ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Relato de caso: raquitismo dependente de vitamina d, tipo 1a

Case report: vitamin d-dependent rickets, type 1A

RESUMO

O raquitismo dependente de vitamina D tipo IA é uma doença autossômica recessiva com alteração da ação da enzima 1-alfa-hidroxilase responsável pela conversão de 25-hidroxivitamina D3 em 1,25-dihidroxivitamina D3, metabólito ativo da vitamina D. Este relato apresenta o caso de paciente masculino, que iniciou aos 20 meses de idade investigação devido a baixo ganho ponderal, com relato de regressão do desenvolvimento neuropsicomotor aos 9 meses, associado a hipotonia generalizada e deformidades ósseas em membros e coluna vertebral. Apresentava hipocalcemia, hipofosfatemia, paratormônio (PTH) e fosfatase alcalina elevados, sem alteração da 25-hidroxivitamina D3, com inventário ósseo sugestivo de raquitismo. Optado pela internação hospitalar e iniciada reposição de cálcio, fósforo, colecalciferol e calcitriol. Evoluiu com melhora clínica e laboratorial. Apresentou genoma compatível com raquitismo dependente de vitamina D tipo 1. Atualmente com 5 anos e 2 meses, em acompanhamento regular com endocrinologista, mantendo ganho de peso e desenvolvimento neuropsicomotor adequados. Por ser uma doença rara, o diagnóstico muitas vezes é feito de forma tardia. O diagnóstico precoce e tratamento adequado reduz significativamente a morbidade e as complicações causadas pela doença.

Palavras-chave: Vitamina D, Raquitismo, 25-Hidroxivitamina D3 1-alfa-Hidroxilase, Mutação com perda de função, Lactente.

ABSTRACT

Vitamin D-dependent rickets type 1A is an inborn error of metabolism that affects the action of the 1-alpha-hydroxylase, an enzyme responsible for converting 25-hydroxyvitamin D3 into 1,25-dihydroxyvitamin D3, which is the active metabolite of vitamin D. This report describes the case of a boy who underwent investigation at the age of 20 months due to low weight gain and a history of regression of motor development that had occurred at the age of 9 months, which were associated with generalized hypotonia and bone deformities in the limbs and spine. The patient presented with hypocalcemia, hypophosphatemia, and elevated levels of parathyroid hormone (PTH) and alkaline phosphatase but normal levels of 25-hydroxyvitamin D3, along with an X-ray of long bones suggestive of rickets. He was admitted to the hospital and started on calcium, phosphorus, cholecalciferol, and calcitriol replacement, progressing with clinical and laboratory improvement. Genomic analysis was compatible with vitamin D-dependent type 1 rickets. The patient is currently 5 years and 2 months old and undergoes regular follow-ups with an endocrinologist, maintaining adequate weight gain and motor, neurological, and psychological development. Due to the rare condition of the disease, diagnosis is often delayed. When diagnosed early, prompt treatment substantially reduces the morbidity and complications caused by the disease.

Keywords: Vitamin D. Rickets, 25-Hydroxyvitamin D3 1-alpha-Hydroxylase, Loss of Function Mutation, Infant.


INTRODUÇÃO

O raquitismo é uma patologia caracterizada por prejuízo de mineralização da matriz óssea na fase de crescimento, e afeta tanto a placa epifisária quanto o osso trabecular e cortical. Tem como principal etiologia a redução da oferta de vitamina D e cálcio necessários para uma adequada mineralização óssea, causada por deficiência nutricional ou baixa exposição solar. Outras causas são a deficiência de fósforo, doenças gastrointestinais crônicas que alteram a absorção de nutrientes, doenças renais, uso de fármacos como os barbitúricos e alterações no metabolismo da vitamina D1-3.

O raquitismo dependente de vitamina D tipo 1A (OMIM 264700) é uma patologia com prevalência de cerca de 1–5/10.000, mais frequente na região de Saguenay, no Canadá. É um erro inato do metabolismo que altera a ação da enzima 1-alfa-hidroxilase. Essa enzima é responsável pela conversão de 25-hidroxivitamina D3 em 1,25-dihidroxivitamina D3, o metabólito ativo da vitamina D. As manifestações clínicas costumam se iniciar entre 6 meses e 2 anos. Há atraso de desenvolvimento motor, fraqueza muscular, deformidades ósseas e, em casos graves, convulsões devido à hipocalcemia. Os achados radiológicos mais comuns são alargamentos das placas de crescimento e desgaste metafisário. Os exames laboratoriais evidenciam aumento da fosfatase alcalina e paratormônio (PTH), cálcio sérico normal ou baixo e hipofosfatemia. A dosagem de 25-hidroxivitamina D3 costuma estar normal, porém, os níveis de 1,25-dihidroxivitamina D3 são baixos4,5.

Por ser uma doença rara, chegar ao diagnóstico final pode ser complexo. Diante de um quadro de raquitismo resistente à reposição de vitamina D, deve ser aventada a hipótese de raquitismo dependente de vitamina D tipo 1A e iniciado tratamento específico.


RELATO DE CASO

Paciente, masculino, apresenta-se no consultório de gastroenterologia aos 20 meses de vida, para investigação de baixo ganho ponderal. Nega intercorrência no pré-natal ou neonatais, comorbidades e internações prévias. Filho único de pais não consanguíneos, nega história familiar de doenças esqueléticas. Relato de desenvolvimento adequado até os 9 meses, quando parou de andar e engatinhar. No exame físico, observaram-se fácies de dor ao se sentar, hipotonia generalizada, ganho ponderal inadequado, alargamento de punhos e tornozelos, arqueamento de membros superiores e inferiores e sulco de Harrison. Exames laboratoriais evidenciaram hipocalcemia, hipofosfatemia, PTH e fosfatase alcalina elevados, anemia e plaquetopenia, sem alteração da 25-hidroxivitamina D3 (Tabela 1). Optou-se pela internação hospitalar e iniciou-se a reposição de cálcio, fósforo, colecalciferol e calcitriol. Dose de calcitriol ajustada conforme resultado de exames laboratoriais, dose máxima utilizada 4,5 mcg/dia. Inventário ósseo com alargamento das extremidades costais, ossos longos com redução da densidade óssea, desgaste metafisário, fraturas por insuficiência nas diáfises das fíbulas (Figura 1). Realizada biópsia de medula óssea devido à bicitopenia com diagnóstico de mielofibrose secundária ao raquitismo.







Figura 1. RX de membros inferiores apresentando redução da densidade óssea e fraturas por insuficiência nas diáfises das fíbulas.



A análise molecular com sequenciamento genético para doenças esqueléticas identificou duas variantes em heterozigose no gene CYP27B1 (c.1226C>T - p.Thr409Ile e c.1319_1325dupCCCACCC - p.Phe443Profs*24) que causam o raquitismo dependente de vitamina D tipo 1A (OMIM # 264700). Não foi realizada análise genética dos familiares.

O paciente evoluiu com melhora clínica e redução gradativa do PTH e regularização de íons. Atualmente, o paciente, com 5 anos e 2 meses, tem acompanhamento regular com endocrinologista, faz o uso de cálcio e fósforo elementar, calcitriol 128 mg/kg/dia e colecalciferol 2000 UI/dia, mantendo ganho de peso e desenvolvimento neuropsicomotor adequados e normalização dos exames laboratoriais e radiológicos.


DISCUSSÃO

O raquitismo dependente de vitamina D tipo 1ª consiste na deficiência da enzima 1-alfa-hidroxilase. É uma doença autossômica recessiva, decorrente da mutação no gene CYP27B1, localizado no cromossomo 12 (12q131.1-13.3), e identificada pela primeira vez em 1961. Como resultado dessa mutação inativadora, a 25-hidroxivitamina D3 não é hidroxilada em 1,25-dihidroxivitamina D3 e a absorção do cálcio é prejudicada, ocasionando hipocalcemia e secreção compensatória de PTH, levando à excreção urinária de aminoácidos e fosfato. Ocorrem, também, manifestações ósseas precoces com deformações esqueléticas3.

No caso descrito, o paciente apresentou duas variantes em heterozigose no gene CYP27B1. Mesmo em heterozigose, essas variantes podem ser patogênicas e levam ao acometimento do paciente, como demonstrado por Kim (2021)4 e Wang (1998)6. O primeiro estudo foi feito na Coreia e identificou que 3 dos 5 pacientes analisados possuíam duas variantes em heterozigose no gene CYP27B1. Já o segundo, um estudo multicêntrico, 10 dos 19 pacientes analisados eram heterozigotos em duas mutações do gene4,6.

A biópsia de medula óssea do paciente descrito demonstrou mielofibrose. Essa é uma condição rara na pediatria, com incidência média de 1,5/100.000 podendo ser primária ou secundária a outra patologia7. A ocorrência de mielofibrose secundária ao raquitismo é uma manifestação rara e atípica que pode ser revertida após o tratamento da doença de base. A principal teoria que justifica essa condição é a osteosclerose da cavidade medular óssea devido o hiperparatireoidismo8,9.

O diagnóstico do raquitismo dependente de vitamina D tipo 1A é baseado em achados bioquímicos e radiológicos, mas só é confirmado por meio da análise de DNA, com a evidência de mutação do gene CYP27B1, porém não deve ser aguardado o resultado desse exame para começar o tratamento5,10. Os distúrbios iônicos devem ser prontamente corrigidos devido aos riscos de tetania e convulsões encontrados nessa patologia. O tratamento específico consiste na terapia de reposição de 1,25-dihidroxivitamina D3 cronicamente. A dose depende da gravidade da doença e do peso corporal da criança, e deve ser modificada conforme os resultados das análises bioquímicas. O tratamento crônico objetiva manter o paciente em normocalcemia sem hipercalciúria, com níveis normais de PTH, resultando em aumento da força muscular e resolução das lesões ósseas, permitindo o crescimento normal da criança. É importante manter a ingestão adequada de cálcio dietético11,12.

Durante a fase inicial do tratamento, é necessária supervisão rigorosa, com avaliações clínicas e dosagens laboratoriais, incluindo cálcio, fósforo, fosfatase alcalina e PTH, a cada duas a três semanas. Após quatro semanas de terapia, é esperada uma evidente melhora à radiografia, a qual deve ser repetida após três meses, quando as placas de crescimento devem ter recuperado uma aparência normal. Os pacientes podem ser avaliados em intervalos de três meses durante a terapia de manutenção. Radiografias de mão são realizadas uma vez por ano para verificar o reaparecimento de alterações raquíticas11-13.

Durante a terapia, podem ser observados efeitos colaterais como a hipercalcemia, hipercalciúria, nefrocalcinose e calcificações intraoculares, sendo importante a monitorização renal em cada consulta, além de ultrassonografia renal anual. A consulta oftalmológica e o exame com lâmpada de fenda devem ser considerados se forem evidentes manifestações de hipercalcemia crônica, como nefrocalcinose11-13.


CONCLUSÃO

Diante do caso apresentando, apesar de o raquitismo carencial ainda ser prevalente no Brasil, como relatado por Ferreira et al. (2021)14, é importante considerar outras formas raras como o raquitismo dependente de vitamina D tipo 1A, no diagnóstico diferencial. O diagnóstico precoce e o tratamento adequado reduzem significativamente a morbidade e as complicações causadas pela doença.


REFERÊNCIAS

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1. Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória, Residência Médica em Pediatria - Vitória - Espírito Santo - Brasil
2. Universidade Federal do Espírito Santo - Vitoria - Espírito Santo - Brasil

Endereço para correspondência:
Mayã Da Costa Bastos
Hospital Infantil Nossa Senhora da Gloria
Alameda Mari Ubirajara, 205, Santa Lucia
Vitória, ES, Brasil. CEP: 29056-030
E-mail: maya.c.bastos@gmail.com

Data de Submissão: 24/09/2022
Data de Aprovação: 29/11/2022