, diminuição de ruídos hidroaéreos, alterações fecais. O quadro geralmente está associado a sinais sistêmicos (palidez, apneia, hipoatividade, distermias). A ECN pode se manifestar com necrose parcial do intestino e ter recuperação completa, necessitando apenas de tratamento clínico. Relato de caso: recém-nascido (RN) de T.A.A., sexo feminino, prematura (33 semanas e 5 dias), extremo baixo peso (888g), APGAR 8/9, encaminhada para Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTI Neo). No 1º dia de vida, apresentou distensão abdominal importante e débito bilioso pela sonda orogástrica (SOG). Eliminou mecônio após estímulo retal, com 43 horas de vida. Manteve quadro de distensão abdominal até 10º dia de vida, evoluindo, com melhora progressiva (redução da distensão abdominal, mudança do aspecto do débito por SOG), após instituição de terapêutica adequada. No 11º dia de vida, iniciou dieta enteral mínima, progredida paulatinamente, tendo alcançando sucesso na progressão de dieta. A enterocolite é uma das emergências gastrointestinais mais frequentes em neonatos, afeta com maior frequência os recém-nascidos prematuros, principalmente os que nascem com muito baixo peso. Estudos indicam o aumento recente da incidência de ECN nas UTI Neo, em diversos países, devido ao aumento da sobrevida dos RN prematuros. Portanto, demanda-se a necessidade de uma maior difusão de conhecimentos a respeito da patologia; principalmente entre os profissionais de saúde que atuam nessas unidades.

Palavras-chave: Enterocolite, Enterocolite necrosante, Doenças do recém-nascido.

ABSTRACT

Neonatal necrotizing enterocolitis (NEC) is a syndrome characterized by inflammation and ischemic necrosis of the gastrointestinal tract that can course with variable clinical manifestations: such as abdominal distension, bilious vomiting, hematoquezia, frequent gastric waste, decreased hydro-air noises, fecal changes. The condition is usually associated with systemic signs (pallor, apnea, hypoactivity, dysthermias). NEC can manifest with partial intestinal necrosis and have complete recovery, requiring only clinical treatment. Case report: newborn (NB) of T.A.A., female, premature (33 weeks and 5 days), extremely low weight (888g), APGAR 8/9, referred to the Neonatal Intensive Care Unit (ICU NEO). On the 1st day of life, he presented significant abdominal distension and bilious debt by the orogastric tube (SOG). It eliminated meconium after rectal stimulation, with 43 hours of life. He maintained abdominal distension until the 10th day of life, progressing, with progressive improvement (reduction of abdominal distension, change in the aspect of the debt by SOG), after the institution of adequate therapy. On the 11th day of life, he started a minimal enteral diet, progressing gradually, achieving success in diet progression. Enterocolitis is one of the most frequent gastrointestinal emergencies in neonates, most frequently affecting premature newborns, especially those born with very low birth weight. Studies indicate the recent increase in the incidence of NEC in NEO ICUs, in several countries, due to the increased survival of premature newborns. Therefore, there is a need for a greater dissemination of knowledge about the pathology; mainly among health professionals who work in these units.

Keywords: Enterocolitis, Enterocolitis, necrotizing, Infant, newborn, diseases.


INTRODUÇÃO

A enterocolite necrosante neonatal (ECN) é uma síndrome caracterizada por inflamação e necrose isquêmica do trato gastrointestinal que pode cursar com manifestações variadas, como distensão abdominal, vômitos biliosos e hematoquezia, assim como resíduos gástricos frequentes (biliosos ou não), diminuição de ruídos hidroaéreos, alterações fecais, eritema na parede abdominal e massa abdominal palpável1. Esses sintomas geralmente estão associados a sinais sistêmicos (como palidez, apneia, hipoatividade, distermias), que podem acontecer em intensidade variável e progressiva2.

Essa patologia é uma das emergências gastrointestinais mais frequentes em neonatos, afeta com maior frequência os bebês prematuros, principalmente os que nascem com menos que 100 gramas (extremo baixo peso - EBP). Os recém-nascidos (RN) a termo somam 10% dos casos de ECN, e os pré-termo, pequenos ou não para a idade gestacional, 90% dos casos2,3.

Aspecto importante a ser observado nessa síndrome é a dificuldade de estabelecimento de diagnóstico precoce, portanto, da implementação de intervenção terapêutica prematura. Tal fato se deve a que sinais e sintomas iniciais podem ser inespecíficos e variáveis quanto à sua forma e período de apresentação4.

Estudos indicam um aumento recente da incidência de enterocolite nas Unidades de Terapia Intensivas Neonatais (UTI Neo), em diversos países, devido ao aumento da sobrevida das crianças com baixo peso, demandando-se a necessidade de uma maior difusão de conhecimentos a respeito da patologia, principalmente entre os profissionais de saúde que atuam nessas unidades. Informações sobre o manejo adequado devem ser compartilhadas com a finalidade de redução da incidência e das complicações associadas à ECN5.


RELATO DE CASO

Mãe de 27 anos, G2P1A0, pré-natal incompleto. Sem intercorrências durante gestação. No ultrassom (33 semanas), foi detectada centralização fetal, restrição de crescimento intrauterino e oligodrâmnio, sendo indicado parto cesáreo. Feito corticoide antenatal.

Recém-nascido de T.A.A., feminino, 33 semanas, EBP (888g), Apgar 8/9, evoluiu com desconforto respiratório precoce, sendo encaminhada para UTI Neo e iniciada antibioticoterapia.

No 1º dia de vida, evoluiu com distensão abdominal, débito bilioso pela sonda orogástrica (SOG); com abdome flácido à palpação. Eliminou mecônio após estímulo retal, com 43 horas de vida.

No 2º dia de vida, apresentou hiperemia em região de parede abdominal; sendo retirado cateter umbilical, iniciada nutrição parenteral e mantida em jejum. Solicitada radiografia de abdômen, sem alterações significativas.

No 5º dia de vida, observou-se débito claro pela SOG, abdômen flácido, doloroso, sendo mantido jejum por 5 dias. No 7º dia de vida, hemograma evidenciou leucocitose e plaquetopenia, sendo escalonado antibiótico.

Do 5º ao 10º dia de vida, permaneceu sem distensão abdominal, débito claro por SOG. No 10º dia de vida, SOG foi fechada. Radiografias de abdômen seriadas não mostraram alterações significativas e ultrassonografia abdominal sem alterações.

No 11º dia de vida, iniciou dieta enteral mínima, optado por colostro no volume de 1ml de 3 em 3 horas, progredida no 12º dia de vida para 2ml, com manutenção da nutrição parenteral; quando apresentou episódios de apneia com cianose central, realizada intubação orotraqueal, voltando ao jejum.

No 14º dia de vida, apresentou distensão abdominal leve, porém abdômen flácido e débito claro por SOG. Evacuações ausentes desde o dia anterior. Antibiótico foi escalonado devido à piora clínica e laboratorial. Mantida em jejum e SOG aberta por 24h.

No 15º dia de vida, ocorreu extubação acidental, tolerou oxigênio circulante.

Evoluiu com sucesso na progressão de dieta e melhora clínico-laboratorial. A dieta foi iniciada com 2mL de leite humano ordenhado (LHO) via SOG e progredida 20mL/kg/dia, até atingir o volume pleno. Paciente recebeu alta da UTI após estabilidade clínica, dieta plena e peso necessário para alta.

A hipótese diagnóstica foi de enterocolite suspeita, estágio IA, conforme classificação de Bell.


REVISÃO DE LITERATURA E DISCUSSÃO

A ECN tem origem multifatorial, atinge o trato gastrintestinal do RN, principalmente do pré-termo. É a causa mais comum de urgência gastrintestinal nessa população, principalmente nos RN com EBP3.

A doença apresenta um espectro amplo, que pode variar de um caso leve até formas mais graves (caracterizadas por necrose intestinal, perfuração e peritonite difusa). Aqueles que apresentam necrose parcial do intestino podem evoluir com recuperação completa, necessitando apenas de tratamento clínico6. No caso acima descrito, foi necessário apenas tratamento clínico e o RN teve recuperação completa do quadro.

O Quadro 1, a seguir, apresenta fatores de risco ou fortemente associados à ECN.





Os principais fatores de risco apresentados neste caso clínico foram prematuridade e provável colonização bacteriana anormal, além de infecção constatada em hemocultura.

A prematuridade se associa à ECN devido à imaturidade da barreira intestinal, peristalse alterada, mudança da microflora intestinal, sobrecarga da dieta enteral, além da imunidade intestinal imatura7.

Cerca de 90 a 95% das crianças que desenvolveram ECN iniciaram, reiniciaram ou estavam progredindo a dieta via oral por fórmula. O leite materno é capaz de reduzir em até dez vezes a ocorrência de ECN quando comparado às fórmulas enterais, pois contém fatores bioativos que influenciam na proteção da barreira mucosa e na imunidade, além de aumentar a diversidade bacteriana intestinal, contém fatores imunomoduladores6.

A distensão abdominal é o achado clínico inicial mais comum, ocorre em 70 a 90% dos casos. Outros achados são: estase gástrica ou vômitos, sangue nas fezes, hiperemia de parede abdominal, sensibilidade abdominal. Aspirado gástrico ou vômito bilioso ocorre em 32% dos doentes. Os achados clínicos inespecíficos incluem letargia, distermias, apneia recorrente, bradicardia, choque8.

A radiografia abdominal pode contribuir com informações importantes, mas não é essencial para o diagnóstico, pois pode não haver qualquer alteração radiológica. É útil para avaliação da presença de gás em parede de alça, presença de gás no sistema porta e de gás livre abdominal8.

O manejo clínico deve ser iniciado tão logo quando houver suspeita de ECN, e é composto por5:


• jejum, para o repouso intestinal;
• utilização de SOG aberta para a descompressão do trato gastrintestinal;
• nutrição parenteral total, durante o período de jejum e retomada da dieta, até atingir seu volume pleno;
• administração de fluidos, para corrigir perdas; suporte cardiovascular e respiratório;
• uso de antibióticos de amplo espectro, oferecendo cobertura para patógenos que causam bacteremia de início tardio (sepse ≥72 horas de vida), sendo importante a cobertura para anaeróbios quando houver suspeita de perfuração intestinal; 10 a 14 dias de tratamento geralmente são suficientes. Se houver suspeita de fungemia, deve-se iniciar fluconazol ou anfotericina B.
• realizar exames físicos em série, além de estudos laboratoriais e radiológicos, para monitorar o curso da doença e a resposta às terapias.


A intervenção cirúrgica se dá para os que apresentam evidência de pneumoperitônio, indicando que há perfuração intestinal por necrose severa, sendo a única indicação absoluta9. A drenagem peritoneal primária ou a laparotomia exploradora com ressecção da(s) região(ões) intestinal(is) afetada(s) são os principais procedimentos cirúrgicos realizados, a escolha é baseada na experiência da equipe de cada centro5.

Bell e colaboradores10, em 1978, desenvolveram uma classificação baseada em achados da história, aspectos clínicos e radiológicos (Quadro 2).





As principais estratégias de prevenção da ECN são prevenção da prematuridade com fortalecimento do pré-natal, uso do leite materno, corticoide pré-natal (promove a maturação intestinal), avanço lento da dieta enteral (nutrição parenteral e avanço mínimo da dieta); outras medidas como uso de probióticos, antioxidantes (vitamina E), suplementação de lactoferrina, são promissores, mas ainda estão em estudo11.

Atualmente, tem-se dado grande importância ao papel preventivo da suplementação enteral com probióticos, evidências mostram redução de ECN e mortalidade em bebês que nasceram com muito baixo peso (MBP)12-14. Além disso, há indícios de que o uso de probióticos ocasione redução de infecção invasiva, de início tardio, em bebês prematuros ou RN com MBP13. Seu mecanismo de ação ocorre pela competição com patógenos por nutrientes, limitando o crescimento de tais patógenos9. Outras ações descritas são: ampliar a expressão de enzimas digestivas intestinais, estimular a diferenciação e proliferação de enterócitos e aperfeiçoar a integridade da barreira mucosa intestinal15.

Apesar dos benefícios de seu uso, são encontradas barreiras para uso profilático nas UTI Neo, tais como: dificuldade de consenso sobre constituição ideal de probióticos, sobre quais cepas utilizar, número de doses, tempo de introdução e duração da terapêutica13. Além disso, foi descrito risco de sepse, bacteremia e fungemia associadas ao seu uso, havendo a possibilidade de consequências potenciais no longo prazo12.


CONCLUSÃO

Devido ao aumento na incidência de ECN nas UTI Neo em diversos países e, ainda, aumento nas taxas de sobrevida das crianças com baixo peso, é necessária uma maior difusão de conhecimentos acerca dessa patologia, principalmente entre os profissionais de saúde que atuam nessas unidades, para que haja redução na incidência, bem como um manejo adequado, evitando assim suas complicações.

Devem ser implementadas intervenções como prevenção da prematuridade, com fortalecimento do pré-natal na rede pública de saúde, alimentação precoce do recém-nascido, com preferência do uso do leite humano para alimentação do RN, além de investigação diagnóstica precoce diante do quadro clínico apresentado que leve à suspeição de ECN.

Sabemos, portanto, que a melhor prática clínica pauta-se na prevenção e diagnóstico precoce dessa patologia e que tais medidas geram impactos consideráveis na sobrevida desses pacientes.


REFERÊNCIAS

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Data de Submissão: 18/02/2021
Data de Aprovação: 12/05/2021