Relato de Caso
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Ano 2023 -
Volume 13 -
Número
4
Síndrome de Arboleda-Tham causado por nova variante genética
Novel genetic variant causing Arboleda-Tham syndrome
Ivana Cardoso1; Margarida Fernandes1; Rita Quental2; Marta Vila Real3; Fátima Santos3
RESUMO
Relatamos o caso de um menino de 10 anos de idade seguido desde o nascimento devido a uma síndrome polimalformativa, incluindo doença cardíaca congénita, microcefalia, incapacidade de prosperar, hipotonia do tronco e hipertonia das extremidades. Com o tempo, as principais queixas foram o atraso no desenvolvimento e a ausência de linguagem expressiva. Ao exame físico, as características dismórficas faciais tornaram-se mais evidentes. A análise cromossómica e a hibridação genómica comparativa não revelaram alterações patogénicas significativas. O sequenciamento completo do exoma identificou a provável variante patogénica c.4027dup p.(Glu1343Glyfs*13) em heterozigose no gene KAT6A. Esta variante resulta na produção de uma proteína truncada e não foi relatada anteriormente na literatura. As variantes patogénicas no gene KAT6A causam a Síndrome de Arboleda-Tham que tem apresentações clínicas variáveis. As características e defeitos de desenvolvimento graves deste rapaz são compatíveis com as descritas noutros casos de variantes patogénicas de truncagem tardia neste gene. Revendo a literatura, descobrimos que este é o primeiro paciente em Portugal diagnosticado pelo sequenciamento completo do exoma e que envolve uma nova variante genética relatada.
Palavras-chave:
Sequenciamento Completo do Exoma, Deficiência Intelectual, Genes.
ABSTRACT
We report the case of a 10-year-old boy followed since birth due to a polymalformative syndrome, including congenital cardiac disease, microcephaly, failure to thrive, trunk hypotonia and hypertonia of the extremities. With time, chief complaints were developmental delay and absence of expressive language. On physical examination dysmorphic facial features became more evident. The chromosomal analysis and array comparative genomic hybridization (aCGH) revealed no significant pathogenic changes. Whole Exome Sequencing (WES) identified the likely pathogenic variant c.4027dup p.(Glu1343Glyfs*13) in heterozygosity in KAT6A gene. This variant results in the production of a truncated protein and was not reported previously in the literature. Pathogenic variants in the KAT6A gene cause Arboleda-Tham Syndrome (ARTHS), which has variable clinical presentations. This boy´s features and severe developmental defects are compatible with the ones described in other cases of late-truncating pathogenic variants in this gene. Reviewing the literature, we found out that this is the first patient in Portugal diagnosed by WES and that it involves a novel reported genetic variant.
Keywords:
Whole Exome sequencing, Intellectual disability, Genes.
INTRODUÇÃO
Em 2015, variantes patogênicas heterozigóticas do gene KAT6A (OMIM 601408) no cromossomo 8p11 foram descobertas como causadoras de retardo mental e síndrome de atraso no desenvolvimento, mais tarde chamada KAT6A ou síndrome de Arboleda-Tham (ARTHS) (OMIM #616268)1. Desde então, cerca de 80 casos foram descritos na literatura, delineando uma nova síndrome com apresentação variável, que depende da localização da variante patogênica no gene KAT6A2.
As principais características desta síndrome são deficiência intelectual (DI), atraso na fala, com linguagem receptiva consistentemente mais desenvolvida do que linguagem expressiva, microcefalia, anomalias cardíacas e complicações gastrointestinais com alta incidência de refluxo gastroesofágico e constipação. A síndrome também está associada a feições faciais dismórficas variáveis, baixo crescimento geral e hipotonia, alguns casos com extremidades rígidas e defeitos visuais, incluindo estrabismo3;4.
O gene KAT6A (também conhecido como MYST3, MOZ) é composto por 17 éxons e codifica uma lisina acetiltransferase 5. Se a variante patogênica for proximal, o transcrito sofre decaimento mediado por mutações nonsense e os sintomas se manifestam por haploinsuficiência. Os transcritos com variantes patogênicas nos éxons 16 e 17, entretanto, podem não sofrer decaimento e, por conseguinte, codificam uma proteína truncada que atua de maneira dominante negativa ou com ganho de função1; 5. Variantes patogênicas truncadas de KAT6A no último éxon ou próximo ao último éxon resultam em fenótipos mais graves do que variantes truncadas em éxons anteriores1. Mais de 50 variantes de truncamento de proteínas, seis missense e quatro variantes de splicing, foram identificadas no gene KAT6A. Pacientes com variantes missense não apresentaram, até o momento, fenótipos cardíacos6.
O amplo espectro fenotípico dos indivíduos com variantes do gene KAT6A destaca a importância do sequenciamento do exoma para identificar a etiologia genética dos pacientes com DI sindrômica7.
RELATO DE CASO
O presente artigo descreve o caso de uma criança do sexo masculino, atualmente com 10 anos, acompanhada em consulta desde o nascimento por síndrome polimalformativa.
Etnia cigana, com pais consanguíneos (primos de segundo grau) e avós maternos consanguíneos. O pai apresenta atraso cognitivo com ausência de linguagem, epilepsia e estrabismo e a mãe apresentava teste positivo para infecção por HCV. Irmãos paternos saudáveis.
História pré-natal sem intercorrências, exceto pela positividade da mãe para infecção por HCV; ultrassonografias e ecocardiografia fetal normais. Nascimento com 37 semanas de gestação com Apgar 8/10. Ao exame físico apresentava microcefalia congênita (percentil <5), peso e comprimento no percentil 10 e respiração sistólica. Foi realizada ultrassonografia transfontanelar com resultados normais. Ecocardiografia detectou grande comunicação interventricular subaórtica, estenose valvar pulmonar e forame oval persistente com shunt da esquerda para a direita. Defeitos cardíacos indicaram a realização de cirurgia corretiva aos 13 meses de idade.
Nos primeiros meses de vida manteve má evolução estaturo-ponderal, apresentava microcefalia progressiva, com maior afastamento do percentil 5, além de hipotonia axial com espasticidade periférica. Apresentava infecções respiratórias recorrentes e história de constipação. Aos três meses apresentou crise convulsiva, com internação.
Do estudo realizado durante a internação e em outros realizados posteriormente, o paciente apresentou alterações no eletroencefalograma com atividade paroxística generalizada e escassa, além de outros estudos normais, tais como: PCR quantitativo para HCV; estudo metabólico; complexos da cadeia respiratória mitocondrial e exame histológico de biópsia muscular; cariótipo 46,XY; estudo por amplificação multiplex de sondas dependentes de ligação (MLPA) para síndromes associadas ao retardo mental (Kit P064: 1p36, 5q35.3/Sotos, 7p/Saethre-Chotzen, 7q11.23/Williams, 15q11.2/Prader-Wili, 17p13.3/Miller-Dieker, 17p11.2/Smith-Magenis, 20p12.2/Alagille, 22q11.2/DiGeorge); pesquisa de deleção no cromossomo 22, região 22q11.2, utilizando hibridização in situ por fluorescência (FISH); hibridização genômica comparativa baseada em microarranjos (aCGH). Ressonância magnética cerebral aos 11 meses e repetida aos oito anos mostrou malformação de Chiari tipo 1 e microcefalia.
O paciente permaneceu em seguimento com consultas multidisciplinares, com especialistas em cardiologia pediátrica, doenças metabólicas e neuropediatria. A avaliação pela oftalmologia e otorrinolaringologia pediátrica foi normal.
Com o passar dos anos, o atraso no desenvolvimento psicomotor tornou-se mais evidente, com ausência de linguagem expressiva. As crises convulsivas cessaram. Algumas características do exame objetivo se acentuaram, como face dismórfica com estreitamento bitemporal, dorso nasal proeminente, lábio superior fino e cantos da boca voltados para baixo (Figuras 1 e 2).
Figura 1. Características faciais dismórficas com estreitamento bitemporal, dorso nasal proeminente, lábio superior fino e cantos da boca voltados para baixo.
Figura 2. Características faciais dismórficas com estreitamento bitemporal, dorso nasal proeminente, lábio superior fino e cantos da boca voltados para baixo.
Aos 9 anos de idade, o sequenciamento completo do exoma (WES) detectou a provável variante patogênica c.4027dup p.(Glu1343Glyfs*13) no gene KAT6A (NM_006766.4), em heterozigose. Esta é uma variante frameshift localizada no éxon 17, que introduz um códon de parada prematura, que deve resultar na produção de uma proteína truncada. Esta variante não foi relatada anteriormente na literatura e não está presente no banco de dados populacional, o Banco de Dados de Agregação de Genomas (gnomAD). Portanto, o caso foi classificado como uma provável variante patogênica de acordo com as diretrizes do American College of Medical Genetics and Genomics (ACMG)8. Variantes patogênicas do gene KAT6A causam ARTHS.
Atualmente com 10 anos, o paciente é atendido em uma unidade de multideficiência com terapias fonoaudiológicas e ocupacionais. Apresenta linguagem muito escassa e ausência de continência esfincteriana, com necessidade frequente de laxantes devido à constipação.
DISCUSSÃO
Até onde sabemos, este é o primeiro paciente português com ARTHS detectado por WES que apresenta uma nova variante.
Nos últimos anos, o número de variantes patogênicas identificadas no gene KAT6A tem aumentado, expandindo o espectro genotípico e fenotípico desta síndrome1.
A provável variante patogênica identificada em nosso paciente é uma mutação de truncamento tardio, localizada no éxon 17. Foi observado atraso grave no desenvolvimento com linguagem quase ausente, microcefalia e feições faciais dismórficas. O fenótipo grave apresentado pelo paciente, com atraso no desenvolvimento, linguagem quase ausente, microcefalia e feições faciais dismórficas, apresenta concordância com relatos anteriores que descreveram manifestações clínicas mais graves nas variantes patogênicas de truncamento tardio3.
Em função das principais manifestações geralmente presentes na ARTHS, Kennedy et al. (2019)7 recomendaram que eletrocardiografia e ecocardiografia fossem realizadas em todos os pacientes com variantes patogênicas do KAT6A. Os autores também recomendaram terapia fonoaudiológica precoce, acompanhamento rigoroso pela gastroenterologia e avaliação oftalmológica regular, o que foi realizado como parte do seguimento de nosso paciente antes mesmo do diagnóstico.
Recomenda-se o estudo dos pais para determinar se a variante detectada é hereditária ou “de novo” e este resultado deve ser comunicado no âmbito da consulta com o geneticista. O estudo dos progenitores do paciente ainda está em andamento. As variantes patogênicas do KAT6A conhecidas até o momento são herdadas de maneira dominante e, em geral, surgem na forma “de novo”. No entanto, algumas variantes patogênicas herdadas do KAT6A foram descritas em uma coorte de 76 pacientes, algumas das quais herdadas de pais mosaicos1;7.
Concluindo, à medida que os bancos de dados genéticos se tornam mais completos, o uso do WES no diagnóstico de pacientes com atraso no desenvolvimento sindrômico ganha robustez3.
Pontos de aprendizagem:
O amplo espectro fenotípico em indivíduos com variantes do gene KAT6A destaca a importância do sequenciamento completo do exoma (WES) para identificar a etiologia genética dos casos de deficiência intelectual sindrômica
Relatamos o primeiro paciente português com síndrome de Arboleda-Tham detectado por WES; o paciente apresentou uma nova variante.
À medida que os bancos de dados genéticos se tornam mais completos, o uso do WES no diagnóstico de pacientes com atraso no desenvolvimento sindrômico ganha robustez.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1. Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, Serviço de Pediatria - Gaia - Portugal
2. Centro Hospitalar Universitário São João, Serviço de Genética Médica - Porto - Portugal
3. Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, Serviço de Pediatria, Unidade de Neurociências da Infância e Adolescência - Gaia - Portugal
Endereço para correspondência:
Ivana Cardoso
Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho
R. Conceição Fernandes S/N, 4434-502
Vila Nova de Gaia, Portugal
E-mail: ivana.oliveira.cardoso@gmail.com
Data de Submissão: 03/11/2021
Data de Aprovação: 30/11/2021