ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 1

Hemorragia digestiva como primeira manifestação na síndrome de Alagille - Relato de caso

Gastrointestinal bleeding as the first manifestation of Alagille syndrome - Case report

RESUMO

INTRODUÇÃO: O objetivo deste relato é descrever um caso de hemorragia digestiva iniciada com 1 mês de vida em paciente com síndrome de Alagille.
RELATO DE CASO: Paciente iniciou quadro de sangramento do trato gastrointestinal recorrente, levando a choque hipovolêmico no segundo mês de vida. Durante a investigação, foi evidenciada colestase e RNI incoagulável. Os estigmas faciais, juntamente com o embriotóxon posterior no exame oftalmológico e ecocardiograma transtorácico com estenose de ramos pulmonares e forame oval patente, sugeriam hipótese de síndrome de Alagille, confirmada posteriormente por biópsia hepática compatível e teste genético com mutação no gene JAGGED 1. Após administração de vitamina K, paciente evoluiu com normalização do coagulograma, sem novos episódios de hemorragia digestiva. No seguimento, foi iniciada reposição de vitaminas lipossolúveis e tratamento com ácido ursodesoxicólico.
DISCUSSÃO: Relatos na literatura descrevem episódios de sangramento em pacientes com síndrome de Alagille, porém o principal sítio de sangramento é o sistema nervoso central (SNC). Não há descrição de sangramento no trato gastrointestinal como manifestação inicial e no período neonatal da síndrome. O caso relatado é uma forma incomum de apresentação e mostra a importância de suspeita diagnóstica em casos de colestase neonatal com hemorragia digestiva, permitindo o tratamento adequado e melhora do prognóstico.

Palavras-chave: Síndrome de Alagille, Hemorragia, Colestase intra-hepática.

ABSTRACT

INTRODUCTION: The aim of this report is to describe a case of gastrointestinal bleeding that started at 1 month of age in a patient with Alagille Syndrome.
CASE REPORT: Patient started recurrent gastrointestinal bleeding, leading to hypovolemic shock in the second month of life. During the investigation, cholestasis and incoagulable INR were evidenced. The facial stigmata, associated with the posterior embryotoxon in the ophthalmologic examination and transthoracic echocardiogram with stenosis of the pulmonary branches and patent foramen ovale, suggested the hypothesis of Alagille Syndrome, later confirmed by compatible liver biopsy and genetic testing with a mutation in the JAGGED1 gene. After administration of vitamin K, the patient evolved with normalization of the coagulogram, without new episodes of gastrointestinal bleeding. At follow-up, replacement of fat-soluble vitamins and treatment with ursodeoxycholic acid were initiated.
DISCUSSION: Reports in the literature describe bleeding episodes in patients with Alagille Syndrome, however, the main site of bleeding is the central nervous system. There is no description of bleeding in the gastrointestinal tract as the initial and neonatal manifestation of the syndrome. The case reported is an uncommon form of presentation and shows the importance of diagnostic suspicion in cases of neonatal cholestasis with gastrointestinal bleeding, allowing for adequate treatment and improved prognosis.

Keywords: Alagille syndrome, Hemorrhage, Cholestasis intrahepatic.


INTRODUÇÃO

Hemorragia digestiva (HD) é um evento raro nos primeiros meses de vida, com aumento do percentual dos casos de acordo com a progressão da idade1. As causas mais comuns em lactentes incluem alergia ao leite de vaca, esofagite e lacerações de Mallory-Weiss. Algumas doenças com evolução mais insidiosa/silenciosa podem se tornar condições de risco para o sangramento, e muitas vezes só serão identificadas após um episódio de HD, como acontece nos distúrbios de coagulação - doença hemorrágica do recém-nascido e hemofilias, bem como nas doenças hepáticas que levam à hipertensão portal, ou até mesmo a alterações congênitas do trato gastrointestinal, como a duplicação intestinal ou o divertículo de Meckel2. Doenças hepatobiliares que cursam com colestase no período neonatal podem se manifestar, muito raramente, com hemorragia digestiva secundária à deficiência de vitamina K. Entre essas doenças, podemos citar a síndrome de Alagille3. O objetivo deste relato é descrever um caso de hemorragia digestiva iniciada com 1 mês de vida em paciente com síndrome de Alagille.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, nascido com 35 semanas de idade gestacional por parto cesáreo e peso de 2195 gramas, fazia acompanhamento médico por ganho ponderal insatisfatório (menos de 10 gramas/dia) e icterícia, com orientação de banho de sol. Ao completar 1 mês de vida, iniciou quadro de vômitos e fezes escurecidas, progredindo para conteúdo sanguinolento em pequena quantidade. Após 1 semana, apresentou 3 episódios de hematêmese em moderada quantidade, quando então foi ao Pronto-Socorro. Foi admitido em regular estado geral, descorado 3+/4+, ictérico 2+/4+, desidratado +/4+, irritado, com tempo de enchimento capilar lentificado, peso de 2390 gramas, apresentando hematêmese durante a avaliação, além de sopro holossistólico com irradiação para dorso. Os exames iniciais evidenciaram hemoglobina de 4,7 g/dL, coagulograma incoagulável e colestase (Bilirrubina total (BT) 7,01 mg/dL e direta (BD) 3,79 mg/dL). Recebeu hidratação venosa, concentrado de hemácias, plasma fresco congelado e vitamina K, com controle do sangramento e estabilização do paciente. Procedeu-se à investigação de síndrome colestática neonatal, com exames descritos nas tabelas 1 e 2. Devido a estigmas faciais, foi realizado exame oftalmológico, com análise de fundo de olho e lâmpada de fenda. Foi encontrado embriotóxon posterior e alterações de disco óptico com aspecto de papiledema. A radiografia de tórax não tinha alterações. O ecocardiograma transtorácico evidenciou estenose de ramos pulmonares e forame oval pérvio. Foi realizada biópsia hepática, a qual apresentava moderada a intensa colestase canalicular e intra-hepatocítica, focos de eritropoese extramedular e transformação gigantocelular focal de hepatócitos; ductopenia focal; siderose grau 2 kupfferiana. O conjunto dos achados acima foi compatível com o diagnóstico de síndrome de Alagille. Após 13 dias de internação, recebeu alta em uso de vitamina A, D e E, polivitamínico e aleitamento misto com triglicerídeos de cadeia média (TCM) a 1%. Em acompanhamento ambulatorial, manteve sinais clínicos de colestase, e, após um mês, foi iniciado ácido ursodeoxicólico. Evoluiu com melhora e, após 6 meses, exames demonstraram BT 1,63 mg/dL e BD 0,87 mg/dL. Foi realizado painel genético de colestase que identificou variante, em heterozigose, no gene JAGGED1 (jagged canonical Notch ligand 1, OMIM* 601920), confirmando o diagnóstico de síndrome de Alagille.









DISCUSSÃO

A síndrome de Alagille é uma doença predominantemente hereditária, decorrente de mutações no gene Jagged1, que envolve diversos sistemas, entre eles o fígado, coração, olhos, face e esqueleto. Suas principais manifestações clínicas envolvem: colestase secundária à escassez de ductos biliares intra-hepáticos, defeitos cardíacos congênitos principalmente nas artérias pulmonares, vértebras em borboleta, defeitos da câmara anterior do olho, tipicamente embriotóxon posterior e dismorfismo facial4. Para o diagnóstico da síndrome, é necessária a identificação de no mínimo três dessas alterações. O paciente descrito no relato apresentava tais achados característicos, exceto a alteração nas vértebras. Há relatos, em menor frequência, de outros achados clínicos como malformações renais, insuficiência pancreática e malformações vasculares. Essas anomalias vasculares são observadas desde as primeiras descrições da síndrome, anteriormente conhecida como displasia artério-hepática, e pode ser um fator de risco para sangramento5.

Outras causas de sangramento são decorrentes da intensa colestase apresentada por esses pacientes, que leva à deficiência de vitamina K, ou até mesmo ser secundário à cirrose, podendo cursar com hipertensão portal. No caso apresentado, o paciente apresentava sangramento proveniente do trato gastrointestinal e índices de coagulação muito alterados, provavelmente pela deficiência de vitamina K, decorrente da colestase e também do baixo ganho ponderal.

Diante dessa manifestação em recém-nascidos, deve-se excluir a hipótese de doença hemorrágica do recém-nascido e hemofilia. No presente caso, tais hipóteses não justificariam o aumento da bilirrubina à custa de bilirrubina direta e nem aumento de transaminases hepáticas. Lykavieris e colaboradores (2003)6 demonstraram em seu estudo que o principal sítio desses sangramentos é o sistema nervoso central (SNC), porém hemorragias em outros locais podem ocorrer e são causas importantes de morbimortalidade.

Não há relatos na literatura de sangramento no trato gastrointestinal como manifestação inicial e no período neonatal da síndrome de Alagille. O presente relato é uma forma incomum de apresentação e mostra a importância de suspeita diagnóstica diante dos casos de colestase neonatal, principalmente em associação com outros achados, permitindo tratamento adequado, com melhora do prognóstico.


REFERÊNCIAS

1. Tortori C. Hemorragia digestiva em crianças: uma visão geral. Rev Pediatr SOPERJ. 2017;17(1):72-84.

2. Saxonhouse M, Manco-Johnson M. The evaluation and management of neonatal coagulation disorders. Semin Perinatol. 2009;33(1):52-65.

3. Vajro P, Ferrante L, Paolella G. Alagille syndrome: An overview. Clin Res Hepatol Gastroenterol. 2012;36(3):275-77. DOI: https://doi.org/10.1016/j.clinre.2012.03.019.

4. Jesina D. Alagille syndrome: an overview. Neonatal Netw. 2017;36(6):343-7.

5. Kamath BM, Spinner NB, Emerick KM, Chudley AE, Booth CB, Piccoli DA, et al. Vascular anomalies in Alagille syndrome. Circulation. 2004;109(11):1354-8.

6. Lykavieris P, Crosnier C, Trichet C, Meunier-Rotival M, Hadchouel M. Bleeding tendency in children with Alagille syndrome. Pediatrics. 2003;111(1):167-70. DOI: https://doi.org/10.1542/peds.111.1.167.












Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátricas - Campinas - São Paulo - Brasil.

Endereço para correspondência:
Thayse Packo Campos
Universidade Estadual de Campinas
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E-mail: thaysepacko@gmail.com

Data de Submissão: 21/03/2022
Data de Aprovação: 06/06/2022