ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Diafragma mucoso pré-pilórico cursando com vômitos de repetição em recém-nascido - Relato de caso e Revisão da literatura

Mucosal pre-pyloric diaphragm producing repeated vomiting in a newborn - Case report and Literature review

RESUMO

OBJETIVO: Relatar o caso de um recém-nascido (RN) portador de diafragma mucoso pré-pilórico com repercussão no ganho ponderal e aceitação alimentar, cursando com quadro de vômitos de repetição. Esta é uma malformação congênita rara do grupo das obstruções gástricas e corresponde a, aproximadamente, 1% de todas as etiologias de obstrução gastrointestinal no período neonatal.
DESCRIÇÃO: RN feminina, iniciou vômitos pós-alimentares com 4 horas de vida. Realizadas múltiplas tentativas de reintrodução alimentar via oral, mantidos episódios de vômitos pós-mamadas e ganho ponderal inadequado. Exames de imagem não mostraram obstrução intestinal, procedeu-se com endoscopia digestiva alta (EDA) no 19º dia de vida, que identificou e corrigiu diafragma mucoso pré-pilórico com transposição da membrana pelo aparelho. Reintroduzida fórmula, com aumento paulatino da oferta e ganho ponderal satisfatório. Recebeu alta com 24 dias de vida, com aceitação total da dieta e remissão completa do quadro.
COMENTÁRIOS: Este estudo mostra que é importante considerar a realização de EDA em quadros de vômitos neonatais prolongados, após excluídas causas mais prevalentes, como APLV e DRGE, pois ela é capaz de diagnosticar e tratar algumas causas de obstrução do trato gastrointestinal, como o diafragma mucoso pré-pilórico.

Palavras-chave: Recém-nascido, Atresia intestinal, Endoscopia gastrointestinal, Neonatologia, Piloro.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report the case of a newborn with a pre-pyloric mucosal diaphragm with repercussions on weight gain and food acceptance. This is a rare congenital gastrointestinal malformation and corresponds to approximately 1% of all etiologies of gastrointestinal obstruction in newborns.
DESCRIPTION: Female NB, started post-feeding vomiting at 4 hours of life. Multiple attempts of oral feeding reintroduction were performed, episodes of post-feeding vomiting and inadequate weight gain were maintained. Imaging exams did not show intestinal obstruction, an upper digestive endoscopy (UDE) was performed on the 19th day of life, which identified and corrected a pre-pyloric mucous diaphragm with transposition of the membrane by the device. Formula was reintroduced, with a gradual increase in supply and satisfactory weight gain. He was discharged at 24 days of life, with total acceptance of the diet and complete remission of the condition.
COMMENTS: This study shows that it is important to consider the performance of UDE in cases of prolonged neonatal vomiting, after excluding more prevalent causes, such as APLV and GERD, as it is capable of diagnosing and treating some causes of obstruction of the gastrointestinal tract, such as the diaphragm pre-pyloric mucosa.

Keywords: Infant newborn, Intestinal atresia, Endoscopy gastrointestinal, Neonatology, Pylorus.


INTRODUÇÃO

As obstruções gástricas congênitas são condições raras que representam, aproximadamente, 1% das obstruções gastrointestinais congênitas e se limitam à região antro-pilórica. Dentre as suas variações anatômicas, a atresia pilórica é a mais prevalente, com incidência de 1/100.000 nascidos-vivos, classificada em 3 tipos. O tipo I, membrana ou diafragma pré-pilórico, corresponde a 57% dos casos, caracterizada por um septo mucoso fino na localização do piloro, com distribuição epidemiológica semelhante entre os sexos. Os tipos II e III, respectivamente, tecido pilórico substituído por cordão sólido e atresia pilórica com gap entre estômago e duodeno são menos incidentes e de pior prognóstico1-3.

A atresia pilórica congênita pode ser classificada clinicamente em isolada, maior parte dos casos, associada a outras condições genéticas ou associada a outras atresias intestinais. Quando em associação com condições genéticas, as mais comuns são epidermólise bolhosa e/ou aplasia cútis congênita, sendo de pior prognóstico1,3.

O quadro clínico da obstrução parcial pela membrana pré-pilórica é, por vezes, mais sutil e insidioso do que as obstruções completas e pode cursar com polidrâmnio à ultrassonografia pré-natal, distensão abdominal e vômitos biliosos após o nascimento, além de alterações hidroeletrolíticas importantes1,4. A aceitação alimentar do RN pode variar de acordo com o grau de obstrução ocasionada pela membrana e, desse modo, o quadro clínico pode mimetizar intolerância alimentar, doença do refluxo gastroesofágico, hérnia hiatal, distúrbios de motilidade intestinal e outras patologias obstrutivas intestinais congênitas4-6.

O objetivo deste artigo é relatar o caso de um RN portador de obstrução gástrica congênita do tipo diafragma mucoso pré-pilórico com repercussão no ganho ponderal e aceitação alimentar, divulgando a importância de considerar a patologia dentro do diagnóstico diferencial de quadros de obstrução gastrointestinal e vômitos de repetição em neonatos. As informações foram obtidas por meio de revisão do prontuário e registro fotográfico dos métodos diagnósticos de imagem, com revisão da literatura no que tange ao assunto de atresia gástrica congênita.


RELATO DE CASO

RN sexo feminino, segunda gemelar, nascida de parto cesárea por apresentação córmica com idade gestacional de 37 semanas e 2 dias datada da ultrassonografia de primeiro trimestre. A mãe foi acompanhada em pré-natal de alto risco por hipertensão arterial crônica em uso de metildopa, sem intercorrências. Negava tabagismo, etilismo, drogadição ou consanguinidade com o pai.

Ao nascimento, apresentava peso de 2360 g (p3-p10), comprimento de 44 cm (<p3) e perímetro cefálico de 33 cm (p50-p90). Nasceu hipotônica e em apneia, com clampeamento imediato do cordão umbilical e necessidade de dois ciclos de ventilação com pressão positiva (VPP), apresentando boletim de Apgar 4/7. Manteve desconforto respiratório precoce (DRP), sendo acoplada ao CPAP, introduzida sonda orogástrica (SOG) e transferida à UTI neonatal.

Com 4 horas de vida, em uso de soroterapia de manutenção, apresentava melhora parcial do DRP, ainda com necessidade de CPAP, sendo optado por iniciar dieta com fórmula via SOG. Apresentou um episódio de vômito, em grande quantidade, antes da primeira dieta. Realizada lavagem gástrica e mantida dieta enteral.

Ao completar 24 horas de vida, a RN apresentava melhora do padrão respiratório. Evoluiu com dois episódios de vômitos não biliosos após dieta, suspensa na sequência. Ao exame, apresentava abdome globoso, indolor, com ruídos hidroaéreos diminuídos. Radiografia simples de abdome demonstrava apenas aparente dilatação de algumas alças intestinais em andar superior do abdome e ausência de ar em ampola retal. Realizado toque retal com saída de grande quantidade de mecônio.

Com 3 dias de vida, a RN apresentava perda de 140 g (5,9%) em relação ao peso de nascimento. Permaneceu em jejum enteral com SOG aberta até completar 6 dias de vida, quando foi feita nova tentativa de reintrodução da dieta via SOG, devido à diminuição do débito coletado, porém, novamente, houve episódio de vômito após a mamada. Solicitado exame de trânsito intestinal com preparo que não evidenciou fatores obstrutivos ou lesões estenosantes (Figura 1).


Figura 1. Trânsito intestinal.



Diante do resultado, optou-se por iniciar nutrição parenteral periférica, manter jejum VO com SOG aberta e observar ocorrência de novos episódios de vômitos. Com 9 dias de vida, prescrito eritromicina a fim de estimular o trânsito intestinal e realizada tentativa de reintrodução da dieta VO fracionada com menores intervalos e volume, mantendo vômitos diários, aceitação parcial das dietas e peso entre 2400 e 2500g.

Aos 18 dias de vida, já na Unidade de Cuidados Intermediários (UCIN), a RN evoluiu com quadro importante de distensão abdominal. Optado por solicitar uma nova radiografia simples de abdome que demonstrava, à semelhança daquela com 24 horas de vida, distensão gástrica, edema de alças intestinais e ausência de ar na ampola retal. Procedeu-se com troca da fórmula láctea para forma hidrolisada, por hipótese de alergia à proteína do leite de vaca (APLV), juntamente com introdução de domperidona via oral como medida para provável quadro de refluxo gastroesofágico (RGE).

Pela persistência do quadro de vômitos pós-alimentares impactando o ganho ponderal, apesar das medidas anteriores, foi discutida com a equipe da Cirurgia Pediátrica a realização de endoscopia digestiva alta (EDA) para melhor entendimento de possível fator obstrutivo ainda não diagnosticado. Com 19 dias de vida, a RN foi encaminhada ao centro cirúrgico e submetida ao procedimento. Durante a endoscopia não foram notadas alterações na região esofágica ou corpo gástrico. Porém, ao visualizar a região antral, foi encontrada presença de diafragma mucoso incompleto pré-pilórico, facilmente transposto pelo aparelho (Figura 2), liberando a região pré-pilórica sem intercorrências.


Figura 2. À esquerda, presença de diafragma mucoso, em região gástrica pré-pilórica. À direita, visão da região pré-pilórica após transecção da membrana com aparelho endoscópico.



A RN teve resposta satisfatória à intervenção endoscópica, com boa aceitação da fórmula láctea padrão e aumento da oferta VO e, com 24 dias de vida, havia apresentado melhora completa dos episódios de vômitos, mantendo ganho ponderal dentro dos limites da normalidade, com aceitação total das dietas. Teve alta com peso de 2595 g para acompanhamento ambulatorial.


COMENTÁRIOS

O caso apresentado corresponde ao diagnóstico e tratamento endoscópicos de diafragma pré-pilórico congênito incompleto em uma RN com dificuldade alimentar, episódios recorrentes de êmese e ganho ponderal insatisfatório. Sua etiologia ainda não é completamente compreendida, porém a principal teoria é a de persistência do centro sólido intestinal durante a embriologia com canalização incompleta a posterior7,8. Em consonância, a hipertrofia congênita do piloro apresenta fisiopatologia e origem semelhantes, de modo a cursar com um quadro que pode ser difícil de distinguir do apresentado e, assim, é essencial cogitar a hipótese de diafragma pré-pilórico em neonatos com quadro que diferencia da apresentação clássica de hipertrofia congênita do piloro9-11.

A partir de exames de imagem iniciais com ar nos quatro quadrantes abdominais e trânsito intestinal sem alterações, afastaram-se hipóteses de obstruções completas do trato gastrointestinal, como atresia duodenal. Apesar de introduzidas medidas antirrefluxo como elevação de decúbito, fracionamento da dieta e introdução de procinético, a RN não apresentou melhora dos sintomas e do padrão de ganho ponderal12. Com a persistência do quadro clínico, foi levantada a hipótese de APLV, doença prevalente e que pode cursar com vômitos após as mamadas, apesar da RN não apresentar o quadro clínico clássico com diarreia e laivos de sangue nas fezes. Mesmo com uso de fórmula hidrolisada, a RN manteve os sintomas, o que afastou a hipótese de APLV e corroborou com a necessidade de se buscar diagnósticos diferenciais menos prevalentes12,13.

Durante EDA, visualizou-se o diafragma pré-pilórico como causa provável da obstrução parcial do trânsito alimentar e pelos episódios de vômitos após a dieta. Como embasado pela literatura, a conduta terapêutica foi a transfixação da membrana pelo aparelho endoscópico e, com o retomar da dieta via oral, a paciente não apresentou novos episódios de vômitos e teve um ganho ponderal aceitável para sua idade4,14,15. As outras opções terapêuticas dependem do tipo de atresia. Há possibilidade de excisão e piloroplastia à Heineke-Mikulicz ou Finney. No tipo III, o tratamento de escolha é a gastroduodenostomia, com pior prognóstico e maior chance de complicações3. No caso, a EDA era menos invasiva e mais adequada para diagnóstico e tratamento imediatos, sem necessidade de outras condutas cirúrgicas mais mórbidas.

O prognóstico deste caso é favorável, haja vista impossibilidade de recorrência da membrana, assim como não associação a outras malformações3,12. Caso haja demora diagnóstica e terapêutica ou associação com malformações estruturais ou genéticas, o prognóstico é desfavorável, com ganho ponderal inadequado e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor3,4,14. É importante ressaltar que o fator determinante de morbimortalidade nos casos de atresia pilórica é a associação com anomalias genéticas, sendo sepse relacionada à epidermólise bolhosa a principal causa de morte3.

Grande parte das obstruções gástricas ou pré-pilóricas incompletas do tipo diafragmas mucosos são diagnosticadas na idade adulta8,9. A longo prazo, caso o diagnóstico não seja realizado, o paciente pode cursar com déficit no ganho ponderal, desnutrição e dificuldade no desenvolvimento neuropsicomotor por inadequação alimentar, além de vômitos cíclicos e desconforto abdominal progressivo, caso haja piora do grau de obstrução2,6,9.


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1. Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, Graduação em Medicina - São Paulo - São Paulo - Brasil
2. Hospital Israelita Albert Einstein, Neonatologia - São Paulo - São Paulo - Brasil
3. Hospital Israelita Albert Einstein, Endoscopia - São Paulo - São Paulo - Brasil
4. Hospital Israelita Albert Einstein, Cirurgia Pediátrica - São Paulo - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Luiz Guilherme Pereira da Silva
Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein
Av. Padre Lebret - Morumbi
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E-mail: ligasilva8@gmail.com

Data de Submissão: 29/11/2021
Data de Aprovação: 23/01/2022