ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Uma causa rara e fatal de doença bolhosa num recém-nascido

A rare and fatal cause of blisters in a newborn

RESUMO

Os recém-nascidos podem apresentar lesões bolhosas e erosões cutâneas devido a múltiplas patologias, incluindo infeções, doenças congênitas ou hereditárias. Neste artigo, apresentamos um caso de um recém-nascido que apresentou pústulas no primeiro dia de vida e, progressivamente, desenvolveu lesões bolhosas e erosões. Em face de um agravamento progressivo apesar de antibioterapia endovenosa, após suspeita inicial de impétigo bolhoso, outros diagnósticos tiveram de ser considerados e foi necessária uma abordagem multidiscipilinar com apoio da dermatologia. Foi realizada biópsia cutânea e estudo genético que permitiram estabelecer o diagnóstico definitivo de Epidermólise Bolhosa, um grupo de doenças bolhosas hereditárias raras. Devido à ausência de terapêutica curativa, foi realizado tratamento de suporte, que não evitou a morte do doente aos 2 meses de vidas. É portanto fundamental os pediatras identificarem esta entidade o mais precocemente possível no sentido de melhorar o prognóstico.

Palavras-chave: Vesícula, Erosão, Neonatologia, Dermatologia Epidermólise Bolhosa.

ABSTRACT

Newborns may develop blisters and erosions due to multiple entities, including infections, congenital or hereditary diseases. In this report we describe a male newborn who presented with pustular lesions on the first day of life and progressively developed blisters and erosions. Due to disease progression even with intravenous antibiotic therapy after suspicion of bullous impetigo, other diagnoses had to be considered and a multidisciplinary approach with the support of dermatology was necessary. A skin biopsy and genetic study were performed, which allowed the definitive diagnosis of Epidermolysis Bullosa, a group of rare hereditary bullous diseases. Because of the absence of curative therapy, supportive treatment was performed, which did not prevent the patients death at 2 months of life. It is therefore essential for pediatricians to identify this entity as early as possible in order to improve the prognosis.

Keywords: Blister, Erosion, Neonatology, Dermatology Epidermolysis Bullosa.


INTRODUÇÃO

No período neonatal, bolhas e erosões cutâneas são manifestações associadas a diversas entidades, tais como infecções, doenças congênitas ou hereditárias e, por isso, constituem um desafio diagnóstico.1,2 Lesões bolhosas podem ser benignas e transitórias, mas também podem ser a primeira manifestação de doença cutânea crônica ou sistêmica.1,3

Devido à diversidade de diagnósticos diferenciais, uma abordagem sistemática é fundamental. Inicialmente, é essencial excluir infecção, que é a causa mais comum de bolhas,1,4,5 tais como vírus do herpes simples, impetigo bolhoso, síndrome da pele escaldada estafilocócica, sífilis congênita e varicela perinatal.4-6 A maioria das infecções que se manifestam com bolhas apresentam sinais de doença sistêmica, exceto pelo impetigo bolhoso1,5. Como os sinais de infecção são inespecíficos, o tratamento com terapia antimicrobiana geralmente é necessário enquanto a investigação está em andamento.1,2,4 Quando não há suspeita de infecção ou tal suspeita já foi eliminada, a avaliação pode ser orientada pela predominância de bolhas ou erosões e pela sua distribuição. Se predominarem bolhas, com lesões isoladas e não progressivas, devemos considerar bolhas de sucção, impetigo bolhoso e aplasia da cútis. Se houver lesões múltiplas ou progressivas, devemos considerar genodermatoses como epidermólise bolhosa, ictiose epidermolítica, incontinência pigmentar e porfiria congênita. Lesões autoimunes/imunomediadas causadas por transferência materna de anticorpos ou casos de mastocitose cutânea difusa também devem ser excluídos. Por sua vez, erosões localizadas podem constituir precursores de hemangiomas ou aplasia da cútis, enquanto erosões generalizadas podem corresponder a histiocitose de células de Langerhans, necrólise epidérmica tóxica ou dermatose erosiva e vesicular congênita.1

A coleta de fluido das bolhas ou vesículas para microscopia direta, cultura e teste de sensibilidade antimicrobiana e/ou reação em cadeia da polimerase pode ser útil.4 Biópsia de pele pode ser necessária para histologia, cultura de tecidos e imunofenotipagem.1

Uma vez que bolhas e erosões estão relacionadas a defeitos na barreira cutânea que podem levar, dependendo de sua extensão, a desequilíbrios hidroeletrolíticos e infecções secundárias, é essencial ficar atento a sinais de desidratação e sepse. Além disso, as lesões podem ser dolorosas e, portanto, deve ser utilizada analgesia, especialmente no tratamento das feridas. Além disso, devido ao aumento das necessidades metabólicas, é fundamental monitorar o ganho de peso e ajustar a ingestão calórica.1


RELATO DE CASO

Um recém-nascido prematuro do sexo masculino, pesando 2.395g, nasceu por parto normal, 35 semanas após ruptura prematura de membranas, com boa adaptação à vida extrauterina. Ao nascimento foram observadas lesões pustulosas no couro cabeludo e, no dia seguinte, estas lesões transformaram-se em erosões e bolhas surgiram na orelha esquerda, região periumbilical, nádegas e períneo, sem sinais inflamatórios. Gasometria arterial exibiu hiponatremia (sódio 128mmol/L). Hemograma completo apresentou resultado normal (hemoglobina 19,9g/dL, plaquetas 171.000/ul, leucócitos 7300/ul (47%neutrófilos, 34%linfócitos).

Foi realizado diagnóstico de impetigo bolhoso e iniciada antibioticoterapia com vancomicina e gentamicina EV, além de mupirocina e vitamina A tópicas.

No sexto dia de vida, por conta do agravamento das lesões anteriores, do aparecimento de novas lesões e do sinal de Nikolsky negativo, foi solicitada consulta com um dermatologista por suspeita de penfigoide bolhoso. Foi realizada biópsia para exame anatomopatológico e imunofluorescência direta (IFD). Foi iniciada prednisolona (1mg/kg/dia). O uso de vancomicina foi interrompido devido a relatos de casos de dermatose bolhosa por IgA linear induzida por vancomicina.

O resultado do exame anatomopatológico disponibilizado no décimo sexto dia descreveu descolamento bolhoso subepidérmico com infiltrado perivascular e intersticial composto por células linfomononucleares, neutrófilos e eosinófilos. A IFD foi negativa. Os estudos de imunofluorescência indireta posteriormente realizados no recém-nascido e em sua mãe foram ambos negativos, o que descartou a hipótese de penfigoide bolhoso.

No 24º dia, após um dia na incubadora, houve piora significativa das lesões cutâneas, agora com sinal de Nikolsky positivo (Figuras 1 e 2). Neste momento foi considerada epidermólise bolhosa (EB) e realizada nova biópsia e exame de sangue para estudo genético. Considerando a mudança das hipóteses diagnósticas, foi iniciada diminuição progressiva da dose de prednisolona.


Figura 1. Lesões cutâneas do recém-nascido no 24º dia.




Figura 2. Lesões cutâneas do recém-nascido no 24º dia.



No 33º dia, após a colocação de um catéter venoso central (CVC) sob anestesia geral, o lactente desenvolveu choro disfônico, provavelmente relacionado a lesões na mucosa durante a intubação. Foi feita prescrição de nistatina e morfina por via oral para coincidir com cada troca de curativo. Devido ao aumento das necessidades nutricionais e à perda excessiva de líquidos pela pele, foram administradas transfusões de imunoglobulina intravenosa, plasma e eritrócitos. Foram iniciadas albumina, furosemida e nutrição parenteral oportunista.

A segunda biópsia mostrou descolamento subepidérmico bolhoso associado a infiltrado linfomononuclear mínimo na derme superficial subjacente. IFD foi negativa. As alterações histológicas observadas consubstanciaram a hipótese de EB.

A consulta com o dermatologista resultou na sugestão de uso de gentamicina EV por três semanas devido à sua capacidade de aumentar os níveis de laminina na pele. O paciente foi colocado em sala com pressão positiva, devido ao significativo risco de infecção hospitalar.

Os resultados do estudo genético chegaram no 54º dia, descrevendo “uma variante patogênica c.283C>Tp(arg 95*) em homozigose no gene LAMC2. Tal variante é descrita em pacientes com epidermólise bolhosa juncional de Herlitz. Assume-se tal diagnóstico devido à compatibilidade clínica”.

Houve agravamento progressivo das lesões e tendências repetidas de hiperglicemia, hiponatremia/hipocloremia, hipocalcemia, hipoalbuminemia, além de aumento da proteína C reativa e da procalcitonina. Em colaboração com a equipe de cuidados paliativos, foi decidido que, após a segunda perda do CVC, seria utilizada medicação oral independentemente de suas limitações. Foi introduzido canabidiol e administrados morfina e fentanil para analgesia contínua. Ácido fólico foi iniciado como cofator para mitose celular.

No 63º dia, o lactente apresentou edema palpebral, cianose central, estertores pulmonares e curativos fortemente exsudativos. Neste momento, apenas foram administrados analgésicos. No dia 64º dia, o paciente desenvolveu hipotermia progressiva, bradipneia, congestão pulmonar e foi a óbito.


DISCUSSÃO

A epidermólise bolhosa abrange um grupo de doenças bolhosas hereditárias raras caracterizadas por extrema fragilidade da pele e mucosa a pequenos traumas de atrito, resultando em bolhas e erosões.1,4,6-8 O quadro clínico varia de doença cutânea localizada a doença potencialmente fatal e incapacitante, com extenso acometimento extracutâneo.6 A incidência de todas as formas de EB é estimada em 20 por milhão de nascidos vivos.1,6,8 Afeta igualmente todos os grupos raciais e étnicos e ambos os sexos.8 Mais de cem mutações foram descritas em 16 genes que codificam proteínas da membrana basal e conectam a derme à epiderme, resultando em ampla diversidade de manifestações clínicas9. De acordo com o último Consenso de 20209, a EB é classificada em quatro tipos principais com base no nível ultraestrutural de formação de bolhas, a saber: simples, juncional, distrófica e de Kindler; e subtipos, de acordo com sua apresentação e mutação genética, com prognóstico variado.1,4 Em alguns casos, as manifestações da doença são limitadas e a esperança de vida é normal; outros subtipos podem ser fatais na infância ou associados a incapacidades permanentes e fatais apenas no início da idade adulta.1

A EB pode se manifestar ao nascimento, como no caso aqui relatado e em outros relatos publicados na literatura10, ou logo após com graus variados de bolhas e erosões.1 Quando as lesões cutâneas são aparentes ao nascimento, geralmente estão localizadas em áreas de trauma mecânico periparto, como cabeça e face, ou podem ser mais extensas.1 Após o período perinatal, as lesões são observadas em locais de manipulação e atrito, como mãos, períneo e costas, após remoção do adesivo ou em áreas da pele preparadas para procedimentos1. Às vezes, pode haver comprometimento da mucosa e, portanto, dificuldades de alimentação.1 Nosso paciente apresentou choro disfônico, provavelmente relacionado a lesões nas mucosas durante a intubação.

O diagnóstico depende de biópsias das bolhas ou pele, analisadas por imunofluorescência e microscopia eletrônica de transmissão e/ou teste genético molecular.1,4,6 Conhecer o subtipo de EB pode ser importante para o aconselhamento dos pais, em termos de prognóstico e probabilidade de terem outro filho afetado. Além disso, os testes moleculares são cruciais na avaliação de possível acometimento extracutâneo e na decisão da melhor abordagem terapêutica e seguimento.1,4 Dada a variável extracutânea, uma abordagem multidisciplinar é essencial11, como descrito em nosso relato de caso.

Atualmente, não há cura para a EB e o tratamento é baseado em cuidados de suporte, enfocando o manuseio mínimo e não traumático, o uso de curativos não aderentes para tratamento das feridas, controle da dor, suporte nutricional e prevenção de complicações.1,4,6 Devido ao atraso no diagnóstico, a manipulação mínima só foi iniciada mais tarde, o que pode ter contribuído para um pior prognóstico.

Recentemente, terapias translacionais estão sendo investigadas, incluindo abordagens celulares, genéticas, proteicas e medicamentosas para corrigir a patologia molecular subjacente, possibilitando um tratamento mais eficaz e duradouro.11

A EB pode ser herdada em padrão autossômico dominante ou recessivo.11 A EB juncional de Herlitz representa a forma menos comum e mais grave da doença.6,8 Os pacientes geralmente apresentam bolhas generalizadas ao nascimento6,8, que evoluem com cicatrizes atróficas, com milia e unhas frequentemente distróficos ou ausentes.6 O acometimento das vias aéreas, olhos e sistemas gastrointestinal e geniturinário também é comum.6,8 A EB juncional de Herlitz está associada a alta mortalidade nos primeiros dois a três anos de vida,6,12 com incidência cumulativa de óbito de 44,7% até um ano de idade.6 As causas mais comuns de óbito são declínio pôndero-funcional, sepse e insuficiência respiratória.6,12


CONCLUSÃO

Há uma ampla gama de diagnósticos diferenciais para bolhas neonatais, sendo as infecções a causa mais comum. A epidermólise bolhosa é rara e inclui múltiplos fenótipos, com amplo espectro de manifestações clínicas. A biópsia de pele para mapeamento de antígenos por imunofluorescência é o teste diagnóstico de primeira linha para EB, mas não está disponível em nosso país. Testes genéticos são geralmente necessários para confirmar o diagnóstico, possibilitar o aconselhamento dos pais, avaliar possível acometimento extracutâneo e, por fim, orientar o tratamento. A abordagem multidisciplinar é benéfica. Não existe terapia curativa para EB e, portanto, o tratamento atual consiste em cuidados de suporte que devem se concentrar no manuseio mínimo e não traumático, uso de curativos não aderentes para tratamento de feridas, controle da dor, suporte nutricional e prevenção de complicações. Outros tratamentos promissores estão sendo investigados.

Portanto, é essencial que o pediatra identifique esta entidade o mais precocemente possível para melhorar o prognóstico.


REFERÊNCIAS

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1. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Serviço de Neonatologia - Coimbra - Coimbra - Portugal
2. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Serviço de Dermatologia e Venereologia - Coimbra - Coimbra - Portugal

Endereço para correspondência:

Inês Barros Rua
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Praceta Professor Mota Pinto, 3004-561
Coimbra, Portugal
E-mail: inesrua@netcabo.pt

Data de Submissão: 05/05/2022
Data de Aprovação: 03/06/2022