ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Relato de caso de infarto esplênico em uma criança com atresia biliar

Case report of splenic infarction in a child with biliary atresia

RESUMO

O objetivo deste relato é descrever um caso raro de infarto esplênico (IE) associado à atresia biliar (AB), o que contribuiu para a piora do prognóstico. No caso relatado, um menino com diagnóstico de atresia biliar foi submetido ao procedimento de Kasai aos 3 meses de idade. O paciente apresentou quadro de dor abdominal intensa, ascite e febre aos 6 anos. A tomografia computadorizada (TC) mostrou aumento do baço e uma imagem sugestiva de IE. Os sintomas melhoraram com a administração de antibióticos, analgésicos, enquanto a ascite diminuiu com o uso de diuréticos. O transplante de fígado foi indicado. IE é um evento extremamente raro caracterizado por oclusão de vasos, isquemia parenquimatosa e necrose tecidual do baço. Os sintomas são inespecíficos e podem dificultar a diferenciação de outras causas de dor abdominal aguda. Doenças que cursam com esplenomegalia podem ser um fator de risco. Existem poucos relatos de casos de IE e cirrose de diferentes etiologias na faixa etária pediátrica. A tomografia computadorizada abdominal com contraste intravenoso é a modalidade de imagem de escolha e o tratamento varia de cuidados de suporte a esplenectomia. Apesar de ser uma condição rara, seu conhecimento é de extrema importância, pois permite suspeição clínica precoce, com instituição imediata do tratamento, podendo interferir no prognóstico.

Palavras-chave: Atresia biliar, Esplenomegalia, Pediatria, Infarto do Baço.

ABSTRACT

This case report is intended to describe a rare case of splenic infarction (SI) associated with biliary atresia, which contributed to the worsening of the prognosis. In this case study, a boy diagnosed with biliary atresia underwent the Kasai procedure at the age of 3 months. The patient presented an intense abdominal pain, ascites and fever at the age of 6 years. A computed tomography (CT) scan showed enlargement of the spleen and an image suggestive of SI. The symptoms improved with the administration of antibiotics, analgesics, while ascites decreased with the use of diuretics. Liver transplantation was indicated. SI is an extremely rare event characterized by vessel occlusion, parenchymal ischemia and tissue necrosis. The symptoms are non-specific and may be confounding factors with other causes of acute abdominal pain. Splenomegaly-inducing diseases may be a risk factor. There are few case reports of SI and cirrhosis of different etiologies in childhood. Abdominal CT scan with intravenous contrast is the imaging modality of choice and the treatment ranges from supportive care to splenectomy. Despite being a rare condition, its knowledge is extremely important, as it allows early clinical suspicion, with immediate institution of treatment, which may interfere with the prognosis.

Keywords: Biliary atresia, Splenic infarction, Splenomegaly, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

O infarto esplênico (IE) é um evento extremamente raro caracterizado por oclusão de vasos e isquemia do parênquima, podendo evoluir para necrose tecidual1. As duas causas mais comuns são doenças hematológicas infiltrativas e doença tromboembólica e, em crianças, hemoglobinopatias falciformes.

Doenças que causam esplenomegalia são consideradas fatores de risco para IE, como leucemia mieloide crônica, mielofibrose, linfoma, doença de Gaucher, malária, síndrome da imunodeficiência adquirida com infecção por Mycobacterium avium2. Apenas um caso de IE associado à atresia biliar (AB) foi descrito. O diagnóstico de tal complicação é frequentemente aventado com base na presença de doenças subjacentes mais propensas a causá-la.

Este relato descreve um caso de infarto esplênico em paciente pediátrico com atresia biliar, reforçando a relevância da suspeição dessa complicação em casos dessa enfermidade que apresentem dor abdominal.


RELATO DE CASO

Um menino brasileiro, com gestação e parto sem intercorrências, por volta de 1 mês de idade, iniciou quadro de icterícia, acolia fecal, hepatomegalia e anemia. Aos 3 meses de idade, foi diagnosticado com AB e foi submetido ao procedimento de Kasai. Desde então, a bilirrubina total (BT) variou de 2,34 a 5,47 mg/dL em uso de ácido ursodesoxicólico.

A partir de 13 meses de idade, foi observada esplenomegalia. Aos 2 anos e 3 meses, varizes esofágicas foram detectadas por endoscopia após episódio de hematêmese, e o tratamento de ligadura endoscópica (LE) foi realizado. Aos 6 anos, o baço media mais de 20 centímetros em sua maior dimensão no ultrassom (limite superior para a idade de 9,5 cm)3, e ao exame físico, apresentava-se palpável 15 cm abaixo da margem costal esquerda. Nesse momento, os percentis corporais eram, segundo dados do CDC/OMS (Centros de Controle e Prevenção de Doenças/Organização Mundial da Saúde): peso/idade p34, altura/idade p3, índice de massa corporal/idade p87. Os testes laboratoriais mostraram: BT 3,8; Albumina 3,5; RNI 1,12.

Aos 6 anos e 11 meses, o paciente apresentou dor intensa no quadrante superior esquerdo do abdome e evoluiu com febre, chegando a 39 ºC. Em 2 dias, o paciente foi admitido em hospital apresentando leve icterícia, abdome distendido com circulação colateral “em cabeça de medusa”. O baço era palpável 14 cm abaixo da margem costal esquerda, doloroso. Testes laboratoriais mostraram BT 3,55, Albumina 3,0 e RNI 1,2 – Pediatric End-stage Liver Disease (PELD) 2. Um ultrassom (US) detectou esplenomegalia, medindo 20 centímetros em sua maior dimensão, com uma imagem hipoecogênica na região anterior do terço médio, medindo 1,9 x 5,3 cm e na região superior, medindo 7 cm no maior eixo, além de ascite leve. A tomografia computadorizada (TC) do abdome evidenciou baço aumentado, medindo até 23,2 cm sua maior extensão, com contornos regulares, apresentando área de hipocontrastação segmentar em sua porção superolateral, sugestiva de infarto (Figura 1), além de calcificações puntiformes espalhadas sobre o parênquima esplênico, com aspecto sequelar. Os sintomas melhoraram com a administração de antibióticos (ampicillina-sulbactam) e analgésicos e a ascite reduziu com o uso de diuréticos (furosemida 1,5 mg/kg/dia e espironolactona 3,5 mg/kg/dia). Durante a internação, ele evoluiu com alívio da dor, sem novos picos febris, tendo alta do hospital no 23º dia. Testes realizados durante a evolução são mostrados na Tabela 1. US de seguimento foram realizados nos 6°, 11°, 18° e 27° dias após o início da doença, e não mostraram sinais de complicações. O transplante de fígado foi indicado.


Figura 1. Tomografia computadorizada de abdome no plano coronal demostrando esplenomegalia e áreas segmentares de hipocontrastação do parênquima esplênico, compatível com infarto (seta).






O presente relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-Unicamp) com consentimento livre e esclarecido do representante legal do paciente.


DISCUSSÃO

Semelhante ao único relato de caso de AB e IE descrito em um menino japonês por Matsui et al. (1997)4, nosso paciente tinha 7 anos quando foi diagnosticado. O menino japonês teve a esplenomegalia detectada aos 22 meses de idade, e varizes esofágicas detectadas aos 4 anos de idade. No presente caso, a esplenomegalia foi detectada muito cedo, aos 13 meses, e as varizes esofágicas foram detectadas aos 2 anos e 3 meses de idade, após uma hemorragia gastrointestinal, mostrando uma progressão mais rápida da doença e suas complicações4.

Uma anoxia subjacente ao infarto esplênico pode ser produzida por diversos fatores: aumento na massa absoluta do baço resultando em uma maior demanda de oxigênio; compressão dos vasos sanguíneos extraesplênicos por linfonodos aumentados; diminuição da capacidade de transporte de oxigênio do sangue causado pela anemia; ou bloqueio da circulação intraesplênica por células anormais ocluindo os sinusoides venosos ou comprimindo as arteríolas e vênulas5. A acentuada esplenomegalia associada à hipertensão portal pode ter corroborado a anóxia em nosso paciente.

Os sintomas de IE não são específicos, exigindo uma ampla abordagem diferencial com outras causas de dor abdominal aguda. Testes laboratoriais, como testes de função hepática, bilirrubina ou lipase, podem ajudar na investigação de outras causas de dor abdominal. Leucocitose e lactato desidrogenase elevada (LDH) podem ser encontrados em IE, embora não sejam específicos2.

A TC abdominal realizada com contraste intravenoso é a modalidade de imagem de escolha em suspeita de infarto do baço, embora o US geralmente seja utilizado para avaliação inicial e acompanhamento subsequente6. Na fase hiperaguda, o US é menos sensível porque não há diferenças entre a ecogenicidade do tecido infartado e normal7.

A formação de pseudocisto, abscesso, hemorragia, ruptura esplênica e aneurisma podem ocorrer no curso da condição2. A região acometida pode ser infectada e levar à formação de abscessos, podendo também passar por uma transformação hemorrágica. Essas complicações são indicação de conduta cirúrgica urgente. No nosso caso, o ultrassom foi utilizado durante o acompanhamento, sendo realizado 6, 11, 18 e 27 dias após o início da doença, sem sinais de complicações.

O tratamento depende da condição de base subjacente, variando desde cuidados de suporte, como hidratação, analgésicos e antieméticos, até esplenectomia.

De acordo com o relatório de caso de Matsui et al. (1997)4, o infarto esplênico em pacientes com hipertensão portal secundária à AB pode levar a uma aceleração significativa da insuficiência hepática crônica, justificando a indicação de transplante de fígado em nosso caso. Apesar de ser uma condição rara, seu conhecimento é de extrema importância, pois permite suspeição clínica precoce, com instituição imediata do tratamento, podendo interferir no prognóstico.


REFERÊNCIAS

1. Mortazavi AR, Joudi M, Zabolinejad N, Aelami MH, Farhangi H, Alamdaran SA. Massive Splenic Infarction with Specific Sonographic Feature: Two Case Reports with Rare Etiologies. J Clin Gastroenterol Treat. 2018;4:058.

2. Chapman J, Helm TA, Kahwaji CI. Splenic Infarcts. StatPearls [Internet]. 2020; [acesso em 2021 jul 4]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK430902. Acesso em: jul. 2021.

3. Rosenberg HK, Markowitz RI, Kolberg H, Park C, Hubbard A, Bellah RD. Normal Splenic Size in Infants and Children: Sonographic Measurements. AJR Am J Roentgenol. 1991;157(1):119-21.

4. Matsui A, Shimada T, Sasaki N, Ishikawa T, Momoya T, Makino S. Splenic Infarction in a Child With Portal Hypertension Secondary to Biliary Atresia. J Pediatr Surg. 1997;32(4):648-9.

5. Hynes HE, Silverstein MN, Fawcett KJ. Spontaneous rupture of the spleen in acute leukemia. Report of 2 cases. Cancer. 1964;17:1356-60.

6. Ray S, Mridha AR, Ahammed M. Diffuse splenic infarction in a case of severe acute pancreatitis. Am J Surg. 2011;201(3):e23-5.

7. Kianmanesh R, Aguirre HI, Enjaume F, Valverde A, Brugière O, Vacher B, et al. Spontaneous splenic rupture: report of three new cases and review of the literature. Ann Chir. 2003;128(5):303-9










1. Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de Pediatria - Campinas - São Paulo - Brasil
2. Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de Radiologia e Diagnóstico por Imagem - Campinas - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Maria Angela Bellomo Brandão
Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
R. Vital Brasil, 251 - Cidade Universitária
Campinas - SP, 13083-888
E-mail: angbell@unicamp.br

Data de Submissão: 03/10/2021
Data de Aprovação: 25/06/2023