Relato de Caso
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Ano 2023 -
Volume 13 -
Número
3
Manifestações raras de apresentação de tuberculose em crianças: série de casos
Rare manifestations of tuberculosis in children: a case series
Halana Salles Amorim Tavares Sias1; Yoana Palatianos de Araújo1; Fernanda Pinheiro Barra1; Caio Pluvier Duarte Costa1; Selma Azevedo Sias1; Clemax Couto Sant'anna2; Christiane Mello Schmidt1; Claudete Araújo Cardoso1
RESUMO
Tuberculose (TB) é uma doença infectocontagiosa que impõe um desafio na prática pediátrica, uma vez que crianças podem apresentar manifestações raras, o que dificulta o seu diagnóstico. São apresentados cinco casos de manifestações pouco comuns de TB em crianças vacinadas com BCG ao nascer e sem história de contato prévio com adulto bacilífero. Ressalta-se a dificuldade e a importância da suspeição diagnóstica da TB em quadros raros da doença em crianças.
Palavras-chave:
Criança, Tuberculose, Evolução clínica.
ABSTRACT
Tuberculosis (TB) is an infectious and contagious disease that poses a challenge in pediatric practice, since children can present rare manifestations, which makes their diagnosis difficult. Five cases of uncommon manifestations of TB are presented in children vaccinated with BCG at birth and with no history of previous contact with bacilliferous adults. The difficulty and importance of the diagnostic suspicion of TB in rare cases of the disease in children is emphasized.
Keywords:
Child, Tuberculosis, Clinical evolution.
INTRODUÇÃO
A tuberculose (TB) permanece como um problema de saúde pública. Em 2019, cerca de 10 milhões de pessoas adoeceram por TB no mundo, e aproximadamente 12% dos casos foram em crianças1. O subdiagnóstico da TB pediátrica é frequente, principalmente em se tratando de países de alta prevalência da doença. Trata-se de uma infecção que acomete principalmente os pulmões, podendo evoluir com doença em sítio pulmonar ou extrapulmonar. Em contato com um adulto bacilífero, crianças menores de dois anos ou imunocomprometidas têm maior risco de desenvolver formas graves da doença2. A frequente inespecificidade dos sinais e sintomas, a característica paucibacilar da doença e a dificuldade de expectoração em crianças (menores de 10 anos) tornam o diagnóstico um grande desafio na TB pediátrica3,4. Dessa forma, o diagnóstico, em geral, baseia-se em parâmetros clínico, radiológico, imunológico e epidemiológico, e, menos, na confirmação bacteriológica ou molecular do patógeno5,6. Por outro lado, a TB no adolescente (com 10 anos ou mais), em geral, apresenta-se de modo semelhante ao adulto, permitindo muitas vezes a confirmação bacteriológica do paciente2. No Brasil, é preconizado o sistema de pontuação para o diagnóstico da TB pulmonar em crianças e nos adolescentes com baciloscopia negativa ou Gene Xpert MTB/RIF não detectado7.
A TB extrapulmonar (TBEP) é decorrente do processo de disseminação hematogênica e linfática do Mycobacterium tuberculosis a partir dos pulmões durante a primo-infecção por TB, que pode levar ao implante de focos de infecção em outros órgãos8. De todos os casos notificados de TB no mundo em 2018, 15% eram TBEP1. Apesar disso, ainda é pouco conhecido o impacto global da TBEP, devido à sua subnotificação e dificuldade diagnóstica9. Estima-se que cerca de 20% dos casos de TB infantil sejam de TBEP. Gânglios periféricos, meninges, pleura e ossos são as localizações mais frequentes7. Nota-se que a TBEP infantil pode manifestar-se de diferentes formas, e seus sintomas podem ser restritos ao órgão ou sistema acometido, o que retarda, muitas vezes, o diagnóstico e, consequentemente, o início do tratamento8.
Essa série de casos compreende cinco pacientes com TB pediátrica de apresentação não habitual, todos vacinados ao nascer com a vacina BCG (Bacilo de Calmette-Guérin), sem história de contato prévio com adultos bacilíferos, sendo três pacientes com TBEP, um com TB pulmonar e um caso da forma pseudotumoral intratorácica da doença. Em nenhum dos casos houve hipótese diagnóstica inicial de TB.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (CAAE número 67103117.4.0000.5243).
RELATO DE CASOS
A Tabela 1 apresenta as principais características demográficas e clínicas e os resultados laboratoriais dos pacientes diagnosticados com TB.
Caso 1: Forma pseudotumoral de TB
Lactente, 3 meses, masculino, internado para investigação diagnóstica de formação expansiva em lobo superior do hemitórax direito, com a hipótese diagnóstica inicial de neoplasia pulmonar, após febre recorrente não responsiva a oseltamivir e amoxicilina-clavulanato. Encontrava-se com estado geral preservado, em uso de oxacilina e vancomicina para tratamento de osteomielite no quinto quirodáctilo esquerdo, notada no 5º dia de internação, porém sem melhora do processo infeccioso. A tomografia computadorizada (TC) e a angioTC de tórax evidenciaram massa mediastinal com centro hipodenso e pequena escavação em seu interior, adenomegalia hilar, paratraqueal e infracarinal, sugestiva de TB pulmonar e ganglionar. Lavado bronco-alveolar (LBA): baciloscopia e GeneXpert MTB/RIF negativos; marcadores tumorais (ferritina, lactato desidrogenase, beta-HCG, alfa-fetoproteína, ácido úrico e ácido vanilmandélico) negativos. Devido à dissociação clínico-radiológica, ao aspecto radiológico sugestivo de TB e a não resposta ao tratamento de osteomielite, iniciou-se rifampicina + isoniazida + pirazinamida (RIP), sendo o tratamento realizado por 12 meses, considerando TB óssea associada à TB intratorácica (forma pseudotumoral). Mantém acompanhamento ambulatorial, apresentando boa evolução clínica e melhora radiológica. Apresentou posteriormente dois episódios de pneumonia. Durante a investigação ambulatorial, foi realizado o diagnóstico de doença granulomatosa crônica, através do DHR (dihidro-rodamina), realizado e repetido após 15 dias, ambos com resultados alterados.
Caso 2: Sibilância recorrente do lactente
Lactente, 5 meses, masculino, apresentou duas internações no primeiro mês de vida com bronquiolite, aos três meses por pneumonia em base pulmonar direita, e aos quatro meses por sibilância persistente associada à pneumonia na mesma localização. TC de tórax mostrou consolidações com broncogramas aéreos nos lobos médio e inferior direito e múltiplos micronódulos centrolobulares nos lobos superior e inferior direitos, sugerindo preenchimento das vias aéreas relacionado à doença inflamatória e/ou infecciosa. Broncoscopia diagnóstica evidenciou alargamento do ângulo da carina, redução do calibre dos brônquios principais e dos brônquios da árvore brônquica direita, em razão de compressão extrínseca. LBA: baciloscopia e Gene Xpert MTB/RIF negativos. Devido à dissociação clínico-radiológica (alterações radiológicas com pouca expressão clínica), iniciou-se esquema RIP, com boa resposta clínica e radiológica.
Caso 3: Panuveíte
Escolar, 6 anos, feminino, diagnóstico de síndrome de Weill-Marchesani (distrofia mesodérmica congênita caracterizada por subluxação do cristalino, baixa estatura, braquidactilia e rigidez articular). Tem história de panuveíte recorrente inespecífica desde os 3 anos de idade e já realizou 16 procedimentos para correção cirúrgica de glaucoma. Relato de uso crônico de corticoide (durante seis meses), sendo o mesmo suspenso há 10 meses. A prova tuberculínica foi reatora, o Interferon Gamma Release Assay (IGRA - Quantiferon) foi negativo, e a radiografia de tórax sem alterações. Optou-se por iniciar esquema RIP, tendo sido prescrito por seis meses, considerando hipótese diagnóstica de TB ocular. Apresentou boa evolução clínica, com melhora do quadro de uveíte.
Caso 4: Eritema nodoso
Escolar, 9 anos, masculino, internado para investigação diagnóstica de lesões nodulares em membros superiores e inferiores, febre e linfonodomegalia inguinal bilateral. Realizada biópsia das lesões cutâneas e de linfonodo, que evidenciou processo inflamatório granulomatoso com necrose caseosa e baciloscopia positiva. Iniciou-se esquema RIP, e paciente evoluiu clinicamente bem, com resolução das lesões cutâneas.
Caso 5: Poliartrite de Poncet
Artrite adolescente, 11 anos, feminino, internada para investigação diagnóstica de febre e oligoartrite, com hipótese inicial de febre reumática, sendo tratada com penicilina benzatina. Velocidade de Hemossedimentação (VHS): 56mm/h (Limite Superior até 15mm/h). Ecocardiograma transtorácico sem alterações. Foi encaminhada ao ambulatório de reumatologia pediátrica, onde foram identificados sintomas constitucionais associados ao início do quadro de oligoartrite, tais como febre alta vespertina (não mensurada) e sudorese noturna, além de uso repetido de azitromicina e amoxicilina para tratamento de amigdalite. Ao exame clínico, destacou-se comprometimento de tornozelos, com tenossinovite bilateral, caracterizada por rigidez matinal, dor à mobilização e sinais flogísticos. Foram considerados os diagnósticos de artrite idiopática juvenil, Chikungunya e TB reativa (reumatismo de Poncet). Iniciou-se anti-inflamatório não esteroidal (AINE) durante a internação. Hemograma apresentava anemia ferropriva de padrão crônico. Ressonância Magnética (RNM) de tornozelos revelou extensa e difusa sinovite de bainha dos tendões, de aspecto inflamatório. Embora não apresentasse tosse durante a investigação do quadro articular, a TC e radiografia de tórax demonstraram alargamento mediastinal - hilar e paratraqueal direita. Foram realizadas biópsia e cultura da bainha sinovial de tornozelo, ambas negativas para Mycobacterium tuberculosis. Devido aos sintomas sugestivos de TB pulmonar e TB osteoarticular (febre, sudorese noturna e oligoartrite), foi iniciado tratamento com rifampicina + isoniazida + pirazinamida + etambutol (RIPE) por 2 meses, seguido de esquema rifampicina + isoniazida por 10 meses, com boa evolução clínica e desaparecimento dos sintomas.
DISCUSSÃO
O principal achado deste estudo foi o fato de todos os pacientes apresentarem manifestações pouco comuns de TB e sem a identificação de contato bacilífero. A ausência de apresentação típica e caso-fonte reconhecido levou a longos processos de investigação diagnóstica, o que retardou o diagnóstico e o início do tratamento. Observa-se que o diagnóstico de TB ainda se mostra como um desafio na prática clínica diária, mesmo em países como o Brasil, onde se tem alta carga da doença1.
A busca ativa e a identificação do caso-fonte, sobretudo de lactentes infectados, devem abranger principalmente o seu núcleo familiar8. Dessa forma, reforça-se a importância da busca ativa de todos os contatos à procura do caso-fonte diante de um novo caso de TB pediátrica, visando reduzir a cadeia de transmissão da doença3.
Estima-se que crianças infectadas pelo HIV apresentem maior risco de desenvolver TB e sua forma disseminada devido à deficiência celular adquirida10. Embora tenham apresentado formas raras da TB, todos os pacientes desta série de casos eram não infectados pelo HIV. Observa-se que a criança do caso 1 foi diagnosticada posteriormente com imunodeficiência e a criança do caso 3 apresenta uso prolongado de corticosteroides, e outras duas crianças, menores que dois anos de idade, comportam-se como imunossuprimidos fisiológicos, e assim apresentam maior probabilidade de desenvolver formas graves no curso natural da TB se não forem abordados prontamente. Em menores que um ano de idade, a probabilidade de desenvolver a forma disseminada gira em torno de 10-20%, caindo para 2-5% nas idades entre um e dois anos8.
Em países em desenvolvimento, e em áreas endêmicas de TB onde os recursos são limitados, torna-se primordial que os casos da doença sejam reconhecidos precocemente, a fim de proporcionar melhor direcionamento de recursos e políticas de tratamento e prevenção. Nesse sentido, faz-se essencial que o diagnóstico da TB seja mais frequentemente considerado mesmo em casos pouco característicos, como os apresentados nesta série de casos.
REFERÊNCIAS
1. World Health Organization. Global tuberculosis report 2020. Geneva: World Health Organization [Internet]. 2020; [acsess in 2021 Mar 28]. Availabe from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/336069/9789240013131-eng.pdf.
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1. Universidade Federal Fluminense, Departamento Materno-Infantil - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil
2. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Pediatria - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Endereço para correspondência:
Claudete Araújo Cardoso
Universidade Federal Fluminense
Prédio Axexo ao HUAP, 4º Andar, Centro
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. CEP: 24033-900
E-mail: claudetecardoso@id.uff.br
Data de Submissão: 28/03/2021
Data de Aprovação: 10/04/2021