ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Hipercalcemia grave em lactente por hipervitaminose D iatrogênica: relato de caso

Severe hypercalcemia induced by iatrogenic hypervitaminosis d: case report

RESUMO

INTRODUÇÃO: A intoxicação de vitamina D em lactentes (níveis séricos de 25-hidroxivitamina D superiores a 150 ng/mL) é uma das causas para desenvolvimento de hipercalcemia, condição pouco frequente na pediatria.
OBJETIVO: Relatar um caso de lactente com hipercalcemia grave por hipervitaminose D em lactente.
RELATO DO CASO: Paciente masculino, 5 meses de vida, em aleitamento materno exclusivo encaminhado ao especialista com suspeita de alergia à proteína do leite de vaca por ausência de ganho de peso durante o mês anterior e presença de estrias de muco e sangue nas fezes. Além do failure to thrive, o paciente evoluiu com sonolência, apatia e hipotonia, quando foram realizados exames complementares que revelaram hipercalcemia (cálcio sérico de 17,40 mg/dL) e hipervitaminose D (180 ng/mL). Levantou-se a hipótese de intoxicação por vitamina D, confirmada pela análise laboratorial do suplemento fornecido ao lactente, que revelou concentração de vitamina D 46 vezes superior à prescrita pelo pediatra.
CONCLUSÃO: Devido à alta suspeita diagnóstica de alergia à proteína do leite de vaca em lactentes atualmente, não pode haver descuido na investigação de outras causas diante de qualquer sintoma. Neste lactente, a evolução de failure to thrive, apatia, anorexia e hipotonia durante quatro meses motivou investigação que demonstrou uma hipercalcemia grave por uso de vitamina D manipulada.

Palavras-chave: Hipercalcemia, Lactente, Vitamina D, Relatos de casos.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Vitamin D intoxication among nurslings (serum levels of 25-hydroxyvitamin D above 150 ng/mL) is a factor in the development of hypercalcemia, an uncommon condition in pediatrics.
OBJECTIVE: Report a case of severe hypercalcemia caused by hypervitaminosis D in a nursling.
CASE REPORT: 5-months-old masculine child, exclusively breastfed, referred to a specialist with suspected cows milk protein allergy because he failed to gain weight in the last month and presented with blood and mucus in stool. Beyond failure to thrive, the patient evolved with somnolence, apathy and hypotonia. Laboratorial tests revealed hypercalcemia (serum calcium of 17,40 mg/dL) and hypervitaminosis D (180 ng/mL). The hypothesis of vitamin D intoxication was raised and later confirmed by the laboratorial analysis of the supplement offered to the nursling, which revealed a vitamin D concentration 46 times greater than the originally prescribed by the pediatrician.
CONCLUSION: Due to the currently high diagnostic suspicion of cows milk protein allergy in nurslings, other causes of these symptoms cant be neglected in the investigation when the elimination diet fails. In this nursling, the persistence of failure to thrive, apathy, anorexia and hypotonia during four months motivated the investigation that showed a severe hypercalcemia due to the usage of manipulated vitamin D.

Keywords: Hypercalcemia, Vitamin D, Case Reports, Infant.


INTRODUÇÃO

A vitamina D consiste em um pró-hormônio (secosteroide) que atua na absorção de cálcio e fósforo pelo intestino, na reabsorção de cálcio pelos rins e na mineralização dos ossos1. A intoxicação de vitamina D em lactentes, considerada para níveis séricos de 25-hidroxivitamina D superiores a 100 ng/mL, de acordo com as Diretrizes de Práticas Clínicas da Sociedade de Endocrinologia, é uma das causas para o desenvolvimento de hipercalcemia (níveis séricos de cálcio superiores a 10,5mg/dL), condição pouco frequente na pediatria2. Condições clínicas envolvendo a intoxicação por vitamina D são pouco relatadas, uma vez que a hipercalcemia sugere outras hipóteses diagnósticas, tais como hiperparatireoidismo primário, neoplasias, infecções e uso de diuréticos tiazídicos3.

O objetivo deste relato é descrever um caso pediátrico de hipercalcemia grave por hipervitaminose D em lactente, levando à perda de ganho de peso e altura (failure to thrive) e hipotonia.


RELATO DE CASO

Lactente masculino, 5 meses de vida, nascido a termo com 49,5cm, natural de Curitiba/PR, em aleitamento materno exclusivo até esta idade, apresentou-se ao ambulatório do pediatra especialista do Programa de Atenção Nutricional – Curitiba (PAN-Curitiba), por suspeita de alergia à proteína do leite de vaca (APLV). O PAN-Curitiba é o programa que fornece fórmulas de alto custo para lactentes de Curitiba com necessidades de alimentos especiais. Nessa consulta o peso era de 6.600g (<escore Z -1), altura 62,3cm (escore Z -2 a -1), relação peso/altura no escore Z -1 a 0 (medidas de peso e altura nos gráficos 1 e 2). Os sintomas que geraram a hipótese de APLV foram a ausência de ganho de peso durante o mês anterior e a presença de estrias de muco e sangue nas fezes, tendo o primeiro episódio ocorrido de forma esporádica aos três meses e vinte dias de idade, após uma infecção respiratória, mas se repetiu todos os dias nos últimos 25 dias (após as vacinas dos 4 meses).


Gráfico 1. Peso por idade.
Legenda: A linha em vermelho representa o momento da interrupção da administração do suplemento de vitamina D.




Gráfico 2. Estatura por idade.
Legenda: A linha em vermelho representa o momento da interrupção da administração do suplemento de vitamina D.



Nos dois meses seguintes, permaneceu em aleitamento materno, sendo a dieta da mãe sem leite de vaca e derivados, com introdução dos alimentos complementares na idade certa. A presença de sangue nas fezes teve duração total de 45 dias e desapareceu após a adequação da dieta. Aos 7 meses, o peso e a altura caíram ambos para o escore Z-3 a -2 (o ganho de altura foi de apenas 3,5 cm nos quatro meses anteriores – queda de dois canais no gráfico de altura; o peso se manteve em 6.600g durante quatro meses). Além do FTT, evoluiu com sonolência, apatia, anorexia e hipotonia, progressivamente piores. A mãe, após dois meses de dieta de exclusão rigorosa dela e do seu filho, mostrava-se impaciente com o diagnóstico de APLV apontado pelos pediatras, pois não via qualquer melhora dos sintomas, os quais inclusive estavam piorando.

Estava com 7 meses e 22 dias e foi encaminhado à Emergência Pediátrica para realizar exames complementares hematológicos, metabólicos, bioquímicos, sorologias e urinálise. A dosagem de cálcio de 17,40 mg/dL motivou internamento hospitalar imediato para tratamento e investigação da causa da hipercalcemia. Foi admitido na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), onde recebeu hidratação e uso de diuréticos para reduzir o nível sérico de cálcio. Na investigação foi constatada ipervitaminose D (vitamina D = 180 ng/ml). Recebeu alta após sete dias, quando os níveis séricos de cálcio atingiram 12,7 mg/dL e os níveis séricos de vitamina D atingiram 90 ng/mL. Foi considerada a hipótese de intoxicação por vitamina D. Vinha recebendo gotinhas de vitamina D via oral desde o segundo mês de vida. O preparo farmacológico do suplemento de vitamina havia sido realizado em farmácia de manipulação, por orientação do pediatra, com concentração prescrita de 10.000 UI/ml. O frasco produzido pelo farmacêutico foi enviado para análise laboratorial da concentração de vitamina D, e foi detectada concentração de 465.878 UI/ml desta vitamina, aproximadamente 46 vezes superior à prescrição médica.

Após um mês de ter sido cessado o uso do suplemento, aos 9 meses, o paciente estava em rápida recuperação nutricional, bastante ativo e com tônus muscular normal. Mantinha o aleitamento materno, ingerindo bem os demais alimentos próprios para a idade e recebeu fórmula de proteína extensamente hidrolisada após os 8 meses. Aos 12 meses, foi realizado teste de provocação oral com proteína de leite de vaca, sem qualquer reação adversa. O peso estava no escore z-1 a 0 e a altura no escore z-2 a -1. Encontrava-se com valores normais nas dosagens de cálcio, vitamina D, paratormônio, ureia e creatinina. A concentração de fósforo ainda estava acima da referência e a endocrinologia continuou acompanhando.

DISCUSSÃO

Atualmente a pediatria clínica tem atuado com alto nível de suspeita diagnóstica de APLV em lactentes, diante de variados sintomas. O caso apresentado aqui serve de alerta para que o pediatra não descuide do diagnóstico diferencial e da busca de outras causas, especialmente quando ocorre falha da dieta de exclusão da proteína. No paciente descrito, foi investigada a causa do FTT, apatia, anorexia e hipotonia, resultando no surpreendente achado de hipercalcemia por hipevitaminose D. A resolução dos sinais e sintomas foi completa nos meses seguintes após a remoção do suplemento manipulado, com queda nos níveis de cálcio e vitamina D circulante.

Os sintomas associados à hipercalcemia em crianças podem ser pouco específicos. Alguns dos achados clínicos referentes à hipercalcemia podem incluir deficiência de ganho de peso e altura, letargia, hipotonia, poliúria, nefrolitíase, vômitos, dores ósseas, dores abdominais, constipação e raramente convulsões4. A elevação acentuada de cálcio pode ser tratada com 20mL/kg de soro fisiológico IV adicionado de 2 mg/kg de furosemida IV. Em casos de hipercalcemia grave persistente, pode-se adicionar corticoides, calcitonina ou bifosfonatos ao tratamento5. Além de doença renal, em caso crônico e grave de hipercalcemia, ocasionado ou não por hipervitaminose D, é necessária avaliação cardiovascular. Foi descrito um caso de criança de 11 anos de idade, com doença renal crônica e hiperparatireoidismo secundário, que evoluiu para necrose cerebral isquêmica, calcificação nas artérias coronárias e infarto do miocárdio, por conta da deposição de cálcio no sistema vascular do paciente6.

A deficiência de vitamina D materna é fator de risco para deficiência de vitamina D na infância, pois os lactentes dependem do leite materno, o qual apresenta baixo teor de vitamina D (cerca de 20-60 IU/L), sendo às vezes insuficiente para as necessidades nutricionais da criança7. Com isso, o Departamento de Endocrinologia da Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda a suplementação profilática de 400 UI/dia a partir da primeira semana de vida até os 12 meses, e de 600 UI/dia dos 12 aos 24 meses, inclusive para as crianças em aleitamento materno exclusivo. Para os recém-nascidos pré-termo, a suplementação de 400 UI/dia de vitamina D deve ser iniciada quando o peso for superior a 1500g e quando houver tolerância plena à nutrição enteral. A suplementação visa a prevenir hipovitaminose D e, consequentemente, o raquitismo, hipocalcemia, hipofosfatemia, tetania, crânio tabes e osteomalácia8. Outros estudos associam a hipovitaminose D também com maiores incidências de infecções agudas do trato respiratório inferior e sibilâncias recorrentes nos primeiros cinco anos de vida7.

Ocasionalmente torna-se escasso o abastecimento comercial de produtos farmacêuticos destinados à suplementação de vitamina D em lactentes. Tal situação estimula o aumento da prescrição de suplementos manipulados, o que incrementa o risco de intoxicação por vitamina8. O produto das farmácias de manipulação deve ter sua composição cuidadosamente monitorada.


REFERÊNCIAS

1. Ariganjoye R. Pediatric Hypovitaminosis D: Molecular Perspectives and Clinical Implications. Global Pediatric Health. 2017;4:12-15.

2. Maeda SS, Borba VZC, Camargo MBR, Silva DMW, Borges JLC, Bandeira F, et al. Recomendações da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) para o diagnóstico e tratamento da hipovitaminose D. Arq Bras Endocrinol Metab. 2014;58(5):411-33.

3. Marins TA, Galvao TFG, Korkes F, Malerbi DAC, Ganc AJ, Korn D, et al. Intoxicação por vitamina D: relato de caso. Einstein. 2014;12(2):242-4.

4. Auron A, Alon US. Hypercalcemia: a consultant’s approach. Pediatr Nephrol. 2018;33(9):1475-88.

5. Demir K, Doneray H, Kara C, Atay Z, Cetinkaya S, Cayir A, et al. Comparison of Treatment Regimens in Management of Severe Hypercalcemia Due to Vitamin D Intoxication in Children. J Clin Res Pediatr Endocrinol. 2019;11(2):140-8.

6. Herdy GVH, Lopes VGS, Olivaes MC, Mota IC, Vasconcelos MM. Complicações cardiovasculares em criança com insuficiência renal crônica. Arq Bras Cardiol. 2007;88(2):32-35.

7. Urrutia-Pereira M, Solé D. Deficiência de vitamina D na gravidez e o seu impacto sobre o feto, o recém-nascido e na infância. Rev Paul Pediatr. 2015;33(1):104-13.

8. Sociedade Brasileira de Pediatria, Departamento de Endocrinologia. Hipovitaminose D em pediatria: recomendações para o diagnóstico, tratamento e prevenção. Guia Prático de Atualização. 2016; 1:11.





1. Hospital Universitário Evangélico Mackenzie, Serviço de Pediatria - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Maria Eduarda de Souza do Amaral
Hospital Universitário Evangélico Mackenzie
Alameda Augusto Stellfeld, 1908 - Bigorrilho
Curitiba - PR, 80730-150
E-mail: mesouzaamaral@gmail.com

Data de Submissão: 23/09/2021
Data de Aprovação: 03/07/2023