ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 1

Oportunidades perdidas no diagnóstico de malformação congênita:relato de caso

Missed opportunities in the diagnosis of congenital malformation: a case report

RESUMO

Distúrbios genéticos, metabólicos ou ambientais podem causar malformações do sistema nervoso central (SNC) durante o desenvolvimento cerebrospinal. As infecções congênitas fazem parte das causas ambientais, especialmente o citomegalovírus (CMV) e o vírus Zika. Relatamos um caso de uma criança com malformação congênita do SNC, com suspeita de infecção por CMV. O uso de valaciclovir durante a gravidez, sem coleta para avaliação do líquido amniótico devido à idade gestacional avançada, pode ter impedido o isolamento do vírus no recém-nascido e a identificação da causa da malformação do SNC. Discutimos aqui as dificuldades encontradas para um diagnóstico de certeza para a criança em questão. Mesmo em países desenvolvidos, as infecções congênitas ainda são um grande desafio diagnóstico. As oportunidades perdidas de investigação devem ser evitadas para que a etiologia seja reconhecida precocemente e, se possível, tratada.

Palavras-chave: Malformações do sistema nervoso, Diagnóstico, Zika vírus, Citomegalovírus.

ABSTRACT

Genetic, metabolic or environmental disorders can cause malformations of the central nervous system (CNS) that take place during the cerebrospinal development. Congenital infections are part of environmental causes of CNS malformations. We report a case of an infant with a congenital CNS malformation, suspected of having CMV infection. Maternal use of valacyclovir during pregnancy without amniotic fluid assessment due to advanced gestational age might have prevented the virus isolation in the newborn and the identification of the cause of CNS malformation. We discuss the difficulties encountered for a diagnosis of certainty and for the child in question. Even in developed countries, congenital infections are still a great diagnostic challenge. Missed opportunities for investigation should be avoided so that the etiology becomes early recognized and, if possible, treated

Keywords: Nervous system malformations, Diagnosis, Zika virus infection, Cytomegalovirus.


INTRODUÇÃO

As malformações do sistema nervoso central (SNC) consistem em um grupo heterogêneo de doenças que ocorrem durante a vida embrionária ou fetal1. Mais de 2.000 alterações já foram descritas na literatura, acometendo cerca de um a 10 a cada mil nascidos vivos, sendo responsáveis por até 25% dos óbitos perinatais1,2. As infecções congênitas são causas relevantes de malformações do SNC3, entre as quais se incluem o citomegalovírus (CMV) e o vírus Zika4.

Relatamos o caso de uma criança com malformação congênita do SNC diagnosticada tardiamente. O presente relato foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Protocolo 4.683.559), tendo o responsável legal pela criança assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Discutimos os diagnósticos diferenciais e as possibilidades terapêuticas para esse paciente.


RELATO DE CASO

O paciente nasceu em novembro de 2019 de uma mulher com 23 anos, com união não consanguínea. Seus exames de primeiro trimestre foram não reagentes para HIV, sífilis, toxoplasmose e hepatite C, com sorologia anti-HBs positiva. Na sétima semana de gestação, seu primeiro filho apresentou febre, náuseas, diarreia e mal-estar geral. Na semana seguinte, a gestante apresentou o mesmo quadro e foi medicada com sintomáticos. Na décima semana de gravidez, apresentou dor de cabeça, coriza e dor facial. Após uma semana, evoluiu com rash cutâneo pruriginoso disseminado, mais intenso nas palmas das mãos e plantas dos pés, com duração de três dias, associado a sangramento vaginal. Na 14ª semana de gestação, desenvolveu sintomas compatíveis com infecção de vias aéreas superiores, com duração de 15 dias. Em nenhuma das situações citadas foram coletados exames laboratoriais.

Na 30ª semana de gestação, realizou ultrassonografia (US) morfológica fetal, na qual o feto apresentava peso estimado de 1.823g (90º percentil) e índice de líquido amniótico (ILA) adequado (169 mm). Na avaliação do SNC, o feto apresentava parênquima cerebral difusamente afilado, associado à hiperecogenicidade cortical, centroencefálica e periventricular, com ventriculomegalia, alargamento do espaço subaracnóideo e cisterna magna acima do percentil 97. Na mesma semana, foi realizada nova US, confirmando as malformações neurológicas, apresentando também uma lesão hepática calcificada focal.

Para a investigação de malformação de SNC, foram realizadas sorologias na gestante para infecções congênitas, com resultado negativo para Zika, Chikungunya, sífilis, HIV, toxoplasmose e hepatite C. Apresentava rubéola com IgG reagente e IgM não reagente devido à vacinação prévia. A sorologia da dengue apresentou IgM positivo, e de CMV mostrou IgG e IgM reativos, com alta avidez de IgG.

Como dengue não é reconhecidamente causa de malformação congênita, a hipótese principal para o caso foi CMV congênito, com tratamento intrauterino com valaciclovir 8g/dia a partir de 34 semanas até o final da gestação. A gestante fez uso da medicação até a 38ª semana de gestação e foi submetida à cesariana eletiva com 39 semanas de gestação, dando à luz um menino, com peso de 3975g, estatura de 48 cm, perímetro cefálico de 36 cm e índices de Apgar de 9 e 10.

O exame histopatológico da placenta mostrou morfologia de terceiro trimestre, peso acima do percentil 90 e presença de lobo acessório. Apresentava também congestão vilosa e hipercapilarização com trombose do espaço interviloso, bem como intervilosite crônica focal. Também foram verificados focos de calcificação distrófica, proliferação de nodos sinciciais e áreas de infarto.

Foi coletada sorologia para CMV do recém-nascido, com IgG positivo e IgM negativo. Foi realizado PCR na urina para CMV, Zika e panherpes (CMV, Epstein-Barr, varicela zoster e herpesvírus 1 e 2) nos primeiros dias de vida, todos negativos.

Foram realizados testes para parvovírus B19, com IgG positivo, IgM negativo e PCR indetectável. A sorologia e o PCR fecal para enterovírus foram negativos.

Devido à depressão da fontanela anterior, foi contraindicada a coleta de líquido cefalorraquidiano por punção lombar. Foram realizadas tentativas de coleta suboccipital, sem sucesso.

O eletroencefalograma (EEG) mostrava depressão difusa da atividade elétrica cerebral, sem anormalidades epileptiformes. A ressonância magnética de crânio, realizada aos 3 dias de vida, evidenciou microencefalia, com parênquima cerebral difusamente afilado, medindo até 0,5 cm de espessura, associado à lisencefalia e múltiplas calcificações periventriculares, com ectasia compensatória do sistema ventricular supratentorial e tronco encefálico (Figura 1 – A, B, C). O exame de fundo de olho e Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (PEATE) não apresentaram alterações. Durante o seguimento, o geneticista descartou uma etiologia genética para o caso.


Figura 1. Ressonância Magnética de crânio realizada com 3 dias de vida e Tomografia Computadorizada de crânio realizada com 16 meses de idade. - A, B, C: Ressonância Magnética de crânio em cortes transversais (A e B) e coronal (C), ponderados em T2. Na imagem A é possível observar o cerebelo (seta curva) normal, com aumento do líquor no espaço subaracnóideo (cabeças de seta). Na imagem B há redução volumétrica dos tálamos (asterisco) e dos pedúnculos cerebrais, além de acentuado afilamento do parênquima cerebral (setas longas) e dilatação ventricular bilateral (setas abertas). Na imagem C vemos o aumento do espaco subaracnóideo por redução volumétrica do cérebro (cabeças de seta), o cerebelo normal (seta curva) e a dilatação ventricular assimétrica (setas abertas). C, D, E: Tomografia Computadorizada de crânio em cortes transversais. Na imagem D é possível observar que os globos oculares (setas curtas) e o cerebelo (seta curva) não apresentam alterações, com afilamento do parênquima cerebral temporal e calcificações (seta longa). Na imagem E há redução volumétrica dos tálamos (asterisco) e dos pedúnculos cerebrais, além de acentuado afilamento do parênquima cerebral, com calcificações (setas longas) e dilatação ventricular bilateral (setas abertas). Na imagem F vemos que a alteração do parênquima cerebral (setas longas) se estende até a convexidade superior, com dilatação ventricular forma assimétrica (setas abertas).



Com um ano de idade, um novo PEATE sugeriu audição normal e a fundoscopia mostrou palidez papilar bilateral 1+/4+.

Foram coletadas amostras de sangue da mãe e da paciente com 13 meses de idade para sorologia para Zika e ambas foram negativas. Foi também realizado teste de neutralização de redução de placa para Zika, negativos para mãe e filho. Essa coleta foi realizada visando a possibilidade de reação cruzada com dengue, levando ao resultado IgM positivo observado durante a gestação. Foi realizada nessa idade, pois, após 12 meses de idade, não há mais anticorpos maternos que possam interferir na avaliação da sorologia da criança.

Foram recuperados tecidos placentários, membranas fetais e cordão umbilical fixados em parafina para realização de PCR para CMV e Zika, com resultados negativos para ambos os vírus.

Após 12 meses de idade, o paciente iniciou quadro de convulsões. Ao EEG, apresentava paroxismos epileptiformes multifocais muito frequentes nas regiões centrotemporal, temporal anterior direita e temporal posterior esquerda. Foram iniciados levetiracetam e baclofeno, com melhora clínica e eletroencefalográfica.

Na mesma idade, foi realizada uma tomografia de crânio (Figura 1 - D, E, F), na qual se verificou redução volumétrica da calota craniana, com dilatação acentuada do sistema ventricular supratentorial. Apresentava também afilamento do manto cortical, com apagamento dos sulcos corticais, associado a múltiplas calcificações bilaterais difusas. O corpo caloso não foi caracterizado nessa nova imagem. Como havia desvio de linha média, optou-se por realizar uma cirurgia de derivação ventrículo-peritoneal aos 17 meses de idade.

Na imagem A, é possível observar o cerebelo (seta curva) normal, com aumento do liquor no espaço subaracnóideo (cabeças de seta). Na imagem B, há redução volumétrica dos tálamos (asterisco) e dos pedúnculos cerebrais, além de acentuado afilamento do parênquima cerebral (setas longas) e dilatação ventricular bilateral (setas abertas). Na imagem C, vemos o aumento do espaço subaracnóideo por redução volumétrica do cérebro (cabeças de seta), o cerebelo normal (seta curva) e a dilatação ventricular assimétrica (setas abertas). Na imagem D, é possível observar que os globos oculares (setas curtas) e o cerebelo (seta curva) não apresentam alterações, com afilamento do parênquima cerebral temporal e calcificações (seta longa). Na imagem E, há redução volumétrica dos tálamos (asterisco) e dos pedúnculos cerebrais, além de acentuado afilamento do parênquima cerebral, com calcificações (setas longas) e dilatação ventricular bilateral (setas abertas). Na imagem F, vemos que a alteração do parênquima cerebral (setas longas) se estende até a convexidade superior, com dilatação ventricular de forma assimétrica (setas abertas).

Com 18 meses de idade, o paciente apresenta microcefalia abaixo do percentil 3, considerada microcefalia pós-natal, com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Evoluiu com diminuição progressiva da velocidade de ganho de peso, comprimento e perímetro cefálico, apresentando atualmente escores Z abaixo de -2 para as três medidas.


DISCUSSÃO

Relatamos o caso de uma criança com malformação congênita do SNC, com suspeita de infecção por CMV, o que levou ao uso materno de valaciclovir durante a gravidez. Não foi possível a recuperação viral em nenhum momento, nem durante a gravidez nem após o nascimento, não sendo possível, portanto, estabelecer com certeza o diagnóstico da malformação.

A microcefalia é um evento raro que requer investigação rigorosa para a descoberta de sua etiologia5. Um estudo alemão avaliou a causa de microcefalia em 680 crianças, das quais 41% permaneceram sem diagnóstico6. Em estudo australiano, 60% dos casos eram idiopáticos no momento da notificação7. No Brasil, o diagnóstico infeccioso não foi definido em 40,3% das crianças avaliadas no Rio de Janeiro8.

Em nosso caso, o diagnóstico tardio de malformações fetais impediu a coleta do líquido amniótico antes da administração do valaciclovir e a impossibilidade de coleta do LCR do neonato ao nascimento também impediu a recuperação de um agente infeccioso nesse sítio.

É possível observar que, durante a gestação, ocorreram três momentos de infecção, um deles com a presença de rash cutâneo, e em nenhum deles foram investigadas infecções que pudessem culminar em malformações congênitas.

Apesar de todos os avanços recentes no diagnóstico sorológico e molecular das infecções congênitas, elas ainda são um grande desafio para obstetras, neonatologistas e infectologistas pediátricos. Esse cenário denota a importância da investigação aprofundada, apesar da dificuldade de identificação da etiologia mesmo em países desenvolvidos. O diagnóstico de malformação congênita já é impactante para os pais, pois há uma quebra nas expectativas do filho idealizado, mas a angústia torna-se ainda maior quando desconhecem o evento causador. A utilização de todo o aparato diagnóstico disponível é essencial para minimizar a ausência de definição diagnóstica, o que sem dúvida é fonte de frustração para o investigador, mas principalmente para os pais.


REFERÊNCIAS

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8. Escosteguy CC, Medronho RE, Rodrigues RC, da Silva LDR, Oliveira BA, Machado FB, et al. Microcephaly and central nervous system findings associated with congenital Zika virus and other infectious etiologies in the state of Rio de Janeiro: crosssectional study, 2015-2017. Rev Panam Salud Publica. 2020 Nov:44:e151.










1. Universidade Federal de São Paulo, Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
2. Universidade Federal de São Paulo, Diagnóstico por Imagem - São Paulo - São Paulo - Brasil
3. Universidade de São Paulo, Instituto de Medicina Tropical - São Paulo - São Paulo - Brasil
4. Laboratórios DASA, Departamento de Biologia Molecular - São Paulo - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Maria Isabel de Moraes Pinto
Universidade Federal de São Paulo
Rua Botucatu, n° 740 - Vila Clementino - São Paulo/SP - CEP: 04023-062
E-mail: m.isabelmp@gmail.com

Data de Submissão: 30/06/2022
Data de Aprovação: 08/10/2022