ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Sífilis congênita em paciente com fraturas ósseas: relato de caso

Congenital Syphilis in a Patient with Bone Fractures: Case Report

RESUMO

Sífilis congênita (SC), infecção pelo Treponema pallidum, é transmitida por via transplacentária ou no parto. Manifesta-se de formas assintomáticas a graves, incluindo óbito fetal e neonatal. A apresentação clínica diversa abre muitas possibilidades diagnósticas quando se desconhece a enfermidade. Este relato apresenta um caso de um lactente com SC não diagnosticada no parto, cuja apresentação inicial foi considerada grave, com fraturas ósseas seguidas, que fizeram a equipe médica considerar, entre as hipóteses diagnósticas, a possibilidade de maus-tratos; e propõe-se a discutir possíveis causas da falha terapêutica que culminaram com a SC.

Palavras-chave: Sífilis congênita, Fraturas ósseas, Penicilina G benzatina.

ABSTRACT

Congenital Syphilis (CS) is an infection by Treponema pallidum; it is transmitted transplacentally or in childbirth. The disease manifests itself from asymptomatic to severe forms, including fetal and neonatal death. With a diverse clinical manifestation, it has many diagnostic possibilities when the diagnosis is unknown. This report aim to show a case of an infant with undiagnosed CS at birth, whose initial presentation was considered serious, with consecutive bone fractures, which led the medical team to consider, among the diagnostic hypotheses, the possibility of abuse; and also aims to discuss possible causes of therapeutic failure that culminated in CS.

Keywords: Sífilis congênita, Fraturas ósseas, Penicilina G benzatina.


INTRODUÇÃO

Sífilis congênita (SC) é a infecção causada pelo Treponema pallidum, transmitido da mãe para o concepto, via transplacentária ou no parto1. A doença é de notificação compulsória e os dados epidemiológicos demonstram aumento dos casos no Brasil2. A SC pode ser prevenida desde que a sífilis gestacional (SG) seja diagnosticada no pré-natal e tratada oportunamente3.

As possíveis manifestações clínicas da doença, desde casos assintomáticos a óbito fetal ou neonatal, aumentam os diagnósticos diferenciais, que devem ser investigados e descartados até a confirmação de SC. O tratamento com penicilina é preconizado e o paciente deve ser acompanhado para garantia de cura ou diagnóstico de sequelas4-7. O presente relato descreve um caso não habitual de SC que fez a equipe assistente aventar a possibilidade de maus-tratos, e objetiva discutir os achados clínicos e possíveis causas de falhas no tratamento materno. O estudo foi submetido e aprovado pelo comitê de ética da instituição onde o paciente foi assistido.


RELATO DE CASO

Lactente, masculino, dois meses e dezoito dias de idade, compareceu à emergência de um hospital pediátrico com história de choro à manipulação de antebraço direito. Ao ser examinado, apresentava dor à mobilização do membro. Como as imagens radiográficas evidenciaram fratura ulnar distal, questionou-se o mecanismo de trauma, que foi negado. O membro foi imobilizado.

Dois dias após, o paciente retorna à emergência com nova queixa de dor em membro superior esquerdo. Na ocasião, o exame físico revelou edema e dor à palpação do membro. As imagens radiográficas demonstraram fratura ulnar distal esquerda (Figura 1). O membro foi imobilizado e agendou-se consulta ambulatorial com equipe de ortopedia.


Figura 1. Sinais de fratura em região distal da ulna, bilateralmente, em radiografias de membros superiores em lactente com diagnóstico de sífilis congênita.



Como o paciente não compareceu, o serviço social do hospital foi acionado para realizar busca ativa por suspeita de negligência e maus-tratos.

Ao revisar os dados pré-natais, constatou-se histórico de SG, com tratamento adequado da gestante e de seu único parceiro sexual. Exames não treponêmicos (VDRL) seriados realizados na gestante apresentaram titulações de 1:256 (4 semanas de gestação), 1:64 (18 semanas), 1:32 (31 semanas), 1:16 (parto).

O paciente nasceu de parto vaginal, 38 semanas e 5 dias de gestação, 49,5 cm de comprimento, pesando 3410g, 35 cm de perímetro cefálico, Apgar 9/9. Triagens neonatais (Ortolani, reflexo vermelho, triagem auditiva, oximetria de pulso) sem alterações patológicas. Ao nascimento, apresentava VDRL 1:16, mesmo valor da mãe, optando-se por acompanhá-lo clínica e laboratorialmente. Com oito semanas de vida apresentava VDRL 1:4, queda de duas diluições.

Internado para investigação, ao exame físico, notou-se gemência à manipulação, membros superiores (MMSS) imobilizados, dermatite em fralda e congestão nasal. O peso foi plotado na curva de crescimento (peso x idade), Z-scores entre 0 e -2. Descartaram-se lesões oftalmológicas e neurossífilis. Radiografias mostraram, além das já citadas, imagem lítica em metáfise tibial distal, reação periosteal tibial e fibular difusas bilateralmente (Figura 2). Ultrassonografia de abdome descartou organomegalias. Exames complementares evidenciaram teste não treponêmico VDRL 1:512, alterações eritrocitárias, anemia, leucocitose, plaquetopenia, proteína C-reativa e fosfatase alcalina elevadas, liquor cristalino com VDRL negativo e proteinorraquia 33 g/dL. O tratamento com penicilina cristalina endovenosa, 50.000 UI/kg/dose, a cada 6 horas, por dez dias, foi iniciado.


Figura 2. Imagem lítica em metáfise tibial distal, reação periosteal tibial e fibular difusas bilateralmente, em radiografias de membros inferiores em lactente com diagnóstico de sífilis congênita.



Com a melhora da mobilidade após início do tratamento, diagnosticou-se pseudoparalisia de Parrot, fato corroborado por anamnese e exames físicos dirigidos, desenvolvimento neuropsicomotor adequado à faixa etária e ausência de lesões neurológicas e/ou articulares.

O paciente permaneceu internado 16 dias, evoluindo bem clinicamente. No seguimento ambulatorial pós-tratamento, os títulos do VDRL de 1, 2 e 4 meses foram, respectivamente, 1:128; 1:32 e 1:8. O controle radiográfico no quarto mês pós-tratamento demonstrou resolução das alterações ósseas. O paciente permanece em seguimento ambulatorial.


DISCUSSÃO

SC é uma doença infectocontagiosa que afeta múltiplos sistemas, causada pelo Treponema pallidum, e adquirida via transplacentária ou no parto. Entre 2009 e 2019, no Brasil, registraram-se 6.600 abortos, 6.218 natimortos e 1.835 óbitos em menores de um ano devido à infecção e, atualmente, a taxa de incidência é de 8,2 casos por mil nascidos vivos6. Segundo Korenromp et al. (2019)8, no mundo entre 2012 e 2016, os casos de SC apresentaram leve queda, apesar da estabilidade na prevalência de SG. Contudo há trabalhos reportando aumento. Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, o acréscimo foi de 261%9. Na Inglaterra, passou de 0,001 (2015) para 0,014 casos por mil nascidos vivos em 201910.

Com relação à prevenção, diagnóstico e tratamento da SC, no Brasil, há diretrizes específicas e a notificação é compulsória.

A prevenção da SC, feita com rastreio no pré-natal no primeiro e terceiro trimestres de gestação, visa ao diagnóstico e tratamento da gestante e da parceria sexual. O rastreio no momento do parto e no puerpério visa a detectar reinfecção, falhas no tratamento e infecções em mulheres que não fizeram pré-natal ou que se infectaram tardiamente na gestação. Destaca-se, assim, a importância do pré-natal e do acompanhamento da criança exposta, principalmente em situações de vulnerabilidade4,5,7. Neste relato, o pré-natal com rastreamento, tratamento e monitorização, inclusive no parto, o puerpério e a adesão da parceria sexual ao tratamento foram adequados.

O diagnóstico da SC é realizado a partir da informação de SG não tratada ou inadequadamente tratada, ou manifestação de sinais e sintomas da doença ou laboratorialmente, por microscopia ou sorologia3. Ressalta-se que muitas crianças nascem assintomáticas, principalmente as que nascem de mães adequadamente tratadas. Contudo, apesar de haver um fluxograma para abordagem dessas crianças, é importante observar outros parâmetros para suspeitar de falhas, como valores altos do VDRL materno antes do tratamento ou do neonato ao nascer, mesmo que igual ao materno. A investigação é complementada com hemograma, radiografias, exame do liquor e pesquisa de infecções de transmissão vertical1,4,5.

SC pode ser classificada em precoce ou tardia. SC precoce quando se manifesta até dois anos de vida: prematuridade, baixo peso ao nascer, alterações hematológicas, lesões mucocutâneas, baixo ganho ponderal, meningite, convulsões, rinite, pseudoparalisia de Parrot e alterações ósseas, entre outros, podem ocorrer. Fraturas são menos frequentes, porém é sinal de maior gravidade11. Enquanto a SC tardia é quando, após o segundo ano, ocorrerem manifestações como úlcera gomosa, parestesias, surdez, entre outras1,2,4,5. Neste relato, o paciente apresentou alterações hematológicas, congestão nasal e fraturas e alterações ósseas.

Em relação à investigação, a SC tem amplo espectro clínico, tornando-se um desafio diagnóstico. Diagnósticos diferenciais devem ser considerados, dentre os quais os de maus-tratos, a depender do contexto11. O paciente do presente relato apresentou-se para um primeiro atendimento com fratura óssea, retornou com nova fratura e não compareceu à consulta de reavaliação, o que elevou a suspeita de maus-tratos e a mobilização do serviço social da instituição. Jacobs e colaboradores (2019) reportaram casos cujas manifestações de SC abriram margem para possibilidade diagnóstica de maus-tratos11-13.

O tratamento é realizado com penicilina. As indicações compreendem SC confirmada ou provável, cujo tratamento materno foi inadequadamente realizado, não comprovado ou realizado em menos de quatro semanas do parto. O seguimento deve ocorrer por dois anos ou até negativação dos exames não-treponêmicos1-5,14. Neste relato, a mãe, diagnosticada no pré-natal da atenção primária, foi adequadamente tratada e apresentou títulos decrescentes do VDRL. O neonato, testado ao nascimento e na consulta de puericultura, apresentou redução nas titulações do VDRL de 1:16 (parto) para 1:4 (oito semanas). Contudo a clínica e o exame não treponêmico na internação (VDRL 1:512) confirmaram a infecção.

Deve-se discutir então o motivo da infecção no RN. Estudos mostraram que falhas no tratamento ocorrem principalmente quando a gestante não é adequadamente tratada, drogas alternativas à penicilina são utilizadas, o tratamento é realizado de forma inadequada à fase da sífilis ou quando há falhas no acompanhamento pré-natal (dificuldade no acesso, baixa qualificação técnica dos profissionais de saúde ou falta de rastreamento e monitoramento)4,7. O estágio da doença (precoce, latente ou tardia) e a presença de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST) também estão associados a taxas maiores de falhas terapêuticas14. Quando realizado adequadamente, as taxas de insucesso terapêutico da sífilis são baixíssimas, não havendo relatos de resistência do treponema à penicilina até o presente momento1,5. A reinfecção materna ocorre quando a gestante apresenta parcerias sexuais múltiplas, comportamento sexual não seguro ou não aderência do parceiro ao tratamento1,2,5,15. No presente caso, a gestante não possuía outra IST, tinha parceiro fixo e ambos foram tratados. Contudo, ao diagnóstico, o estágio da doença era desconhecido, podendo ser esta uma possível causa da transmissão da sífilis ao concepto.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nota-se, no presente relato, a diversidade da apresentação clínica da infecção, muitas vezes com sintomas não facilmente identificáveis como relacionados à doença, ressaltando a necessidade da valorização de uma história clínica detalhada.

Evidencia-se também a necessidade de aprimoramento no processo investigativo da SG, incluindo acesso ao pré-natal de qualidade, testagem de IST, tratamento e seguimento adequados. Minimizar falhas no pré-natal, assim como o acompanhamento da criança exposta são importantes. As consequências da SG são previsíveis, preveníveis e tratáveis e, portanto, passíveis de mitigar os casos de SC.


REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Coordenação-Geral de Desenvolvimento da Epidemiologia em Serviço. Guia de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2021.

2. Malveira NAM, Dias JMG, Gaspar VK, Silva TSLB. Sífilis Congênita no Brasil no período de 2009 a 2019. Braz J Develop. 2021;7(8):85290-308.

3. Gaspar PC, Bigolin A, Alonso JB Neto, Pereira EDS, Bazzo ML. Protocolo Brasileiro para Infecções Sexualmente Transmissíveis 2020: testes diagnósticos para sífilis. Epidemiol Serv Saúde. 2021;17(1):e2020630.

4. Andrade ALMB, Magalhães PVVS, Moraes MM, Tresoldi AT, Pereira RM. Diagnóstico tardio de Sífilis Congênita: uma realidade na atenção à saúde da mulher e da criança no Brasil. Rev Paul Pediatr. 2018;36(3):376-81.

5. Domingues CSB, Duarte G, Passos MRL, Sztajnbok DCN, Menezes MLB. Protocolo Brasileiro para Infecções Sexualmente Transmissíveis 2020: sífilis congênita e criança exposta à sífilis. Epidemiol Serv Saúde. 2021;30(spe1):e2020597.

6. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Sífilis - 2020. Boletim Epidemiológico: Ano VI. Brasília: Ministério da Saúde; 2020.

7. Aguiar LC, Silva GB, Santos JA, Lima CBM, Gonçalves LO, Meneses MO, et al. Sífilis materna: Análise de evidências referentes à falha no tratamento de gestantes. Rev Enferm Atual In Derme. 2019;87(25):1-7.

8. Korenromp EL, Rowley J, Alonso M, Mello MB, Wijesooriya NS, Mahiané SG, et al. Global burden of maternal and congenital syphilis and associated adverse birth outcomes - Estimates for 2016 and progress since 2012. PLos ONE. 2019;14(2):e0211720.

9. Kimball A, Torrone E, Miele K, Bachmann L, Thorpe P, Weinstock H, et al. Missed Opportunities for Prevention of Congenital Syphilis - United States, 2018. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020;69(22):661-5.

10. National Health Service (UK), England Public Health. ISOSS congenital syphilis case review report: 2015 to 2020. London: National Health Service; 2021.

11. Jacobs K, Vu DM, Mony V, Sofos E, Buzi N. Congenital Syphilis Misdiagnosed as Suspected Nonaccidental Trauma. Pediatrics. 2019;144(4):e20191564.

12. Fiser RH, Kaplan J, Holder JC. Congenital Syphilis Mimicking the Battered Child Syndrome. Clin Pediatr (Phila). 1972;11(5):305-7.

13. Alvares BR, Mezzacappa MAMS, Poterio CB. Sífilis congênita simulando a síndrome da criança espancada: relato de caso. Radiol Bras. 2002;35(4):251-4.

14. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos, Coordenação de Gestão de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis. Brasília: Ministério da Saúde; 2021.

15. Luo Z, Zhu L, Ding Y, Yuan J, Li W, Wu Q, et al. Factors associated with syphilis treatment failure and reinfection: a longitudinal cohort study in Shenzhen, China. BMC Infect Dis. 2017;17(1):620.










1. Universidade Federal de Santa Catarina, Aluno Graduação em Medicina - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
2. Universidade Federal de Santa Catarina, Professora Assistente A2 do Departamento Pediatria - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
3. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Infectologia Pediátrica - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil

Endereço para correspondência:

Emanuela da Rocha Carvalho
Universidade Federal de Santa Catarina
R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n - Trindade
Florianópolis - SC, 88040-900
E-mail: emanuela.carvalho@ufsc.br

Data de Submissão: 21/12/2021
Data de Aprovação: 21/02/2022