ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Manifestação clínica atípica de piomiosite tropical

Atypical clinical manifestation of tropical pyomyositis

RESUMO

A piomiosite tropical é uma infecção muscular cujas manifestações, inicialmente, podem ser leves e inespecíficas, dificultando o diagnóstico;, porém, na maioria dos casos, evolui com prognóstico benigno. Por se tratar de um acometimento incomum, faz-se necessário discutir um caso de piomiosite tropical com complicações raras após trauma. O paciente em questão vinha em período de convalescença de dengue quando sofreu traumatismo, evoluindo com abcesso em coxa esquerda, drenado cirurgicamente, e fazendo uso de cefalexina. Antes de completar sete dias de antibiótico, retornou à emergência por piora do quadro clínico. Internado, foi realizada nova drenagem e iniciada ceftriaxona e oxacilina. Sem resposta satisfatória ao antibiótico após três dias, foi escalonado para ceftarolina. No oitavo dia de tratamento, teve uma piora do quadro infeccioso, associado a achado em tomografia de volumosa coleção mediana retrovesical. Optou-se por prescrever meropenem e linezolida e por realizar drenagem videolaparoscópica, entretanto, cinco dias após o procedimento, evoluiu com sinal de Blumberg positivo em exame físico, com confirmação de importante coleção retrovesical em ultrassom abdominal. Procedeu-se, então, à laparotomia exploratória com drenagem de coleção e, por visualização de apendicite intraoperatória, realizada apendicectomia. Após, o paciente evoluiu com melhora clínica progressiva, finalizando meropenem e linezolida até o 21º dia e recebendo alta hospitalar com orientação de acompanhamento ambulatorial.

Palavras-chave: Piomiosite, Apendicite, Infectologia, Pediatria.

ABSTRACT

Tropical pyomyositis is a muscle infection whose manifestations may initially be mild and nonspecific, making diagnosis difficult; however, in most cases, it evolves with a benign prognosis. Because it is an uncommon condition, it is necessary to discuss a case of tropical pyomyositis with rare complications after trauma. The patient in question was in a period of convalescence from dengue fever when he suffered trauma, evolving with an abscess in the left thigh, surgically drained, and using cephalexin. Before completing seven days of antibiotics, he returned to the emergency medical care due to worsening of the clinical picture. When he was admitted, a new drainage was performed and ceftriaxone and oxacillin were started. With no satisfactory response to the antibiotics after three days, it was escalated to ceftaroline. On the eighth day of treatment, he had a worsening of the infectious condition, associated with a CT finding of a large median retrovesical collection. It was decided to prescribe meropenem and linezolid and to perform videolaparoscopic drainage, however, five days after the procedure, the patient evolved with a positive Blumberg sign on physical examination, with confirmation of a significant retrovesical collection on abdominal ultrasound. An exploratory laparotomy was then performed with drainage of the collection and, due to the visualization of intraoperative appendicitis, an appendectomy was performed. Afterwards, the patient evolved with progressive clinical improvement, finishing meropenem and linezolid by the 21st day and being discharged with guidance for outpatient follow-up.

Keywords: Pyomyositis, Appendicitis, Infectious disease medicine, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A piomiosite é uma infecção muscular rara, causada pelo Staphylococcus aureus especialmente oxacilino-sensível (OXA-S) por contiguidade ou disseminação hematogênica. Pode cursar com formação de abscessos e necrose muscular progressiva, podendo resultar em graves complicações sistêmicas e óbito1.

O nome piomiosite tropical deve-se ao fato de a doença ser mais comum em regiões tropicais, porém há um aumento de casos em regiões temperadas2. Ocorre em duas faixas etárias: crianças (2 a 5 anos) e adultos (20 a 45 anos). Homens jovens e hígidos são mais afetados do que mulheres, na proporção de 5:23.

Qualquer músculo pode estar envolvido, mas os sítios mais comuns são os músculos da coxa, glúteos e os do tronco, além dos músculos abdominais, antebraço, ilíaco e psoas3.

Alguns fatores predisponentes são conhecidos, como trauma, imunodeficiência, corticoterapia, diabetes mellitus, infecção, isquemia e desnutrição. Em 20-50% dos casos, há história de trauma ou exercício vigoroso na área envolvida. Essa afecção também está relacionada a choques elétricos e uso de drogas injetáveis2-4.

Os sintomas dependem da fase da doença e podem ir desde uma febre baixa até septicemia3. A mortalidade gira em torno de 1 a 10%. Há relatos de complicações graves, tais como: osteomielite, pneumopatias, pioartrite, trombose venosa profunda, sepse, síndrome compartimental, insuficiência renal e recidivas locais3,4.

A doença é classificada em três estágios: o estágio I (invasivo), com manifestações inespecíficas, como febre baixa, dor e rigidez local, edema e parestesia. O estágio II (supurativo), com aumento do edema e da febre. No estágio III (tardio), ocorre acometimento sistêmico com sinais de sepse, com possibilidade de óbito2.

O diagnóstico pode ser realizado por ultrassom, ressonância magnética e tomografia computadorizada. Culturas e exames laboratoriais como enzimas musculares também são importantes. Como diagnósticos diferenciais temos osteomielite, artrite séptica e hematomas2,3.

Todos os estágios da piomiosite tropical requerem antibioticoterapia, sendo a drenagem cirúrgica necessária nos casos com abscesso. Recomenda-se o uso de penicilinas beta-lactamase resistentes como a oxacilina ou cefalosporinas de primeira a terceira geração. Em caso de sepse, um aminoglicosídeo pode ser associado2.

Diante da magnitude e das possíveis complicações que podem ocorrer, visto que é subdiagnosticada, é imprescindível o conhecimento aprofundado dessa entidade para que seja prestada assistência de saúde oportuna. Portanto, o presente relato de caso visa a descrever as características clínicas e evolução atípica de uma doença incomum, a piomiosite tropical, em uma criança internada em um serviço de pediatria geral em Fortaleza, com história de quadro viral em convalescença e trauma contuso. Além disso, de forma mais específica, objetiva-se: 1) verificar a progressão da piomiosite tropical e seus desfechos mais comuns, avaliando a possibilidade de complicações raras; 2) avaliar possíveis causas e fatores predisponentes associados à piomiosite tropical; 3) buscar estimar a eficácia do tratamento medicamentoso e cirúrgico adotado e analisar a evolução da doença, bem como​ avaliar exames realizados; 4) alertar profissionais da saúde acerca da importância do diagnóstico de uma doença rara, mais frequente nos trópicos, bem como de seus estágios e possíveis complicações.


RELATO DE CASO

J.P.D.A., 14 anos, sexo masculino, com fáceis suspeitas de acromegalia, que, em período de convalescença de dengue (IgG e IgM positivo em 16/05), sofreu trauma contuso em ataque de bullying na escola e evoluiu com abscesso em coxa esquerda (Figura 1), drenado cirurgicamente em 24/05/2022, com prescrição ambulatorial de cefalexina. Em 30/06, retornou à emergência com piora do edema na coxa esquerda, edema em glúteo direito e febre.


Figura 1. US de partes moles (23/05/2022): Coleção extensa heterogênea com traves hiperecogênicas comprometendo a região da musculatura do vasto lateral à esquerda. Medindo cerca de 7,6 x 3,3 cm, caracterizando lesão muscular importante (grau III).



Após exames de imagem, foi diagnosticada piomiosite tropical e realizada internação hospitalar para nova drenagem em 31/05/2022, com início de ceftriaxona e oxacilina. Três dias depois, sem resposta satisfatória e com episódio de febre, foi escalonada antibioticoterapia para ceftarolina. Após oito dias, apresentou mal-estar, adinamia e dificuldade para movimentação do joelho esquerdo. Realizado ecocardiograma em 10/06/2022, com achado de derrame pericárdico laminar, e tomografia computadorizada de abdômen (Figura 2) e ultrassom abdominal, que evidenciaram coleção pélvica mediana, retrovesical, medindo aproximadamente 680 ml. Decidiu-se por prescrever meropenem e linezolida, porém paciente evoluiu com dor abdominal refratária a sintomáticos. Em interconsulta com a cirurgia pediátrica, optou-se por realizar drenagem videolaparoscópica da coleção retrovesical em 18/06/2022.


Figura 2. TC abdominal com contraste (13/06/2022): Coleção liquefeita, sugestiva de abscesso, em permeio à musculatura da nádega à direita; Coleção pélvica mediana, retrovesical, medindo 13,8 x 9,8x9,8 cm, de volume estimado 680 ml.



Após abordagem, paciente ainda permanecia com queixa álgica em abdômen, associada a vômitos, hiporexia, peritonismo e, em 23/06/2022, Blumberg positivo em exame físico. Em USG abdominal, identificava-se ainda importante coleção retrovesical. Procedeu-se, então, à laparotomia exploratória com drenagem de coleção e, por visualização de apendicite intraoperatória, realizada apendicectomia.

Após procedimento, evoluiu com melhora clínica progressiva, afebril e estável clínica e hemodinamicamente, finalizando meropenem e linezolida até o 21º dia. ECOTT de controle (27/06/2022) se mostrou sem alterações. Após alta hospitalar, foi encaminhado para retorno ambulatorial com cirurgião e infectologista pediátricos, sem relato de novas intercorrências.


DISCUSSÃO

No caso supracitado, o paciente, além de se encontrar fora da faixa etária usual descrita na literatura, apresentava dois fatores de risco predisponentes para a manifestação de piomiosite. O primeiro deles se deu na forma de uma infecção viral concomitante, a dengue, que, por si só, já poderia ser responsável por um aumento da permeabilidade vascular e extravasamento de plasma, com consequente choque hipovolêmico e/ou hemorragia significativa5. O segundo fator de risco foi a ocorrência de trauma contuso no período de convalescência do quadro de dengue, servindo como fator facilitador para a implantação de uma infecção bacteriana local associada6,7.

Na literatura, o tempo médio de diagnóstico de piomiosite tropical é de 14 dias, uma vez que seus sintomas podem ser inespecíficos e confundidos com outras afecções, como artrite séptica5,7,8; enquanto isso, no caso estudado, foi possível identificar o quadro em pouco mais de 1 semana (8 dias, no total), considerando a data de diagnóstico da infecção por dengue até o primeiro tratamento, feito com a drenagem do abscesso de membro inferior esquerdo. Além disso, a região acometida no paciente em questão encontra-se compatível com o descrito em outros relatos, de que, na população pediátrica, as três localizações mais frequentes são o quadricípite femoral, os músculos glúteos e o iliopsoas8.

Como não possui uma clínica característica, exames de imagem são recomendados. Na maior parte dos casos, como o supracitado, a realização de um ultrassom com operador especializado pode ser suficiente para determinar a extensão da lesão e necessidade de drenagem, porém, em localizações mais atípicas, como em coluna vertebral, pode vir a ser necessário exames de maior custo, e nem sempre de fácil acesso pelo sistema público de saúde, como uma ressonância magnética2,7,8.

Nem todos os casos de piomiosite necessitam realizar abordagem cirúrgica, porém o uso de antibioticoterapia é mandatório, de preferência penicilinas beta-lactamase resistentes — como a oxacilina — e/ou cefalosporinas de primeira a terceira geração, como se deu no paciente estudado, visando à cobertura dos dois principais microorganismos envolvidos: o Staphylococcus aureus e o Streptococcus beta-hemolítico do grupo A2,6. Questiona-se se este não se tratou de um caso de S. aureus resistente à meticilina adquirido na comunidade (CA-MRSA), como já tem se descrito nos Estados Unidos2,7, uma vez que, mesmo com uso de cefalexina em domicílio e a combinação de ceftriaxona e oxacilina quando internado, ainda houve necessidade ampliar o espectro de cobertura para ceftarolina e, após nova piora, para meropenem e linezolida. Outros agentes também podem ser identificados, principalmente em indivíduos imunodeprimidos, com destaque para Streptococcus pneumoniae, Escherichia coli, Neisseria gonorrhoea, Candida albicans, Fusobacterium nucleatum, Mycobacterium tuberculosis e M. avium complex, por exemplo. No Brasil, inclusive, já foi descrito um caso de piomiosite relacionado a toxocaríase2,6-8. No caso estudado, entretanto, as culturas coletadas mantiveram-se negativas.

Ainda, pode-se considerar que a piomiosite do referido paciente chegou a grau III, uma vez que, além de sintomas sistêmicos indicativos de sepse, o abscesso estendeu-se até cavidade abdominal, cursando também com apendicite. Não foram encontrados na literatura casos que relacionassem a ocorrência de apendicite com a piomiosite. Questiona-se até que ponto houve coincidência de as duas afecções ocorrerem concomitantemente, ou, se houve acometimento do apêndice por translocação bacteriana de abscesso subjacente.

Diante disso, a criança do caso apresentava fatores predisponentes para apresentar a piomiosite tropical, confirmada por diagnóstico clínico, laboratorial e de imagem. A mesma evoluiu com progressão da doença (estágio 3) e complicações mais graves do que as descritas na literatura, como derrame pericárdico e abscesso/coleção intracavitária em abdome, além de apresentar complicações raras, ainda não descritas, como a apendicite, trazendo questionamentos se a concomitância seria coincidência ou nova complicação​ associada. O diagnóstico precoce da piomiosite tropical é de fundamental importância para o sucesso do tratamento, seja medicamentoso ou cirúrgico, se necessário, devendo-se iniciar precocemente antibioticoterapia para o controle de suas complicações.


REFERÊNCIAS

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Camylla Santos de Souza
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E-mail: camylladesouza@outlook.com

Data de Submissão: 11/02/2023
Data de Aprovação: 10/07/2023