ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 3

Aplasia cútis congênita no couro cabeludo: relato de caso e revisão de literatura

Aplasia cutis congenita on the scalp: case report and review of literature

RESUMO

INTRODUÇÃO: A Aplasia Cútis Congênita é uma lesão de pele rara, geralmente restrita ao couro cabeludo, caracterizada por ausência focal de tecido cutâneo, envolvendo, por vezes, músculos, periósteo e dura-máter. Há diversas etiologias descritas, como defeitos de fechamento de tubo neural, anomalias vasculares, necrose por pressão no embrião localizada, dentre outras.
MÉTODO: Relatamos o caso de um neonato ao primeiro exame físico com lesão anular vesicular, em região occipital, de 0,8 cm em maior diâmetro, com conteúdo hialino/ sanguinolento e hiperemia periférica. Após ter sido feito diagnóstico clínico, optamos pelo tratamento conservador com aplicação tópica de hidrogel até cicatrização completa. Paciente, então, recebeu alta hospitalar, com posterior retorno e resolução da lesão aos 30 dias de vida.
CONCLUSÃO: Aplasia cútis congênita é uma doença rara, que pode atingir somente couro cabeludo, mas também pode apresentar-se com ausência de parte da calota craniana, o que aumenta a mortalidade devido ao maior risco de complicações como fístula liquórica, meningoencefalite e sangramento.

Palavras-chave: Displasia ectodérmica, Couro cabeludo, Recém-nascido.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Congenital Cutaneous Aplasia is a rare skin lesion, usually restricted to the scalp, characterized by a focal absence of cutaneous tissue, sometimes involving muscles, periosteum and dura mater. There are several etiologies described, such as poor neural tube closure, vascular anomalies, pressure necrosis in the localized embryo, among others.
METHOD: We report the case of a newborn at the first physical examination with an annular vesicular lesion, in the occipital region, of 0.8 cm in greater diameter, with hyaline / bloody content and peripheral hyperemia. After a clinical diagnosis was made, we opted for conservative treatment with topical application of hydrogel until complete healing. The patient was then discharged from the hospital, with subsequent return and resolution of the lesion at 30 days of life.
CONCLUSION: Congenital cutaneous aplasia is a rare disease, which can affect only the scalp, but can also present with the absence of part of the skullcap, which increases mortality due to the increased risk of complications such as liquor fistula, meningoencephalitis and bleeding.

Keywords: Ectodermal dysplasia, Diseases, Scalp, Infant, Newborn, Diseases.


INTRODUÇÃO

A Aplasia Cútis Congênita (ACC) é uma lesão de pele rara, geralmente restrita ao couro cabeludo, em 85% dos pacientes, e com acometimento da calota craniana em 15% a 30% dos casos1. Ocorre como lesão única em cerca de 75% dos pacientes, mas pode ser vista em outras partes do corpo, e se caracteriza por ausência focal de tecido cutâneo, com possibilidade de envolver estruturas subjacentes, como músculos, periósteo e dura-máter2. Nas lesões maiores, e especialmente nas mais profundas, há risco de meningite, hemorragias e trombose, porém o prognóstico é favorável na maioria dos casos3,4.

A incidência presente na literatura é de aproximadamente 0,5 a 1 para cada 10.000 nascimentos5. Muitos casos de ACC acontecem de forma esporádica, embora casos familiares tenham sido relatados. O modo de transmissão pode ser autossômico dominante com penetrância reduzida (alguns portadores de genes não manifestarão sinais ou sintomas clínicos) ou autossômico recessivo5.

A lesão ocorre de forma mais frequente na região das fontanelas na linha média, sobretudo no percurso do seio sagital superior, mas pode ocorrer também na região parietal, retroauricular, pescoço, tronco, membros superiores e inferiores. Aproximadamente 80% das lesões pequenas ocorrem nas proximidades do "redemoinho capilar parietal". A lesão encontra-se presente desde o nascimento, sem propensão para raça. Em grande parte dos casos, a lesão acomete o escalpo, sendo limitada à derme, epiderme e às vezes ao subcutâneo, medindo em torno de 0,5 a 3 cm de diâmetro6,7.

Mesmo que a ACC seja mais familiar para os dermatologistas pediátricos, os obstetras e os pediatras geralmente são os primeiros a observar essa condição. Como os achados da ACC podem estar associados a outros defeitos ou síndromes físicas subjacentes, é importante que esses profissionais possam diferenciar os vários subtipos clínicos da ACC, auxiliando no diagnóstico, prognóstico e avaliação adicional.

A proposta deste trabalho é apresentar um relato de caso e fazer revisão da literatura mais atual, de modo a discutir o diagnóstico, etiologia, associações e investigação da ACC.


RELATO DE CASO

Paciente E.E.H., sexo feminino, nascida com 38 semanas de idade gestacional por Capurro, parto cesáreo por apresentação de placenta prévia. A parturiente possuía 21 anos, terceira gestação, uma cesária e um aborto prévios, apresentava obesidade sem outras comorbidades ou vícios, fez apenas uma consulta pré-natal, sendo realizada ultrassonografia (US) no terceiro trimestre da gestação sem evidenciar qualquer alteração. Fez triagem sorológica apenas no terceiro trimestre e na admissão, todas não reagentes. Sem relato de comorbidades durante o pré-natal.

Recém-nascido (RN) não apresentou intercorrências durante o parto, peso de nascimento 3.605g, escala de Apgar 8 no primeiro minuto e 9 no quinto minuto, adequada para a idade gestacional, com grande quantidade de vérnix caseoso em cabeça e tórax.

Após período de observação em centro obstétrico, mãe e RN são encaminhados para o alojamento conjunto onde é realizado o primeiro exame físico completo do neonato, e foi observado em região occipital lesão anular vesicular, com conteúdo hialino sanguinolento, com área de alopecia e hiperemia ao redor, medindo 0,8cm no maior diâmetro (Figura 1). Não foram encontradas outras lesões e nem houve outras queixas pela mãe.



Figura 1. Aplasia cútis congênita. Fonte: Elaborada pelo autor. Legenda: Lesão anular vesicular, com conteúdo hialino sanguinolento, com área de alopécia e hiperemia ao redor, medindo 0,8cm no maior diâmetro.



Foi solicitada consultoria com a equipe da Dermatologia para melhor avaliação da lesão, a qual aventou o diagnóstico de ACC membranosa.


DISCUSSÃO

Apesar de a ACC ser uma doença rara, apresenta mortalidade em torno de 20%, decorrente da associação de meningite ou hemorragia em paciente com acometimento da calota craniana4,7.

Embora várias teorias tenham sido propostas sobre sua patogênese, a maioria dos autores acredita que não há uma causa subjacente única. Pelo contrário, é um achado clínico resultante de uma variedade de eventos que ocorrem in utero. Provavelmente, existem duas vias principais para o desenvolvimento da ACC: (a) interrupção ou falha no desenvolvimento das camadas da pele, incluindo epiderme, derme e gordura subcutânea, e (b) destruição in utero da pele que, de outra forma, se desenvolveria normalmente7.

Devido a suas anormalidades associadas, padrão de herança e área corporal afetada, Frieden8 classificou as diversas formas da ACC em nove agrupamentos clínicos (Quadro 1) para auxiliar no diagnóstico mais preciso. O paciente deste relato parece encaixar-se melhor no grupo 1 da classificação de Frieden: "ACC de couro cabeludo sem anomalias múltiplas", com base nos achados clínicos coincidentes do padrão de ocorrência da lesão cutânea, sem outras alterações associadas.





O diagnóstico de ACC é clínico e sua aparência pode ser notada de várias formas. Ulcerações ou erosões da pele são vistas no exame físico e podem se expandir para estruturas mais profundas, atingindo tecido muscular e ósseo. A ACC pode ter, também, aspecto de uma cicatriz atrófica desde o nascimento9,10.

Em grande parte dos casos, não apresentam síndromes, malformações ou outras anormalidades subjacentes. No entanto, na descoberta do ACC, justifica-se uma investigação mais aprofundada, com um exame clínico completo. Além disso, os membros da família devem ser questionados sobre o ACC, devido a possíveis heranças e associações3,4.

Existem duas variantes clínicas principais da ACC do couro cabeludo: membranosa e não membranosa. A ACC membranosa tende a apresentar-se como placas atróficas pequenas, ovais ou redondas com uma superfície semelhante à membrana. Elas podem ou não ter um sinal de coleira, onde geralmente há cabelos mais escuros e mais longos ao redor de uma lesão de aplasia cutânea11.

A cobertura membranosa pode ser preenchida com líquido ou com sangue, dando-lhe uma aparência bolhosa. É mais provável que lesões redondas ou ovais estejam associadas a alterações no desenvolvimento, em vez de destruição de tecidos normais12. A ACC membranosa não precisa estar no vértice do couro cabeludo; também pode se apresentar em aspectos mais laterais do couro cabeludo e da face, sugerindo falha no fechamento das linhas de fusão embrionárias13.

A maioria das lesões no couro cabeludo é membranosa (60%) e pode se desenvolver a partir de forças mecânicas de tensão e alongamento na pele e tecido subjacente, com o rápido crescimento do cérebro e do couro cabeludo13. Esse crescimento é maior no vértice do couro cabeludo, onde muitas dessas lesões estão localizadas13. Essa também pode ser uma forma de disrafismo, com fechamento defeituoso do ectoderma sobre o tubo neural14. Quase um quinto dos casos pode ter alterações ósseas subjacentes, como o crânio bifidum15.

A ACC é uma condição que oferece grande dificuldade de tratamento, devido a sua raridade e também devido à variedade de apresentações clínicas. O reparo das lesões pode envolver desde uma simples excisão até a reconstrução complexa com uso de enxerto ósseo e retalhos de músculos.

O tamanho, localização e malformações congênitas associadas determinam o prognóstico e tratamento. Lesões superficiais e limitadas com frequência regridem sem intercorrências2. O tratamento recomendado para lesões pequenas e superficiais é conservador, incluindo o cuidado local da ferida com curativos e boa higienização. Contudo, quando a lesão é extensa (mais de 6cm de diâmetro), raramente fecha completamente e permanece em tratamento por muito tempo1, e pode cursar com hemorragias e infecção15.

Muitos métodos de tratamento foram descritos para ACC, incluindo vaselina ou bacitracina, curativos oclusivos, curativos úmidos ou soro fisiológico, betadina, sulfadiazina de prata, acticoat e substitutos biológicos ou sintéticos da pele9,13-15. O tempo médio de cicatrização é de 27,9 dias para pacientes tratados de forma conservadora9. Cicatrizes hipertróficas, placas atróficas ou alopecia cicatricial podem permanecer após a cicatrização das feridas15.

No caso relatado, foi optado por tratamento conservador devido ao tamanho da lesão de 0,8 cm e demais características benignas. Foi realizada aplicação local diária de hidrogel e feito curativo com alginato de cálcio para melhor cicatrização. O paciente recebeu alta hospitalar com plano de acompanhamento ambulatorial, havendo resolução da lesão aos 30 dias de vida.


CONCLUSÃO

Aplasia cútis congênita é uma doença rara, que pode atingir somente couro cabeludo, mas também apresentar-se com ausência de parte da calota craniana, o que aumenta a mortalidade devido ao maior risco de complicações como fístula liquórica, meningoencefalite e sangramento. A apresentação clínica do ACC pode fornecer pistas para a fisiopatologia subjacente, o que pode direcionar melhor a avaliação e tratamento adicionais, se necessário.


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1. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
2. Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Unidade de Alojamento Conjunto, Serviço de Neonatologia - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

Endereço para correspondência:
Tiago Lima Castro
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Ramiro Barcelos, nº 2400, Santa Cecília
Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90035-003
E-mail: tiago-lc@hotmail.com

Data de Submissão: 18/02/2021
Data de Aprovação: 05/04/2021