ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 3

Acidente botrópico em paciente pediátrico: relato de caso

Botropic accident in a pediatric patient: case report

RESUMO

Os acidentes botrópicos são os mais comuns dentre os acidentes ofídicos no Brasil. A espécie Bothrops jararaca, a popular jararaca, habita predominantemente a região sul e sudeste, e assim, é a serpente peçonhenta de maior relevância da região, sendo responsável pela maioria dos acidentes. O seu veneno ocasiona importantes repercussões clínicas, com ações proteolíticas, coagulantes e hemorrágicas, que causam um quadro clínico exuberante. Além do quadro álgico, manifestações locais e distúrbios de coagulação, a picada da jararaca pode apresentar complicações como infecções e necrose tecidual. Com isso, esse relato de caso tem como objetivo descrever a abordagem e evolução de um acidente botrópico envolvendo um paciente pediátrico de 5 anos previamente hígido.

Palavras-chave: Mordeduras de serpentes, Antivenenos, Bothrops, Medicina de Eemergência pediátrica.

ABSTRACT

Botropic accidents are the most common among snake accidents in Brazil. The species Bothrops jararaca, the popular jararaca, predominantly inhabits the south and southeast regions, and thus is the most relevant venomous snake in the region, being responsible for most accidents. Its poison causes important clinical repercussions, with proteolytic, coagulant and hemorrhagic actions, which cause an exuberant clinical picture. In addition to the pain, local manifestations and coagulation disorders, the jararaca sting can present complications such as infections and tissue necrosis. Thus, this case report aims to describe the approach and evolution of a botropic accident involving a previously healthy 5-year-old pediatric patient.

Keywords: Snake bites, Bothrops, Antivenins, Pediatric emergency medicine.


Materiais e método: as informações contidas neste relato foram obtidas por meio de entrevista com paciente e familiar responsável e registro fotográfico, mediante consentimento, num hospital de médio porte na serra catarinense, juntamente com pesquisa em literatura a partir de base de dados eletrônicos.



INTRODUÇÃO

No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem entre 19 mil e 22 mil acidentes ofídicos por ano. Cerca de 90% desses acidentes deve-se a serpentes do gênero Bothrops, principalmente a espécie Bothrops jararaca, evidenciando assim sua grande relevância na área médica1. O veneno desse gênero pode induzir efeitos fisiopatológicos graves, incluindo distúrbios hemorrágicos, coagulopatias e efeitos locais proteolíticos, caracterizando uma emergência clínica2. Dessa forma, torna-se imprescindível o reconhecimento e o tratamento precoce com o soro antibotrópico (SAB)3.


RELATO DE CASO

Feminina, 5 anos e 5 meses de idade, chega ao serviço de Terapia Intensiva hospitalar, vítima de acidente ofídico, ocorrido em sua cidade de origem. Imediatamente após o acidente, foi levada em carro próprio até a Unidade de Pronto Atendimento, onde foi estabilizada pelo médico plantonista. Além disso, foi realizado contato com Centro de Informações Toxicológicas (CIT), informando a rápida progressão das manifestações clínicas, no qual teve o quadro caracterizado como grave e, assim, transportada via SAMU com urgência ao hospital de referência da cidade. O acidente ocorreu cerca de 3 horas antes da admissão na Unidade de Terapia Intensiva, na residência da paciente. Esta estava brincando em frente à sua casa, local de área rural com vasta vegetação, quando foi picada por uma cobra da espécie Bothrops jararaca, popularmente denominada jararaca. A paciente foi picada no pé direito, em 2º pododáctilo, com ocorrência de dor local abrupta. A menina logo buscou ajuda de familiares e, ao averiguar o ambiente, a cobra foi encontrada enrolada, e, assim, levada junto ao atendimento (Figura 1). Diante do reconhecimento da espécie, o médico plantonista da UPA prontamente solicitou 12 ampolas de soro antibotrópico junto ao serviço de vigilância epidemiológica para realização em âmbito hospitalar. Ademais, sob orientação do CIT, realizou esquema medicamentoso com hidrocortisona 10mg/kg e difenidramina 1mg/kg cerca de 15 minutos antes da aplicação do soro e hidratação endovenosa com rigoroso controle de diurese. Ainda dentro do protocolo orientado, foram coletados exames laboratoriais e provas de coagulação pré e pós-aplicação do soro antibotrópico, averiguação da vacina antitetânica registrada em carteira de vacinação, realização de eletrocardiograma e, por fim, orientado a não administrar AINES. Nos exames laboratoriais, apresentou: tempo de protrombina incoagulável, KPTT 100 segundos, hematúria/proteinúria em parcial de urina, hemograma com Hb 7,3 Hct 23,3 Leu 22 mil. À admissão da UTI, a paciente chegou em regular estado geral, com queixa importante de dor e edema em toda a extensão do membro inferior direito, além de equimose que chegou até a raiz da coxa. O quadro é característico da espécie, resultado da ação proteolítica e coagulante do veneno. A lesão evoluiu rapidamente, com equimoses distribuídas em ambos os membros inferiores (Figura 2). O tratamento abrangeu controle da dor, com necessidade de administração de morfina, além do uso de dexametasona e sintomáticos. Diante dos resultados dos exames colhidos, optou-se por iniciar antibioticoterapia com ceftriaxona e clindamicina. Conforme os valores do hemograma de admissão, associados aos achados de exame físico, como sopro holossistólico em foco pulmonar, foi diagnosticado um quadro de anemia aguda. Após 3 dias de internamento em UTI, a paciente foi manejada para a enfermaria do hospital, ficando aos cuidados do pediatra e internos de medicina. Durante essa etapa do internamento, completou o tempo previsto de antibioticoterapia, com boa evolução. Porém, com a persistência da anemia, foi realizada transfusão de 300mL de concentrado de hemácias, também com boa resposta. As lesões equimóticas persistiram por alguns dias, bem como o edema ao longo do membro. Diante disso, ao solicitar avaliação da equipe de ortopedia pediátrica, foi descartada a hipótese de síndrome compartimental. A paciente apresentou desfecho favorável, com regressão das lesões de membros inferiores e também do sopro cardíaco. Por fim, após 7 dias da ocorrência do acidente botrópico, foram realizados exames laboratoriais de controle. Assim, com importante melhora clínica e resultados laboratoriais satisfatórios, a paciente recebeu alta médica, com orientações para acompanhamento pediátrico ambulatorial.



Figura 1. Serpente capturada no local do acidente ofídico.



Figura 2. Equimoses em membros inferiores, predominando em membro inferior direito, estendendo-se até a região hipogástrica.



DISCUSSÃO

Estima-se que, anualmente, aconteça cerca de 2,5 milhões de acidentes com serpentes em todo o mundo, acarretando 85 mil mortes anuais2-7. No Brasil, os acidentes ofídicos representam um grave problema de saúde pública, ocorrendo cerca de 20 mil acidentes ofídicos por ano no país. Em 2017, mais de 28 mil acidentes com picadas de cobras foram registrados, ocorrendo um total de 100 mortes naquele ano4. No país, cerca de 90% dos acidentes ofídicos são serpentes do gênero Bothrops (jararaca, jararacuçu, urutu-cruzeira, entre outras)1-2.

Dentre as 30 espécies pertencentes a esse gênero, a Bothrops jararaca, conhecida jararaca, predomina no Sul e Sudeste do Brasil e tem uma grande capacidade adaptativa2. Habitam zonas rurais e periferias de grandes cidades, preferindo ambientes úmidos, matas e áreas cultivadas. Apresentam hábitos predominantemente noturnos e um comportamento agressivo quando ameaçadas, desferindo botes sem produzir ruído. A maior parte dos acidentes ocorre com o trabalhador rural, entre 15 e 49 anos. Todavia crianças acabam se vitimando quando estão brincando em locais onde as serpentes podem se abrigar, como pedras e lenhas ou trabalhando no campo4.

Vítimas de picada de serpente Bothrops geralmente apresentam sintomas locais (dor, edema, equimoses e bolhas) e manifestações sistêmicas, como distúrbios de sangramento e coagulação. As manifestações clínicas são resultado da ação proteolítica do veneno da cobra. Os componentes mais abundantes são metaloproteinases (SVMPs), serina proteinases de veneno de cobra (SVSPs) e fosfolipases A2. Esses componentes afetam a hemostasia, ativando/inibindo fatores da coagulação e consumindo fator X/ protrombina, causando trombose e rompimento do endotélio, levando a hemorragias sistêmicas no espaço extravascular e possível choque cardiovascular5-7.

No acidente botrópico, as manifestações locais se evidenciam nas primeiras horas após a picada, com a presença de edema, dor, eritema e equimose que progride ao longo do membro acometido. Além do quadro de envenenamento local, o quadro sistêmico pode ser evidente com presença de gengivorragia, hematúria e equimose/sangramento em feridas recentes2.

A identificação da cobra juntamente com a anamnese e a presença local da picada faz o diagnóstico, devendo ser o mais precoce possível. Alguns exames são essenciais para a avaliação do paciente, principalmente nos casos mais graves. Dessa forma, é imprescindível solicitar um coagulograma com o tempo de coagulação, hemograma, parcial de urina, ureia e creatinina3.

As complicações são classificadas em locais e sistêmicas. Dentre as locais, destacam-se: abscesso, necrose e síndrome compartimental. O abscesso, a celulite e erisipela podem ser observados no local da inoculação e são frequentes devido à reação inflamatória aguda e a presença de flora bucal das serpentes por bactérias anaeróbicas e Gram-negativas. Quanto à necrose, sua incidência é bastante variável (de 1 a 20,6%), geralmente limitada ao tecido subcutâneo. A intensidade e a extensão da necrose estão fortemente ligadas à utilização de torniquetes e à demora entre o acidente e a administração da soroterapia (>6 horas). Já a síndrome compartimental é uma complicação rara e muito grave. As complicações sistêmicas são representadas pelo choque, insuficiência renal aguda (IRA), anemia aguda, acidente vascular hemorrágico, entre outros. A IRA é uma das mais graves complicações do acidente botrópico, desencadeada por necrose tubular aguda, cursando com oligúria, proteinúria e hematúria no sedimento urinário e possível necessidade de diálise2.

O tratamento visa um fluxograma de atendimento, com estabilização do paciente hemodinamicamente e avaliação das manifestações clínicas. Além disso, antissepsia, drenagem postural, controle da diurese e profilaxia do tétano fazem parte da abordagem inicial. O antiveneno é a principal terapia utilizada, sendo indicada de acordo com os critérios clínicos de gravidade (Quadro 1). Cada ampola de SAB neutraliza 50mg de veneno. É recomendada sua administração o mais precocemente possível, por via intravenosa, diluída em 250ml de SF 0,9%. Após a soroterapia, deve-se manter o acompanhamento contínuo do paciente para identificar possíveis complicações. O tempo de coagulação (TC) é utilizado como controle de verificação da eficácia do SAB. Se TC permanecer incoagulável ou se não estiver normalizado depois de 24 horas, deve-se administrar dose adicional de antiveneno1-6.





CONCLUSÃO

Os acidentes botrópicos são comuns no âmbito brasileiro, sendo considerada uma emergência na esfera pediátrica. O diagnóstico precoce e a utilização do soro antibotrópico em menos de 6 horas previnem o surgimento de possíveis complicações locais e sistêmicas, diminuindo a letalidade do acidente ofídico. Logo, é importante conhecer as características clínicas do principal gênero de serpentes peçonhentas do Brasil, para implementar o melhor fluxograma de tratamento.


REFERÊNCIAS

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2. Santos K. de Almeida MM, Pessoa A de M, Sadd VA, Silva Júnior NJ da. Revisão sistemática: as principais complicações do acidente botrópico. EVS Goiânia [Internet]. 2016; [acesso em 2021 Mar 1];43(1):71-78. Disponível em: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/estudos/article/view/5189/2846.

3. Sociedade Brasileira de Pediatria (BR). Tratado de pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria. v. 1. 4ª ed. São Paulo: Manole; 2017.

4. Mamede CCN, Simamoto BB de S, Pereira DF da C, Costa J de O, Ribeiro MSM, de Oliveira F. Edema, hyperalgesia and myonecrosis induced by Brazilian bothropic venoms: overview of the last decade.Toxicon [Internet]. 2020; [access in 2021 Mar 2];187,1-18. Available from: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0041010120303573.

5. Oliveira SS, Alves EC, Santos AS, Pereira JPT, Sarraf LKS, Nascimento EF, et al. Factors Associated with Systemic Bleeding in Bothrops Envenomation in a Tertiary Hospital in the Brazilian Amazon. J Toxins [Internet]. 2019; [access in 2021 Mar 2];11:1-16. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30621001/.

6. Santa C, Oliveira M. Avaliação do uso de soros antivenenos na emergência de um hospital público regional de Vitória da Conquista (BA), Brasil. Revista Ciênc. Saúde Col [Internet]. 2020; [acesso em 2021 Mar 2];25(3). Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csc/2020.v25n3/869-878/.

7. Correa AJ, Fallon SC, Cruz AT, Grawe GH, Vu PV, Rubalcava DM, et al. Management of pediatric snake bites: are we doing too much? J Pediatr Surg [Internet]. 2014; [access in 2021 Mar 3];49(6):1009-15. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24888853/.












1. Universidade do Planalto Catarinense, Acadêmicos de Medicina - Lages - Santa Catarina - Brasil
2. Hospital Infantil Seara do Bem, Programa de Residência Pediátrica - Lages - Santa Catarina - Brasil
3. Hospital Infantil Seara do Bem, Especialidade Pediátrica - Lages - Santa Catarina - Brasil

Endereço para correspondência:
Karoline Silva Zeni
Universidade do Planalto Catarinense
Av. Mal. Castelo Branco, nº 170, Universitário
Lages, SC, Brasil. CEP: 88509-900
E-mail: kakaszeni@hotmail.com

Data de Submissão: 12/04/2021
Data de Aprovação: 20/04/2021