ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 1

Doença da arranhadura do Gato - relato de caso

Cat scratch disease - a case report

RESUMO

INTRODUÇÃO: A Doença da Arranhadura do Gato (DAG) manifesta-se principalmente com febre e linfonodomegalia localizada, mas, em até 25% dos casos, pode ocorrer na forma sistêmica com diversas apresentações clínicas.
OBJETIVO: Relatar um caso pediátrico de DAG forma hepatoesplênica.
MÉTODO: relato de caso de uma criança internada na enfermaria de Doenças Infecciosas Pediátricas entre outubro e novembro de 2019. O relato foi feito com base em dados do prontuário do paciente e revisão da literatura, com base em pesquisas na plataforma PubMed. Foram obtidos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido do responsável legal do paciente e o termo de assentimento da criança.
RESULTADO: Escolar, feminina, 9 anos, previamente hígida, iniciou com sinais flogísticos em fossa poplítea direita e febre, tratada como celulite e posteriormente como abscesso poplíteo, sem melhora com oxacilina por 3 dias e clindamicina e ceftriaxone por 11 dias. Evoluiu com um quadro séptico de foco abdominal no décimo primeiro dia de tratamento com a presença de abscessos hepáticos e esplênicos, sendo necessário ampliar a cobertura antimicrobiana para vancomicina e piperacilina-tazobactam até a elucidação diagnóstica de DAG, forma hepatoesplênica, o que ocorreu no décimo sétimo dia de internação. A partir do diagnóstico, foi tratada com rifampicina e claritromicina por 14 dias com boa evolução.
CONCLUSÃO: A importância deste relato é alertar os pediatras quanto à grande variabilidade clínica dessa infecção e o seu manejo.

Palavras-chave: Doença da arranhadura de gato, Infecções por Bartonella, Bartonella henselae.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Cat Scratch Disease (CSD) presents most commonly with fever and lymphadenopathy, but up to 25% of cases develop systemic manifestations.
OBJECTIVE: to report a pediatric case of hepatosplenic form of CSD.
METODOLOGY: this is a case report of a nine-year-old child hospitalized from October to November 2019. The report was written based on medical records and literature review, through Pubmed platform. Informed consent was given by the legal sponsor and the assent by the child.
RESULT: a nine-year-old girl presents with swollen, tender and erythematous nodes in the right popliteal fossa and fever. Initial suspicion was of cellulitis, complicated with a popliteal abscess. Treatment was initiated with oxacillin for 3 days and later on with clindamycin and ceftriaxone for 11 days. On the eleventh day of hospital stay, the patient manifested hepatosplenic abscesses and antibiotic treatment was upscaled to vancomycin and piperacillin-tazobactam until she was diagnosed with a hepatosplenic form of CSD, which happened seventeen days after admission. Therefore, treatment was provided with Rifampicin and Clarithromycin for 14 days, with significant clinical improvement.
CONCLUSION: this report aims to raise awareness regarding the wide clinical spectrum of this infection and how to better manage it.

Keywords: Cat-scratch disease, Bartonella infections, Bartonella henselae.


INTRODUÇÃO

A Doença da Arranhadura do Gato (DAG) é causada pelas bactérias do gênero Bartonella1,2. A doença tem apresentação clínica variável, desde a forma mais comum, caracterizada por febre e linfadenopatia, até formas sistêmicas, em até 25% dos casos1,2.

Este estudo reporta um caso de DAG na forma hepatoesplênica e visa contribuir para a divulgação de uma das formas sistêmicas da doença e alertar para seu reconhecimento e tratamento precoce.


RELATO DE CASO

LSR, feminina, 9 anos e 10 meses, natural e procedente de São Paulo/SP, previamente hígida, havia iniciado quadro de dor em região poplítea direita há 3 semanas, e há 15 dias, quadro de febre de até 38 graus Celsius, por três dias, associados a sinais flogísticos locais. Recebeu diagnóstico de celulite, sendo prescrito cefalexina por 10 dias e anti-inflamatório. Como houve melhora apenas da febre, procurou nosso serviço. Na admissão, estava em bom estado geral, eutrófica, sem alterações de sinais vitais, ausculta cardiopulmonar sem alterações, abdome sem visceromegalias e membro inferior direito apresentava abaulamento em fossa poplítea, com sinais flogísticos e prejuízo à extensão da perna, sendo internada com a hipótese diagnóstica de abscesso poplíteo. Solicitados: hemograma (Hemoglobina 12,8 g/dL, Hematócrito 36,9%, Leucócitos 9520/µL (Neutrófilos 56%, Eosinófilos 5%, Linfócitos 31%, Monócitos 6%), plaquetas 285000/µL), Proteína C-reativa 13,8 mg/L e coletada hemocultura. Ultrassonografia de membro inferior direito evidenciou coleção multiloculada, medindo 3,3 x 1,4 x 2,6 cm (6,3 mL) e linfonodomegalia reacional, em região poplítea, sem alterações de fluxo ao Doppler.

Quanto aos antecedentes relevantes, a vacinação estava em dia, tinha moradia com saneamento básico e possuía 1 cachorro e 18 gatos.

Recebeu oxacilina 200 mg/kg/dia, trocado para ceftriaxone 1g 12/12 horas e clindamicina 30 mg/kg/dia após três dias, devido à não melhora clínica. A hemocultura da admissão era negativa. Solicitada sorologia para Bartonella por epidemiologia positiva, mas o resultado só esteve disponível após 13 dias.

No nono dia de antibioticoterapia, apresentou febre de 38,7 ºC, associada à dor em região epigástrica, com piora progressiva nos três dias seguintes. Ultrassonografia de abdome evidenciou áreas nodulares heterogêneas esparsas no fígado e uma área nodular com as mesmas características no baço.

Tomografia de abdome mostrou imagens hipodensas esparsas pelo parênquima hepático (a maior cerca de 2,0 x 1,4 cm) e esplenomegalia, com imagem nodular hipodensa lobulada (cerca de 3,0 x 2,4 cm), compatíveis com abscessos, sem indicação de drenagem cirúrgica.

Ampliado tratamento com vancomicina 40 mg/kg/dia e piperacilina + tazobactam 300 mg/kg/dia. Apresentava os seguintes exames: Proteína C-reativa 109,17 mg/L, Velocidade de Hemossedimentação 49 mm, Bilirrubinas totais 0,18 mg/dL, Bilirrubina Direta 0,13 mg/dL, Fosfatase Alcalina 229 U/L, Gama Glutamil Transferase 142 U/L, Aspartato Amino Transferase 78 U/L, Alanina Amino Transferase 59 U/L. Após dois dias desse novo esquema terapêutico, o resultado da sorologia para Bartonella veio reagente, IgG com titulação 1/1024, sendo feito o diagnóstico de DAG de forma sistêmica. Iniciada então claritromicina 15 mg/kg/dia e rifampicina 600 mg/kg/dia.

A paciente evoluiu com melhora clínica e laboratorial. Tomografia de abdome no oitavo dia de claritromicina + rifampicina sem evidência de novas lesões. Recebeu alta após 26 dias de internação, com medicações em uso até completar 15 dias de tratamento. No retorno ambulatorial, 25 dias após a alta, encontrava-se assintomática. Tomografia de controle realizada três meses após a internação, mostrou redução importante das dimensões das imagens nodulares hepáticas e esplênicas.


DISCUSSÃO

A DAG é causada por bactérias do gênero Bartonella, bacilos Gram-negativos e aeróbicos, sendo a Bartonella henselae a principal1,2. Os gatos são o seu principal reservatório, transmitida de um felino para outro através da pulga Ctenocephalides felis1,3,4. A transmissão para seres humanos ocorre através da arranhadura, mordida ou contato de pele não íntegra com a saliva do animal5-7.

Estima-se que nos Estados Unidos a incidência anual seja de 4,5 casos/100.000 habitantes na população adulta e de 9,4 casos/100.000 em crianças de 5 a 9 anos de idade8,9. No Brasil, a incidência é desconhecida e o número de casos é subestimado1,10.

A forma localizada da DAG é caracterizada por febre e linfadenopatia, mais comum nas cadeias axilares, epitrocleares, cervicais e inguinais, além de mal-estar, cefaleia e odinofagia1,6,11,12. Em crianças, constitui cerca de 85 a 90% dos casos2.

A DAG também pode se apresentar como Febre de Origem Indeterminada (FOI) em 10 a 30% dos casos, devendo, portanto, ser incluída no diagnóstico diferencial durante sua investigação6.

A manifestação hepatoesplênica cursa com a formação de microabscessos no fígado e/ou no baço, além da febre, dor abdominal, hepatoesplenomegalia e linfonodomegalia1,5,11. Esses abscessos caracterizam-se por lesões hipoecogênicas no ultrassom e hipoatenuantes na tomografia1,6.

Em pacientes imunossuprimidos, a DAG provoca uma resposta imunológica pró-angiogênica, levando a uma forma sistêmica chamada de angiomatose bacilar1,4. Em 90% dos casos, cursa com lesões dermatológicas, constituídas de pápulas vermelho-acastanhadas, que fazem diagnóstico diferencial com Sarcoma de Kaposi, hemangioma epitelioide e granuloma piogênico1,4. Pode haver ainda o acometimento hepático, a chamada peliose hepática bacilar5,6.

As manifestações oculares da DAG são a Síndrome Oculoglandular de Parinaud (que ocorre em cerca de 5% dos pacientes3 e consiste em febre, linfadenopatia pré-auricular, submandibular ou cervical), o granuloma necrótico conjuntival, a conjuntivite folicular1,5,6 e a neurorretinite, que pode cursar com perda da visão de maneira abrupta1,3,5.

A DAG raramente acomete o sistema nervoso. Em crianças, manifesta-se como encefalopatia, apresentando alteração do estado mental, cefaleia, crise convulsiva, rigidez de nuca, fraqueza, alteração de tônus e de reflexos1,5,6. O liquor pode ser normal ou apresentar aumento de celularidade ou de proteína. Os exames de imagem raramente são alterados. O eletroencefalograma pode mostrar alentecimento de ondas. O prognóstico é favorável, com recuperação espontânea em mais de 90% dos casos1,3,6. Outras manifestações neurológicas menos frequentes são neuropatias, síndrome de Guillain-Barré, ataxia, mielite transversa, entre outros1,3,6.

O diagnóstico atualmente baseia-se numa combinação de dados epidemiológicos, clínicos, sorológicos, histológicos e de achados em exames de imagem, pois não há um método padrão-ouro12. Nos casos de apresentação típica da doença, o diagnóstico é clínico1,2. Nas apresentações menos comuns, o principal método diagnóstico é a sorologia, sendo a imunofluorescência a mais utilizada. A sensibilidade varia de 14 a 100% para IgG e de 2-50% para IgM, e a especificidade varia de 34-100% para IgG e de 86-100% para IgM1,12. As desvantagens são: IgM negativo não exclui a doença, visto que seus níveis são detectáveis por apenas 3 meses, e IgG positivo não necessariamente significa infecção atual, pois pode permanecer positivo por até um ano2,5,6. Títulos de IgG acima de 1:256 sugerem fortemente infecção atual1,5.

O tratamento para linfadenopatia localizada consiste em medidas de suporte5,6. Se houver supuração de linfonodo, seu conteúdo deve ser aspirado. A incisão e drenagem não são recomendadas pelo risco de recorrência4,7,11. Nas formas sistêmicas, quadros localizados que não se resolvem espontaneamente e nas comorbidades ou imunossupressão, o tratamento antimicrobiano é recomendado3. Podem ser usados azitromicina por 5 dias, rifampicina ou metronidazol por 2 a 3 semanas ou sulfametoxazol + trimetoprim por 7 a 10 dias1,2,4.

As recomendações de tratamento para formas sistêmicas da DAG são baseadas em literatura de baixo nível de evidência, com estudos observacionais e com grande variedade de esquemas antimicrobianos entre eles1,4,6. Para a forma hepatoesplênica e febre prolongada, alguns estudos recomendam rifampicina por 14 dias, associada ou não à azitromicina, gentamicina ou sulfametoxazol + trimetoprim4,6,12,13.

Em pacientes imunossuprimidos, a angiomatose bacilar é tratada com eritromicina ou doxiciclina ou em combinação com rifampicina nos casos mais graves, por 3 a 4 meses, pelo risco de recidiva1,3,6.

Para a neurorretinite, recomenda-se doxiciclina (devido à sua penetração no sistema nervoso central) ou eritromicina (em crianças menores de 8 anos) em associação com rifampicina por 2 a 4 semanas em imunocompetentes e por 4 meses em imunossuprimidos1,5. Na encefalopatia, a terapia antimicrobiana é controversa e, caso realizada, recomenda-se o mesmo esquema da neurorretinite por 4 a 6 semanas1,5.

As medidas de prevenção constituem-se no controle das pulgas dos gatos, educação em saúde, higiene das mãos após contato com os felinos e a supervisão das crianças durante as brincadeiras com os animais de estimação2,8.

Em resumo, o caso descrito ilustra o grande espectro clínico dessa infecção, que, somado à demora para obtenção do resultado da sorologia, pode tornar seu diagnóstico um desafio. Por isso, é válido lembrar-se dessa doença durante investigação de casos de febre prolongada, linfadenopatia, abscessos e/ou dor abdominal.


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Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM), Departamento de Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:
Maria Aparecida Gadiani Ferrarini
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E-mail: magferrarini@gmail.com

Data de Submissão: 08/03/2022
Data de Aprovação: 21/06/2022