ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Intervenção no apego inseguro para o tratamento da dor crônica idiopática em Pediatria.

Intervention on insecure attachment for the treatment of idiopathic chronic pain in Pediatrics

RESUMO

INTRODUÇÃO: A dor crônica é um agravo de saúde pública com elevada prevalência em crianças e adolescentes. Acarreta elevados custos em saúde e grave prejuízo à qualidade de vida dos pacientes e suas famílias. Desde a década de 1950, tem-se evidenciado que o apego ao(à) cuidador(a) primário(a) da criança é crucial para a saúde global dos indivíduos e pode interferir no surgimento de várias afecções mentais e físicas, inclusive dor crônica.
RELATO DOS CASOS: Duas adolescentes com história de dor crônica mista, idiopática e incapacitante há mais de dois anos, culminando em internação hospitalar. Receberam abordagem interdisciplinar nas primeiras 24 horas da admissão, com destaque para a Psicologia, que, desde o primeiro contato, identificou fatores estressores significativos na infância de ambas, inclusive a insegurança do apego, e as submeteu a técnicas vivenciais, de relaxamento e de reparentalização limitada, resultando em diminuição da intensidade da dor, da necessidade de analgésicos e da incapacitação logo nos primeiros dias da admissão e, consequentemente, na alta hospitalar.
CONCLUSÃO: A dor crônica idiopática em Pediatria deve ser abordada, desde o princípio, por equipe interdisciplinar. Deve-se reconhecer que o componente psicológico, especialmente o aspecto do apego inseguro, pode ser de grande importância na etiopatogenia, perpetuação e gravidade da dor crônica em muitos pacientes, de modo que abordá-lo é fundamental para o sucesso terapêutico. Além de acelerar a recuperação da funcionalidade e do bem estar dos afetados, essa estratégia tem o potencial de reduzir os custos em saúde.

Palavras-chave: Dor crônica, Apego ao objeto, Pediatria, Criança, Adolescente.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Chronic pain is a public health problem with a high prevalence in children and adolescents. It causes high health costs and severe burden to the quality of life of patients and their families. Since the 1950s, it has been found that primary caregiver-child attachment is paramount for the overall health of individuals and can interfere with the occurrence of several mental and physical disorders, including chronic pain.
CASE REPORT: Two female teenagers with a history of mixed, idiopathic and disabling chronic pain for more than two years, culminating in hospitalization. They received an interdisciplinary approach in the first 24 hours of admission, especially from Psychology, which, since the first contact, identified significant stressors in childhood of both, including attachment insecurity, and engaged them into experiential techniques, relaxation techniques and limited reparenting, resulting in lower intensity of pain, lower need for analgesic drugs and lower disability in the first days of hospitalization and, consequently, resulting on hospital discharge.
CONCLUSION: Chronic idiopathic pain in Pediatrics should be addressed by an interdisciplinary team, since the beginning. It should be recognized that the psychological component, especially the issue of insecure attachment, could be very important in etiopathogenesis, perpetuation and severity of chronic pain in many patients, so that addressing it is fundamental for therapeutic success. In addition to accelerate the recovery of the functionality and well-being of those affected, this strategy has the potential to reduce healthcare costs.

Keywords: Chronic pain, Object attachment, Pediatrics, Child, Adolescent.


INTRODUÇÃO

A dor crônica, definida como dor recorrente ou persistente com duração superior a três meses1, trata-se de agravo de saúde pública com elevada prevalência na população pediátrica2. Acarreta elevados custos em saúde e grave prejuízo à qualidade de vida dos pacientes e suas famílias1,2.

Desde a década de 1950, tem-se evidenciado que o apego ao(à) cuidador(a) primário(a) da criança é crucial para a sobrevivência e saúde global dos indivíduos, interferindo no surgimento de várias afecções físicas e mentais, inclusive dor crônica3. Apesar das evidências, o impacto da formação do apego na experiência de dor de crianças e adolescentes e o potencial terapêutico da intervenção psicológica nele focada ainda são pouco pesquisados4.

Relatam-se os casos de duas adolescentes portadoras de dor crônica idiopática que auferiram significativo alívio sintomático após poucos dias das primeiras intervenções psicológicas, focadas no apego inseguro, durante a internação em hospital terciário.


RELATO DOS CASOS

Paciente 1, feminino, 14 anos, com mialgias e artralgias difusas há pouco mais de dois anos, principalmente em ombros e colunas lombar e cervical, com intensidade 8 na escala visual numérica (EVN) de dor e interrupção das atividades físicas e da frequência escolar nos últimos meses. Queixava-se ainda de episódios recorrentes de opressão torácica e dispneia súbitas em situações de estresse psicológico. Ao exame, a única anormalidade foi dor à palpação das regiões cervical, escapular e sacroilíaca, sem tender points específicos. Os exames laboratoriais foram normais (Tabela 1). Foi avaliada pela Psicologia Hospitalar ainda nas primeiras 24 horas de internação e desvelou-se que, em idade escolar, sofrera vivência traumática e repreensão severa da genitora, que acarretara culpa e ruptura do vínculo de confiança mãe-filha. Desde então, passara a apresentar despertares noturnos, crises de choro, recusas a sair de casa e dores musculoesqueléticas; aos dez anos de idade, alucinações auditivas e visuais, com conteúdo recriminatório; e, aos doze anos, automutilação em antebraços, tricotilomania e onicofagia. Em 2020, as dores se intensificaram, resultando em múltiplos atendimentos em serviços de emergência. Aos treze anos, iniciaram psicoterapia, sem melhora do quadro álgico nem dos sintomas depressivos-ansiosos. Em 2021, investigação médica ambulatorial não resultara em diagnóstico (exames laboratoriais, ressonância nuclear magnética [RNM] de coluna lombossacra e ultrassonografia [USG] pélvica normais), culminando na internação.

Paciente 2, feminino, 11 anos, com dor recorrente no pé direito há seis anos, que progrediu para ambos os membros inferiores e colunas cervical e lombar há dois meses da admissão. A dor agravou-se até comprometer a deambulação e a frequência escolar. Consultou-se com Ortopedia e Neurologia Pediátrica, que afastaram doenças específicas (RNM de encéfalo e da coluna vertebral e USG de abdome total normais) e a encaminharam para internação. Relatava ainda frequentes palpitações e episódios de choro, sem motivo aparente. Menor foi admitida com dor que incapacitou a deambulação, necessitando de cadeira de rodas para se deslocar e referindo dor de intensidade 10 na EVN; notada obesidade e dor à palpação e movimentação passiva e ativa dos quatro membros, sem outras anormalidades. Os exames laboratoriais não exibiram alterações significativas (Tabela 1). Ainda nas primeiras 24 horas da admissão, a díade mãe-filha foi avaliada pela Psicologia Hospitalar, que detectou sinais de apego inseguro em dimensão de transgeracionalidade familiar: traumas precoces não resolvidos da genitora limitaram-na na provisão das demandas básicas de afeto da menor, que revelou não se sentir amada nem acolhida pela mãe.

A Psicologia Hospitalar realizou dois atendimentos com cada paciente durante as respectivas internações, em que as submeteu a técnicas vivenciais, de relaxamento e de reparentalização limitada, focadas no aspecto do apego inseguro de ambas, com vistas a validar o sofrimento, ressignificar as emoções atreladas às memórias traumáticas e restabelecer a confiança dos vínculos mães-filhas. Isso resultou em diminuição da intensidade da dor para 6 na EVN de ambas, da demanda de analgésicos e da incapacitação logo nos primeiros dias de internação, possibilitando alta hospitalar no sexto e sétimos dias para as pacientes 1 e 2, respectivamente, em que a segunda voltou a deambular normalmente. Retornaram à escola e outras atividades dentro do primeiro mês após a alta. Também foram avaliadas pela Psiquiatria, que prescreveu fluoxetina para ambas, a fim de tratar os sintomas depressivos-ansiosos (não se justificando a melhora da dor com apenas dois dias de uso na internação); e pela Reumatologia Pediátrica, que deu alta da sua especialidade. Mantêm acompanhamento ambulatorial com Psiquiatria e Psicologia, ambas referindo dor zero na EVN após seis meses de tratamento.


CONCLUSÃO

A dor crônica, definida como dor recorrente ou persistente com duração superior a três meses1, é agravo de saúde pública com prevalência estimada de 11% a 38% na população pediátrica2. Adolescentes do sexo feminino constituem o público mais afetado5, como nos casos descritos. Pode ser idiopática ou primária (sem causa orgânica aparente) ou secundária (associada a uma doença crônica bem definida ou lesão física identificável)1,4.

A dor crônica acarreta grave prejuízo à qualidade de vida dos pacientes e suas famílias; aumento do risco de depressão e ansiedade; isolamento social; absenteísmo escolar; interrupção das atividades de lazer; e distúrbios do sono1,2. Cerca de 5% a 8% das crianças com dor crônica experimentam dor grave incapacitante2,5, e 17% a 35% persistem com dor crônica até a vida adulta2. Ainda, a dor crônica implica custos significativos em saúde por ser causa frequente de atendimentos ambulatoriais e de emergência, de internações hospitalares e de solicitação de exames complementares2.

O apego é a predisposição inata de uma criança buscar uma ligação afetiva, seletiva, duradoura e confiável com um(a) cuidador(a) primário(a), que reconheceria, interpretaria e responderia aos seus sinais nos primeiros anos de vida. Forma-se um ciclo de influência mútua, em que as respostas de um moldam as do outro, servindo de base para a formação da personalidade e dos futuros relacionamentos do indivíduo4. O apego se torna inseguro quando ocorrem dificuldades significativas ou persistentes nessa interação, geralmente devido à ausência de respostas (negligência) ou a respostas sem empatia, abusivas ou ambivalentes do cuidador, ou quando é perturbado mesmo após anos de uma formação inicial saudável3,4.

Apesar da reconhecida importância, o apego não foi formalmente pesquisado até os trabalhos dos psicanalistas John Bowlby e Mary Ainsworth, na década de 1950. Desde então, tem-se evidenciado que esse constructo do neurodesenvolvimento é crucial também para a própria sobrevivência e saúde geral dos indivíduos3. A qualidade do apego pode interferir no surgimento de várias afecções mentais e físicas, como depressão, ansiedade, transtornos por uso de substâncias, doenças cardiovasculares, doenças inflamatórias e dor crônica3,4.

Uma explicação neurobiológica é a ocorrência, nos indivíduos com apego inseguro, de menores níveis circulantes de ocitocina e menor atividade do córtex pré-frontal, que modulariam o funcionamento das amígdalas cerebrais e do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal. Isso implica níveis persistentemente elevados de cortisol e hormônio liberador de corticotropina, que levam à neurotoxicidade, desregulação do sistema de recompensa e a um estado pró-inflamatório crônico, aumentando o risco de ocorrência das doenças supracitadas. Logo, o apego inseguro é uma experiência adversa da infância (early-life stress), com consequências de longo prazo3.

Crianças e adolescentes portadores de dor crônica apresentam menores taxas de apego seguro em relação a grupos-controles4. Indivíduos com apego inseguro percebem a dor como mais ameaçadora; têm percepção negativa do apoio que recebem no enfrentamento à dor, sentindo-se menos impelidos a buscarem ajuda; exibem menor capacidade de desenvolver resiliência à dor; e têm risco duas vezes maior de que a dor seja generalizada e incapacitante3.

Apesar dessas evidências, o impacto do apego na experiência de dor de crianças e adolescentes e o potencial terapêutico da intervenção psicológica nele focada ainda são pouco pesquisados4. A maioria dos estudos sobre o efeito da psicoterapia no tratamento da dor crônica na população pediátrica se refere a intervenções mais tradicionais5.

Os casos relatados destacam a importância de abordar precocemente, por equipe interdisciplinar, o aspecto do apego inseguro para o rápido alívio sintomático e recuperação da funcionalidade de crianças e adolescentes com dor crônica idiopática, aumentando a eficácia do tratamento multimodal desse agravo complexo. A investigação médica deve ocorrer simultânea e harmonicamente com os demais profissionais de saúde, especialmente a Psicologia, não relegando o aspecto psicossocial da dor crônica ao diagnóstico de exclusão.

Os profissionais de saúde devem se apropriar dos avanços científicos acerca da precocidade da origem dos agravos crônicos na população pediátrica e adulta, de modo a reconhecerem o apego seguro como fator de promoção e proteção da saúde. Mais ainda, a infância figura como janela única de oportunidade, em que os vínculos com os cuidadores primários têm maiores chances biológicas (neuroplasticidade) e psicossocioculturais (maior presença e influência desses cuidadores na vida diária das crianças) de serem recuperados e fortalecidos.

A abordagem oportuna do apego inseguro na população pediátrica com dor crônica idiopática tem ainda o potencial de reduzir os custos em saúde, ao evitar o excesso de analgésicos, exames, consultas e internações, principalmente se realizada desde a atenção primária à saúde.


REFERÊNCIAS

1. World Health Organization (WHO). Guidelines on the management of chronic pain in children. Geneva: WHO; 2020.

2. Tutelman PR, Langley CL, Chambers CT, Parker JA, Finley GA, Chapman D, et al. Epidemiology of chronic pain in children and adolescents: a protocol for a systematic review update. BMJ Open. 2021 Feb 16;11(2):e043675. DOI : https://doi.org/10.1136/bmjopen-2020-043675.

3. Chambers J. The Neurobiology of Attachment: From Infancy to Clinical Outcomes. Psychodyn Psychiatry. 2017;45(4):542-63.

4. Failo A, Giannotti M,Venuti P. Associations between attachment and pain: From infant to adolescent. SAGE Open Med. 2019 Sep 19;7:2050312119877771. DOI : https://doi.org/10.1177/2050312119877771.

5. Fisher E, Law E, Dudeney J, Palermo TM, Stewart G, Eccleston C. Psychological therapies for the management of chronic and recurrent pain in children and adolescents. Cochrane Database Syst Rev. 2018 Sep 29;9(9):CD003968. DOI: https://doi.org/10.1002/14651858.CD003968.pub5.










Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco/EBSERH, Unidade da Criança e do Adolescente - Recife - Pernambuco - Brasil

Endereço para correspondência:

Rodrigo Regis Souza de Lira
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco/EBSERH
Av. Prof. Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária
Recife/PE- CEP 50670-901
Email: rodrigo.regis@ebserh.gov.br

Data de Submissão: 28/11/2022
Data de Aprovação: 08/01/2023