ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 1

Condução inicial de paciente com erro inato do metabolismo em hospital de pequeno porte

Initial management of a patient with an inborn error of metabolism in a small hospital

RESUMO

A acidemia propiônica faz parte das acidemias orgânicas que constituem um grupo de doenças hereditárias autossômicas recessivas causadas pela deficiência de enzimas envolvidas no catabolismo dos aminoácidos de cadeia ramificada resultando no acúmulo tecidual de um ou mais ácidos carboxílicos. O objetivo deste relato de caso é retratar o sucesso obtido com a instituição do tratamento precoce mediante alta suspeição clínica e laboratorial de erro inato do metabolismo em uma lactente com quadro de convulsão, rebaixamento do nível de consciência, pancitopenia, acidose metabólica com ânion gap elevado e hiperamonemia. O tratamento constituiu-se em diálise de urgência, restrição proteica com suplementação de cofatores e acompanhamento dos níveis séricos de amônia. Embora conduzida em hospital de pequeno porte, com a suspeição diagnóstica bem como a instituição do tratamento específico de forma precoce, foi possível obter um desfecho favorável, este relato reforça a importância para pediatras e neonatologistas de se ter a hipótese de erro inato do metabolismo como diagnóstico diferencial diante de paciente com tais achados clínicos e laboratoriais visto que a manifestação ocorre majoritariamente nos primeiros meses de vida.

Palavras-chave: Acidemia propiônica, Pediatria, Erros inatos do metabolismo.

ABSTRACT

Propionic acidemia is part of the organic acidemias that constitute a group of inherited autosomal recessive diseases caused by the deficiency of enzymes involved in the catabolism of branched-chain amino acids resulting in the tissue accumulation of one or more carboxylic acids. The objective of this case report is to portray the success obtained with the institution of early treatment due to high clinical and laboratory suspicion of inborn error of metabolism in an infant with seizures, reduced level of consciousness, pancytopenia, metabolic acidosis with high anion gap. and hyperammonemia. The treatment consisted of emergency dialysis, protein restriction with supplementation of cofactors and monitoring of serum ammonia levels. Although conducted in a small hospital, with the diagnostic suspicion as well as the early institution of specific treatment, it was possible to obtain a favorable outcome, this report reinforces the importance for pediatricians and neonatologists of having the hypothesis of inborn error of metabolism as differential diagnosis in a patient with such clinical and laboratory findings since the manifestation occurs mostly in the first months of life.

Keywords: Propionic acidemia, Pediatrics, Metabolism Inborn errors.


INTRODUÇÃO

As acidemias orgânicas constituem um grupo de doenças hereditárias autossômicas recessivas causadas pela deficiência de enzimas envolvidas no catabolismo dos aminoácidos de cadeia ramificada, resultando no acúmulo tecidual de um ou mais ácidos carboxílicos1. A acidemia propiônica (AP) e a acidemia metilmalônica (AMM) compõem o grupo de acidemias orgânicas mais frequentemente diagnosticadas1-4. O fenótipo varia de formas graves de início neonatal, com alta mortalidade se a suspeita clínica não for levantada precocemente, a formas mais leve de início tardio2,5,6. Em ambos os casos, o curso clínico é dominado pelo risco de episódios de descompensação metabólica, aumentando a morbimortalidade1-3.


OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é retratar o desfecho favorável obtido com a instituição da intervenção precoce mediante alta suspeição clínica e laboratorial de um caso de erro inato do metabolismo.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, nascida de parto cesárea por apresentação pélvica, peso 2916 g, Apgar 8 e 8, pré-natal sem intercorrências, pais primos de segundo grau. Com 48h de vida, evoluiu com gemência e desconforto respiratório sendo encaminhada para UTI Neonatal, onde permaneceu por 18 dias para tratamento de anemia e acidose metabólica, recebendo alta após resolução do quadro.

Com um mês e meio de vida, apresentou recusa das mamadas e sonolência. A mãe procurou atendimento médico no município de origem, onde foi realizada triagem infecciosa e identificado pancitopenia (hemoglobina 6,9g/dL, hematócrito 18%, leucócitos 1104/mm3, segmentados 20%, linfócitos 76%, monócitos 4% e plaquetas 9mil/mm3). A paciente foi encaminhada, então, para o nosso serviço. Evoluiu com crise convulsiva e rebaixamento do nível de consciência, sendo necessário intubação orotraqueal e encaminhamento para UTI Pediátrica. Recebeu concentrado de hemácias, manteve-se sem crise convulsiva após ataque de fenobarbital e, na tentativa de realizar extubação após 48h da medicação, foram desligadas as drogas de sedação, porém paciente mantinha-se comatosa com Glasgow 7. Em investigação laboratorial, constatou-se acidose metabólica com ânion gap elevado (pH= 7,36; pCO2= 29mmHg; HCO3= 16,4mEq/L; BE= -8,2mEq/L; ânion gap= 18,6mEq/L) e hiperamonemia (amônia 408µmol/L). Foi iniciada diálise peritoneal de urgência e levantada hipótese de erro inato do metabolismo. Devido à pancitopenia, coletado mielograma, que mostrou medula óssea hipocelular, sorologias para TORCHS todas negativas. Após 72h de diálise e jejum, a paciente evoluiu com controle da amônia e melhora do exame neurológico. Introduzida dieta para acidemia orgânica com restrição proteica e suplementação com L-carnitina e benzoato de sódio. Permaneceu na UTI por trinta dias; desses, vinte e sete intubada, painel genético realizado pelo laboratório que analisa os testes do pezinho evidenciou variante patogênica em homozigose no gene que codifica a subunidade beta da enzima propionil-CoA carboxilase (PCCB), uma alteração sugestiva de acidemia propiônica (AP), cujo tratamento é composto por dieta específica e suplementação de cofatores, a qual paciente já estava recebendo. Após estabilização do quadro, obteve avaliação em centro de referência, que orientou manter dieta com baixo teor de proteína, suplementação calórica com maltodextrina e ácidos graxos de cadeia média, além de cofatores. Vem se mantendo estável desde então e, apesar do atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, condição inerente à doença, apresenta bom ganho ponderal e estabilização do nível sérico de amônia.


DISCUSSÃO

Muitos erros inatos do metabolismo (EIM) surgem precocemente, ainda no período neonatal, as acidemias orgânicas são consideradas as doenças metabólicas mais frequentes desse grupo4.

A AP é causada pelo déficit da enzima propionil-CoA carboxilase (PCC), uma enzima mitocondrial que catalisa os aminoácidos essenciais: metionina, valina, treonina e isoleucina. Tal déficit resulta em inibição de várias vias do metabolismo intermediário e acúmulo de metabólitos tóxicos; dentre eles, a amônia1,5,6. Geralmente, os sintomas, como sonolência, recusa alimentar, vômitos e desidratação, iniciam-se nas primeiras semanas de vida1,7,8. Nos exames laboratoriais, evidenciam-se acidose metabólica com ânion gap elevado, além de hiperamonemia, cetonúria, hipoglicemia e citopenias2,5,8. Esses achados comumente se confundem com quadro séptico e, se não houver alto índice de suspeição, podem culminar em óbito, levando em consideração as peculiaridades do tratamento7. No caso apresentando, levantou-se a hipótese diagnóstica, diante da deterioração neurológica, acidose metabólica com ânion gap elevado e hiperamonemia, haja vista que fazem parte do quadro clínico laboratorial.

A determinação de ácidos orgânicos na urina e análise do perfil de acilcarnitina no sangue são as investigações mais comumente usadas para detectar AP2,8. Determinação da atividade da enzimática deficiente, bem como a análise de perfil genético, também são exames confirmatórios, porém realizados em laboratórios especializados2,8. No caso em questão, foi realizado painel genético para erro inato do metabolismo em laboratório externo, consistindo numa opção diagnóstica possível, e detectada uma variante patogênica em homozigose no gene que codifica a subunidade enzimática, um achado altamente sugestivo de AP.

O tratamento das acidemias orgânicas deve ser fundamentado em restrição proteica, que visa a redução do acúmulo de substâncias tóxicas como a amônia, evitar jejum prolongado e tratar precocemente quadros infecciosos a fim de reduzir o catabolismo; eliminar metabólitos tóxicos por suplementação de cofatores como L-carnitina ou por meios artificias conforme gravidade5,6,8. A paciente, inicialmente, necessitou de diálise como medida de urgência para redução dos níveis séricos de amônia e manteve seu valor dentro da normalidade graças ao início precoce da dieta para erro inato do metabolismo e suplementação com l-carnitina, resultando, também, em melhora importante do quadro neurológico.

Sem diagnóstico e tratamento imediatos, as acidemias orgânicas evoluem com encefalopatia progressiva, que se manifesta com letargia, convulsões ou coma, podendo resultar em morte3,8-10. O quadro é desafiador, pois muitos dos sinais clínicos são inespecíficos, porém deve fazer parte do diagnóstico diferencial diante de recém-nascidos ou lactentes jovens que apresentam recusa das mamadas, convulsões, deterioração neurológica, acidose metabólica com ânion gap elevado e hiperamonemia; uma vez feita a suspeição, a instituição do tratamento dietético e suplementar de forma precoce até disponibilização dos exames laboratoriais e adoção de medidas para redução dos metabólitos tóxicos, se presentes, constituem medidas que podem mudar o desfecho dramático da doença4,10.

Embora seja necessário acompanhamento desse grupo de doenças em centro de referência, a condução do caso exposto, desde a estabilização clínica, diagnóstico e tratamento, obtendo-se uma evolução satisfatória, corrobora a possibilidade de investigação inicial e de definição diagnóstica de algumas doenças raras em hospitais de pequeno porte, desde que haja familiaridade e empenho da equipe médica em correlacionar sinais clínicos aos diagnósticos diferenciais.


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Hospital Municipal José Carvalho Florence, Pediatria - São José dos Campos - São Paulo - Brasil.

Endereço para correspondência:
Carla Diniz Dias Fernandes
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E-mail: carlacdd.fernandes@gmail.com

Data de Submissão: 17/05/2022
Data de Aprovação:03/09/2023