ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 3

Abscesso renal em pediatria - desafios para o diagnóstico e manejo: relato de caso

Renal abscess in pediatrics - Diagnostic and management difficulties: case report

RESUMO

OBJETIVO: Discutir a dificuldade diagnóstica de abscesso renal em pediatria e chamar atenção da comunidade pediátrica para a possibilidade de complicações de infecção do trato urinário.
RELATO DE CASO: Adolescente de 16 anos, masculino, com antecedente de transtorno do espectro autista e distrofia muscular de Duchenne, apresenta-se em pronto socorro infantil com queixa de febre em vigência de antibioticoterapia para tratamento de infecção de trato urinário. Apesar de haver leucocituria, a urocultura era negativa. Foi realizado ultrassonografia do aparelho urinário que não evidenciou alterações. Em complementação com tomografia computadorizada, foram observados abscesso renais múltiplos à direita. Foi realizada punção por radiologia intervencionista com cultura do aspirado positiva para Klebsiella pneumoniae cepa produtora de betalactamase (ESBL). Administrado antimicrobiano endovenoso por 21 dias, com resolução completa dos sinais e sintomas.
DISCUSSÃO: Abscessos renais são raros na população pediátrica. No entanto, devem ser lembrados como diagnóstico diferencial de febres prolongadas e evolução desfavorável de infecção do trato urinário, particularmente diante de quadros recorrentes. O diagnóstico oportuno de tal condição é essencial para o adequado manejo e redução de complicações.

Palavras-chave: Infecções urinárias, Ultrassonografia de intervenção, Abscesso abdominal, Doenças Urológicas.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To discuss the diagnostic difficulties of renal abscess in the pediatric age and warn pediatrics about the possible complications of urinary tract infections.
CASE DESCRIPTION: A 16-year-old boy with autism spectre disorder and Duchenne muscular dystrophy presented at the emergency care unit with persistent fever despite the use of antibiotics to treat an urinary tract infection. Although there was leukocyturia, the urine culture was negative. Ultrassound of the urinary tract showed no significant findings. Computed tomography showed multiple renal abscesses in the right kidney. A puncture guided by ultrasound was performed. The culture of the liquid resulted in growth of ESBL Klebsiella pneumoniae. A 21 day course of intravenous antibiotic after the procedure resulted in complete resolution of signs and symptoms.
COMMENTS: Renal abscess is a rare condition in the pediatric population. However, it must be considered in the differential diagnosis of prolonged fever and when there is a non-favorable evolution of urinary tract infection, mainly in recurrent episodes. The early diagnosis of this condition is essential for the adequate treatment and reduction of complications.

Keywords: Urinary tract infections, Ultrasonography, interventional, Urologic diseases, Abdominal abscess.


INTRODUÇÃO

Abscesso renal é uma condição rara em pediatria e as manifestações clínicas são inespecíficas, dificultando o diagnóstico1-6. Está mais comumente associado a malformações de trato urinário, como duplicidade ureteral ou refluxo vesicoureteral, havendo também associação com doenças crônicas como diabetes mellitus2,3,6,7. Os exames de imagem são imprescindíveis para o diagnóstico após suspeita clínica de abscesso renal1-5,7. Os agentes patológicos mais bem descritos na literatura são Escherichia coli e Staphylococcus aureus2,3,5,6,8. No entanto, muitas vezes o patógeno não é isolado, principalmente se houve antibioticoterapia prévia à confirmação diagnóstica5,6. O tratamento envolve antibioticoterapia prolongada e intervenção cirúrgica, a depender da extensão e evolução da doença1-6,8.

Os autores apresentam o relato de caso de paciente atendido em Pronto-Socorro Infantil e seu desfecho, com objetivo de discutir as dificuldades diagnósticas do abscesso renal em pediatria e chamar atenção da comunidade pediátrica para a possibilidade de complicações de infecção do trato urinário.

Este trabalho foi aceito pelo Comitê de Ética através da Plataforma Brasil, mediante aceitação do Termo de Consentimento Livre sob CAAE de número 42215520.5.0000.5505.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 16 anos, com antecedente de distrofia muscular de Duchenne e transtorno do espectro autista, procurou pronto-socorro de hospital secundário com quadro de urina escura e fétida associado a picos febris há 1 dia. Após análise de sedimento urinário evidenciando leucocitúria, recebeu alta com diagnóstico de infecção do trato urinário, sendo prescrita nitrofurantoína por 3 dias. Não foi realizada urocultura.

Ao final desse tratamento, procurou novamente o mesmo serviço queixando-se de odinofagia, tendo recebido alta com ciprofloxacino. No entanto, como apresentava vômitos após a medição, modificado para norfloxacino.

Treze dias após o início do quadro, procurou o mesmo serviço, onde realizou nova análise de sedimento urinário, sem urocultura. Como mantinha leucocitúria, optou-se pela introdução de ceftriaxone em regime de hospital-dia por 7 dias.

No sétimo dia de ceftriaxone, e no décimo nono dia de sintomas, a família procurou o Pronto-Socorro Infantil de hospital quaternário pela primeira vez, referindo novos picos febris.

Ao exame físico, o paciente apresentava-se em bom estado geral, eupneico, corado, hidratado, anictérico, acianótico, afebril, ativo e reativo. Sem alterações à ausculta cardíaca e pulmonar. O abdome era plano, algo tenso, indolor à palpação, com ruídos hidroaéreos presentes, sem dor à manobra de descompressão brusca e à manobra de punho percussão lombar. Não havia edema em extremidades e apresentava boa perfusão periférica. Não apresentava sinais de irritação meníngea.

Dessa forma, excetuando-se a febre, o paciente não apresentava nenhum outro sinal ou sintoma. Devido ao contexto da pandemia de COVID-19, e pelo fato de o paciente ter frequentado pronto-socorro em várias ocasiões, pensou-se inicialmente em um quadro viral associado, sendo optado por coletar swab de nasofaringe e exames laboratoriais para investigação do quadro febril. Devido ao ótimo estado geral e exames laboratoriais mostrarem alterações inespecíficas como leucocitose (Tabela 1), o paciente recebeu alta, com orientação de retorno em 48 horas para reavaliação clínica e verificação dos resultados pendentes (hemocultura, urocultura e PCR para COVID-19).





Na reavaliação, paciente mantinha febre, o resultado de RT-PCR para coronavírus era negativo, assim como de hemocultura e urocultura. Diante do quadro clínico, foi feita hipótese de complicação de infecção do trato urinário, como abscesso ou nefrite bacteriana focal. Foi realizado inicialmente ultrassom de rins e vias urinárias, não sendo visualizadas alterações ao método. Foi solicitada, então, complementação diagnóstica com tomografia computadorizada contrastada de abdome total, que evidenciou abscessos renais múltiplos à direita com as seguintes dimensões: no terço médio, anterior, medindo cerca de 5,3 x 3,8 x 3,3 cm, deslocando anteriormente alças de intestino delgado adjacentes; no terço inferior, posterior, medindo cerca de 3,6 x 2,0 x 1,4 cm; e no terço inferior, posterior, medindo cerca de 3,9 x 3,5 x 3,0 (Figuras 1 e 2). Foi indicada internação hospitalar para tratamento clínico e discussão sobre intervenção cirúrgica.



Figura 1. Cortes axiais de tomografia computadorizada de abdome. Setas apontam para abscessos em rim direito.



Figura 2. Corte coronal de tomografia computadorizada de abdome. Setas apontam para abscessos em rim direito.



Optou-se por iniciar empiricamente piperacilina + tazobactan. O caso foi discutido com equipe de urologia e radiologia intervencionista, que indicou abordagem em conjunto para punção e drenagem de abcessos.

Foi realizada drenagem de abscesso guiada por ultrassonografia, com saída de conteúdo purulento. O exame ultrassonográfico de controle após procedimento não evidenciou sinais de complicações imediatas.

O material foi encaminhado para análise laboratorial e culturas, havendo crescimento de Klebsiella pneumoniae, cepa produtora de beta-lactamase de espectro estendido (ESBL) com o seguinte perfil de sensibilidade: resistente a cefepime, ceftriaxone e ciprofloxacino e sensível a amicacina, ertapenem, neropenem, gentamicina, piperacilina + tazobactan, e sulfametoxazol + trimetoprima. O resultado foi discutido com a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar que concordou com o tratamento proposto com piperacilina + tazobactan endovenoso por 21 dias.

O exame de tomografia de controle no final do tratamento mostrou resolução das coleções perirrenais e o paciente evoluiu afebril, mantendo estado geral preservado. Recebeu alta hospitalar após antibioticoterapia endovenosa por 21 dias, com retorno ambulatorial agendado para um mês junto à nefrologia pediátrica, com nova ultrassonografia e exames laboratoriais. Não apresentou intercorrências graves durante a internação.

O paciente segue estável em seguimento ambulatorial com função renal preservada e ultrassonografias de controle sem evidência de coleções renais ou perirrenais, mantendo acompanhamento multidisciplinar com demais especialidades devido às condições de base.


DISCUSSÃO

Abscessos renais são uma forma rara de infecção renal que ocorrem principalmente em crianças com fatores predisponentes1-6. A dificuldade diagnóstica envolve o fato de os sintomas serem inespecíficos, como febre, náusea, vômitos e dor abdominal2-6.

Anamnese e exame físico cuidadosamente realizados e um alto grau de suspeição são essenciais para o diagnóstico adequado, mas exames de imagem são imprescindíveis1-7. A ultrassonografia de rins e vias urinárias pode apresentar sinais da doença, mas muitas vezes não evidencia alterações, sendo a tomografia computadorizada com contraste de abdome e pelve o exame de escolha para confirmação de abscesso renal1,5-7.

Exames laboratoriais costumam ser inespecíficos, podendo haver leucocitose e aumento de provas inflamatórias, mas a sua ausência não descarta o diagnóstico6. O exame de urina pode apresentar piúria e leucocitúria quando o abscesso é complicação de pielonefrite. No entanto, a análise do sedimento urinário pode estar normal, no caso de abscessos resultantes de disseminação hematogênica, ou de abscessos perirrenais que não se comunicam com o sistema coletor, ou nos casos em que já foi feito uso de antibióticos previamente6.

Os principais agentes etiológicos descritos são Gram-negativos, principalmente Escherichia coli2,3,5,6,8. Particularmente, abscessos decorrentes de disseminação hematogênica são mais comumente causados por Staphylococcus aureus9. Ao exame de imagem, o abscesso renal se apresenta como uma formação hipoecoica na ultrassonografia e uma formação de baixa densidade com realce da parede na fase pós-contraste da tomografia6,10.

O tratamento com antibiótico por tempo prolongado está bem definido na literatura. O manejo cirúrgico de abscessos renais foi mais bem estudado em adultos, mas comparações com a população pediátrica permitiram estabelecer um limite de 3cm para ponderar intervenção. Acima desse valor, sugere-se a drenagem percutânea ou cirurgia aberta3,4,6.

A história clínica do paciente apresentado neste relato de caso se aproxima dos dados presentes na literatura atual1,3,4,6. O tempo de diagnóstico foi de 22 dias desde a primeira busca a atendimento até a realização de exame de imagem evidenciando abscessos.

Na primeira visita ao pronto-socorro, em que os autores deste relato atendem (hospital quaternário), o paciente apresentava-se sem sinais ou sintomas exceto febre, e a análise do sedimento urinário não demonstrava leucocitúria significativa após 7 dias de ceftriaxone em dose adequada.

Uma hipótese aventada foi de infecção viral pelo novo coronavírus, devido ao contexto da pandemia de COVID-19. No entanto, dois dias após, com resultado negativo para o vírus, o paciente mantinha febre. Acreditamos que esse fator cofundidor corroborou para o atraso no diagnóstico de abscesso renal.

O primeiro exame de imagem solicitado foi uma ultrassonografia de rins e vias urinárias, que inicialmente não evidenciou alterações. Devido à principal hipótese de complicações relacionadas à infecção do trato urinário, foi solicitada complementação com tomografia contrastada de abdome. Na literatura atual, recomenda-se a realização de tomografia devido à maior sensibilidade e especificidade do método1,5-7.

O agente isolado em líquido coletado por punção por radiologia intervencionista foi Klebsiella pneumoniae ESBL, não tendo havido crescimento de bactéria na urocultura. O patógeno isolado não é comum, segundo a literatura, embora haja relatos de abscessos por Klebsiella pneumoniae2-6,8.

A literatura atual defende uso de antibiótico endovenoso prolongado diante da confirmação diagnóstica de abscesso renal1,4,6. O paciente deste relato de caso recebeu 21 dias de antibiótico em regime hospitalar, havendo boa evolução clínica e laboratorial.

Para abscessos pequenos é indicada terapia conservadora com antibioticoterapia prolongada4,6. No caso apresentado, devido ao tamanho e tempo de evolução, foi optado por abordagem cirúrgica pela equipe da urologia em conjunto com a radiologia intervencionista.

O paciente foi encaminhado para ambulatório de especialidade de nefrologia pediátrica para acompanhamento. Recomenda-se avaliação evolutiva da função renal e da presença de cicatrizes renais4,6.

Com o relato deste caso, objetivamos alertar a comunidade médica pediátrica para possíveis complicações de infecções do trato urinário. Considerar a hipótese de abscesso renal é essencial para o adequado diagnóstico e manejo de tais pacientes.


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Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Pediatria - São Paulo - SP - Brasil

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Alexandre Neves da Rocha Santos
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Data de Submissão: 07/06/2021
Data de Aprovação: 14/07/2021