ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Associação entre refluxo vesicoureteral e anomalia do cromossomo 22 em anel - relato de caso

Association between vesicureteral reflux and chromosome 22 ring anomaly - case report

RESUMO

O refluxo vesicoureteral (RVU) é caracterizado pelo fluxo retrógrado da urina, causado por deficiência da oclusão da porção intramural do ureter pela contração do músculo detrusor durante a micção ou secundário à dinâmica vesical alterada, obstrução ureteral e doenças neuromusculares, como a síndrome de Phelan-McDermid. Tal síndrome consiste em uma doença rara e subnotificada, resultante da formação do cromossomo 22 em anel e tem o RVU como sua principal manifestação urológica. O objetivo do presente trabalho é alertar a comunidade médica sobre um dos diagnósticos diferenciais na etiologia do RVU, a partir do caso de uma paciente do sexo feminino, 4 anos e 2 meses, encaminhada ao serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Estadual Mário Covas com infecção do trato urinário de repetição associada a prejuízo de função renal e RVU bilateral evidenciado em uretrocistografia. Durante investigação, os achados fenotípicos incentivaram a realização de cariótipo que confirmou as alterações encontradas na síndrome de Phelan-McDermid. O diagnóstico precoce do RVU foi essencial para estabelecer a terapêutica adequada, que envolveu abordagens clínicas e cirúrgicas visando melhora de qualidade de vida, preservação do parênquima renal e prevenção de maiores complicações futuras.

Palavras-chave: Refluxo vesicoureteral, Urologia, Genes, Nefrologia.

ABSTRACT

Vesicoureteral reflux (VUR) is characterized by retrograde urine flow, caused by impaired occlusion of the intramural portion of the ureter by contraction of the detrusor muscle during urination or secondary to altered bladder dynamics, ureteral obstruction and neuromuscular diseases, such as Phelans syndrome -McDermid. This syndrome is a rare and underreported disease, resulting from the formation of chromosome 22 in a ring and has VUR as its main urological manifestation. The objective of this study is to alert the medical community about one of the differential diagnoses in the VUR etiology, based on the case of a female patient, 4 years and 2 months old, referred to the Pediatric Surgery service of the Mário Covas State Hospital with recurrent infection of urinary tract associated with impaired renal function and bilateral VUR evidenced on cystourethrography. During investigation, the phenotypic findings encouraged the performance of a karyotype that confirmed the alterations found in Phelan-McDermid syndrome. VUR early diagnosis was essential to establish the appropriate therapy, which involved clinical and surgical approaches aimed at improving quality of life, preserving the renal parenchyma and preventing further future complications.

Keywords: Vesico-ureteral reflux, Urology, Genes, Nephrology.


INTRODUÇÃO

O refluxo vesicoureteral (RVU) é caracterizado pelo fluxo retrógrado da urina, causado por defeito da oclusão da porção intramural do ureter pela contração do músculo detrusor durante a micção ou secundário à dinâmica vesical alterada, obstrução ureteral e doenças neuromusculares resultantes de alterações cromossômicas. O RVU tende a ser assintomático, mas facilita a ascensão de bactérias ao trato urinário superior, sendo comum a associação com quadros de infecção do trato urinário (ITU) de repetição1-3.

A síndrome de Phelan-McDermid (SPM) é resultante da formação de um cromossomo 22 em anel, cujo diagnóstico se manifesta inicialmente por distúrbios do neurodesenvolvimento, como transtorno do espectro autista e deficiência intelectual. Sinais sugestivos da síndrome incluem hipotonia neonatal, dismorfismos faciais variados (dolicocefalia, pálpebras e bochechas cheias, nariz bulboso com ponte nasal larga e orelhas proeminentes) e alterações de extremidades4,5. Além disso, a principal alteração urológica da síndrome é o RVU. Mesmo sendo uma manifestação comum essa associação é pouco encontrada na literatura, pois trata-se de uma síndrome rara e subnotificada, devido escassez de critérios clínicos diagnósticos e necessidade de exames de alto custo para complementar a investigação6-9.

Por isso, este relato de caso possui o objetivo alertar a comunidade médica sobre um dos diagnósticos diferenciais na etiologia do RVU, frequentemente encontrado em pacientes autistas ou com déficit intelectual, a fim de promover melhor qualidade de vida para essas crianças através de intervenção multidisciplinar precoce.


RELATO DE CASO

LOA, 4 anos e 2 meses, sexo feminino, primeira filha de pais não consanguíneos, nascida de parto cesárea com IG de 39 semanas e 1 dia, pesando 3.075 g, 47 cm de altura e 35,5 cm de perímetro cefálico. Recebeu alta da maternidade dentro do tempo previsto, sem intercorrências.

Foi encaminhada ao serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Estadual Mário Covas devido a quadro de ITU de repetição. Na ocasião, trazia exames externos de uretrocistografia miccional (UCM) com refluxo vesicoureteral grau V à esquerda e grau IV à direita. Além disso, ao exame físico constataram-se características fenotípicas da SPM como dolicocefalia, sobrancelha cheia, pálpebras edemaciadas, ponte nasal larga, nariz bulboso e bochechas avantajadas. A criança apresentava dificuldade nos domínios da linguagem e interagia com a equipe médica. Ao exame físico, percebeu-se depressão na coluna sacral com prega glútea normal. Teve SPM confirmada com cariótipo de sangue periférico com bandeamento G, que evidenciou cromossomo 22 em anel em todas as metáfases (46, XX, r22, p11.2q13.3) (Figura 1).


Figura 1. Cariótipo de sangue periférico com bandeamento G que resultou em 46, XX, r (22) (p11.2q13.3) e cromossomo 22 em anel em todas as metáfases analisadas.



Solicitaram-se exames para investigação da ITU de repetição. A ultrassonografia de rins e vias urinárias com rim direito de 7,7 cm de comprimento, espessura do parênquima (EP) 0,9 cm com discreta/moderada dilatação pielocalicial e ureteral proximal; rim esquerdo com 8,2 cm de comprimento, EP 0,7 cm com acentuada dilatação pielocalicial e ureteral em toda a extensão. À Cintilografia Renal Estática (DMSA) (Figura 2): rim direito tem 68% de sua função tubular e o esquerdo 32% com volume reduzido e amputação de imagem no polo renal inferior, sugestivo de cicatriz renal. À Cintilografia Renal Dinâmica (DTPA) não houve evidência de obstrução funcional. O estudo urodinâmico concluiu como bexiga hiperativa e micção disfuncional.


Figura 2. Cintilografia Renal Estática (DMSA) apresentando rim direito com 68% de sua função tubular e rim esquerdo 32% com volume reduzido e cicatriz no polo inferior.



A partir dos resultados dos exames, foi tratada inicialmente com anticolinérgicos e alfa-bloqueador. Durante o seguimento por quase dois anos, houve piora da perda do parênquima renal avaliada pela cintilografia com DMSA e optou-se por reimplante vesicoureteral bilateral pela técnica de Politano-Leadbetter.

A paciente encontra-se atualmente em bom estado pós-operatório, sem recidiva dos episódios de infecção urinária.


DISCUSSÃO

O cromossomo em anel é geralmente causado por erros espontâneos e aleatórios durante o desenvolvimento embriológico. Origina-se de quebras terminais em ambos os braços distais p e q, seguidas de fusão. Embora seja uma rara anormalidade cromossômica, pode envolver emparelhamento ou deleção dos telômeros. O tamanho do braço q distal excluído (região 22q13) do cromossomo 22 afeta o fenótipo geral. Nesse processo, pode haver a deleção ou interrupção do gene SHANK3, que se encontra na extremidade terminal do cromossomo 22q. No caso apresentado, não se sabe se a paciente possui o SHANK3, pois o estudo de sua alteração genética não foi feito com teste molecular genético, e sim com a análise de cariótipo, teste mais acessível financeiramente naquele momento4,5.

A associação da síndrome de Phelan-McDermid (SPM) com malformações congênitas está diretamente relacionada com o tamanho da deleção do gene. Promove repercussões fisionômicas, gastrointestinais, odontológicas, oftalmológicas, neurológicas e urológicas4,6,7. Verificou-se que dentre as alterações, as urológicas necessitam de uma deleção mínima para sua manifestação9.

Em 2013, Soorya et al. (2013)9 realizaram um estudo com 30 crianças autistas e encontraram uma incidência de alterações urológicas decorrentes da SPM em 38% da amostra, sendo as principais refluxo vesicoureteral e hidronefrose. Em outro estudo de 2014, Sarasua e cols. (2014)10 mostraram que 14% dos 201 portadores da SPM estudados apresentavam refluxo vesicoureteral.

O RVU possui duas vertentes de tratamento: clínico e cirúrgico. De maneira geral, conduz-se os pacientes com RVU com terapia medicamentosa, que pode incluir profilaxia com antibióticos. O tratamento cirúrgico visa evitar a progressão para doença renal crônica e acaba sendo reservado para os quadros de manutenção de ITU de repetição, desenvolvimento de cicatrizes renais ou para os pacientes que evoluem com piora da função do rim11. A paciente do relato de caso foi tratada de forma conservadora durante dois anos com o uso de anticolinérgicos e alfa-bloqueadores. Porém houve uma piora da perda do parênquima renal avaliada pela cintilografia com DMSA, indicando intervenção cirúrgica. O objetivo da cirurgia, no entanto, não é a recuperação do parênquima perdido, mas a prevenção de novas lesões em um rim já doente.

As cirurgias abertas para correção de RVU apresentam uma taxa de sucesso de 95-99% dos casos12. Optou-se pela técnica intravesical de Politano-Leadbetter, que consiste na criação de um túnel submucoso na direção do trígono vesical medial ao meato original para restabelecer um sistema valvular competente e interromper o refluxo de urina. Possui uma taxa de complicações baixa, sendo hematúria, estenose de ureter e extravasamento de urina as mais comuns, porém nenhuma delas foi observada no caso da nossa paciente13.

Por fim, podemos inferir que apesar de não haver parâmetros estabelecidos para orientar a avaliação e acompanhamento médico da SPM, o manejo dessa patologia envolve atenção multidisciplinar, auxílio de exames complementares e seguimento ambulatorial de rotina para melhor traçar o plano terapêutico de cada paciente. O seguimento dos portadores deve incluir anamnese e exame físico completos desde o nascimento, incluindo avaliações cognitivas e comportamentais seriadas com objetivo de excluir outras patologias que cursam com manifestações semelhantes. O caso relatado neste artigo exemplifica como cada etapa desse processo é fundamental e que tratamentos clínicos e cirúrgicos devem ser aliados na condução individual dos doentes com RVU, permitindo a manutenção de sua qualidade de vida e funcionalidade.


REFERÊNCIAS

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Data de Submissão: 08/10/2021
Data de Aprovação: 03/06/2022